"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 25 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: duas visões cristãs sobre o casamento

Um homem colocando um anel no dedo de uma mulher. Detalhe de miniatura do século XIV. James le Palmer

No início da Idade Média, a tradição cristã fornecia um pequeno número de ensinamentos acerca do casamento. Devido às contradições entre os dois papéis assumidos pela Igreja, havia vozes eclesiásticas dissonantes, todas se baseando na palavra de Deus. Uma doutrina católica sobre o casamento, coerente e uniforme, só se formou lentamente.

Duas concepções do casamento se opuseram com violência na cristandade até cerca de 1100. Como resultado desse conflito, foram instituídos usos e costumes que prevaleceram na sociedade ocidental até pouco tempo atrás.

É possível identificar em Santo Ambrósio (século IV) e Santo Agostinho (séculos IV-V), portanto já no início da Idade Média, os argumentos contra e a favor do casamento.

A primeira dessas concepções, que aparece nos escritos de Santo Ambrósio, foi herdada do cristianismo primitivo. Nela o casamento não é recomendado. Quando muito é tolerado. A vida ascética e o horror à mulher marcavam a vida do cristão ideal. Esse cristianismo foi influenciado pela filosofia greco-romana, que opunha a matéria ao espírito.

Dessa forma o casamento seria um mal em si, pois o marido é forçosamente um pecador. Ao amar com ardor sua mulher, comete pecado. O casamento estaria inevitavelmente manchado pelo prazer sexual, sendo um obstáculo à espiritualidade. Essa concepção opunha a vida terrena à salvação e o clero aos leigos.

A outra concepção do casamento conciliava as necessidades terrenas e as aspirações espirituais. Reconhecendo a importância do casamento no ordenamento social, procurou resgatar os seus possíveis pontos positivos. Os padres procuram salvar o casamento de sua maldição de origem. Para isso se centraram em Santo Agostinho, menos severo de que Santo Ambrósio em relação ao sexo e ao casamento. Em vez de condená-los, era necessário submetê-los ao sagrado.

Nessa concepção, o casamento é positivo por atenuar os defeitos de cada um dos sexos. Nele a mulher perde as suas manhas e o homem a sua brutalidade. E dessa harmonia nascem os filhos. A procriação é colocada como a principal finalidade do casamento.

Nesse conjunto de ideias, não é bom que o homem viva só. A mulher foi feita do homem e eles devem voltar a ser um só no casamento. Todavia, permanece a desigualdade original. A mulher deve estar submetida ao homem, assim como deve sofrer as dores do parto, por uma designação divina.

Santo Agostinho diz que o homem é a parte espiritual e a mulher a parte sensual da condição humana. Por isso o casamento permite a submissão da carne ao espírito. Mas para que isso se efetive, o homem deve superar a fraqueza que levou Adão à perdição e reinar sobre sua esposa.

Depois de um longo processo de elaboração, a Igreja conseguiu firmar uma doutrina e um ritual do casamento.


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 224-225.

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