No fim de uma acentuada curva na estrada, o Castelo de Albey
surgiu à sua frente, imenso e sombrio. Estava tudo exatamente como ele se
lembrava. Mais umas duas horas de caminhada e chegariam lá.
Para chegar ao castelo teriam que passar próximo à Abadia de
Louvenne. Quanto mais se aproximavam, mais Filipe notava que havia ali uma
movimentação anormal.
Seguiam seu caminho quando escutavam o barulho de cascos
batendo no chão. Assim que avistaram o cavaleiro, Filipe percebeu pelas roupas
e ornamentos quem era e de onde vinha.
Ao avistar aquele bando de homens andrajosos e enlameados,
de aspecto ameaçador, o cavaleiro tentou recuar, mas já era tarde. Percebeu que
havia sido cercado. O aspecto deles não deixava dúvidas: eram saqueadores.
- Não me matem! Eu entrego tudo o que trago comigo!
- Somos muitos e a fome é muito grande. O que traz consigo
não é suficiente. Se quer viver dia o que se passa na abadia!
- É uma grande festa. A abadia foi reformada e hoje
comemora-se a conclusão das obras, que duraram mais de trinta anos.
- Quem é o abade?
- Samuel Garbois é seu nome. É um homem muito velho e
bondoso, que viveu para glorificar Deus com essa obra.
- Às custas de milagres ocorridos no Castelo de Albey há
muitos anos, não estou certo?
O outro olhou espantado para aquele que assim lhe falava e
que parecia ser o chefe do grupo.
- A história de meu querido irmão, morto há dez anos, tem-se
espalhado por fronteiras que não imaginávamos. Sim, foi um verdadeiro milagre,
e lamentamos muito a perda de Filie, esse era seu nome. Nasceu marcado para
grandes obras, mas a vida o arrebatou muito cedo.
- A grande obra de Filie ainda nem começou, meu caro
Francisco, e se lamenta tanto a morte do irmão, por que não procurou salvá-lo
dos saqueadores que invadiram o castelo há dez anos, por que não pagou o
resgate que exigiam para devolvê-lo, ao invés de abandoná-lo à sua própria
sorte? - disse Filipe, afastando o cabelo da testa e que encobria seu sinal de
nascença.
- Meu irmão! Então você ainda vive?
Francisco estava pálido de morte. Sentiu no olhar do irmão
fúria e ódio gelados que lhe arrepiaram o corpo e lhe esfriaram o sangue.
Filipe não vacilou, e sua mão estava bem firme quando cravou
sua espada bem na altura do coração do irmão, antes mesmo que este tivesse
tempo de perceber o que acontecia.
Por um momento o silêncio foi total, só sendo cortado pelo
barulho da chuva que transformava o vermelho vivo do sangue que corria em vermelho
pálido, até se misturar na lama e ser engolido pela terra.
Filipe quebrou o silêncio.
- Se há uma festa na abadia, eu deveria ser o convidado de
honra. Vamos, vou reclamar meus direitos.
Seus homens vacilaram. Saquear um castelo, mesmo que fosse a
quase inexpugnável fortaleza de Albey, era uma coisa que fariam sem pensar duas
vezes. Eram homens duros e desgraçados, que caminhavam dia a dia ao lado da
morte, e por esta ser uma presença tão constante não os assustava. Mas saquear
uma abadia? Isso eles não poderiam fazer. A abadia era um lugar sagrado, e isso
significava ofender a Deus. E se a ira divina se voltasse contra eles? Fazia-os
tremer a simples ideia de tormentos inimagináveis que cairiam sobre eles. Não,
não iriam.
Estavam acampados próximo à abadia. Filipe pensava
exaustivamente numa saída para esse impasse.
Levou instintivamente a mão à testa.
Levantou-se, caminhou com vagar para o centro do
acampamento, onde seus homens estavam reunidos em volta de uma pequena fogueira
que ameaçava acabar-se a todo instante, pois a chuva prosseguia.
A luz do fogo refletia-se nos olhos de Filipe, que naquele
instante parecia terrível e implacável, mesmo a seus homens.
- Trago estampado na testa o sinal sagrado da cruz desde o
dia em que nasci. Vocês temem saquear a abadia por ser um lugar sagrado, mas se
esquecem de que um sinal divino orienta esta ação. O lugar é sagrado, os homens
que o habitam não. Seus atos infames e impuros só têm feito ofender a Deus
durante todos estes anos. Cabe a nós, homens escolhidos por Deus, e para provar
isso existe o sinal, vingá-lo. Quem se recusa a me seguir se recusa a fazer o
que o Senhor ordena. Para esses, os tormentos do inferno estão reservados. Quem
quiser me seguir fique de pé, os outros permaneçam sentados.
Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos
do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 22-25.
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