Botica, Jean-Baptiste Debret
Desde a mais remota pré-história, o ser humano busca na
riqueza da flora plantas que lhe possam ser úteis. Entre elas, descobre algumas
que propiciam sensações especiais: seu consumo altera a consciência, o humor, a
disposição, o sono. Por isso, em diversas culturas, as plantas psicoativas -
como papoula, maconha ou folha de coca - ganharam importância e novos
significados sociais. Muitas foram consideradas manifestações de divindades e
veículos de poderes mágicos de cura, estímulo, sedação ou êxtase. O vinho, por
exemplo, seria associado ao deus greco-romano Dioniso/Baco, e no cristianismo
se tornaria a encarnação do sangue de Jesus, cujo primeiro milagre foi
justamente a transformação da água em vinho.
Na Antiguidade, quando o que chamamos de medicina não se
separava do que denominamos de religião, eram xamãs os responsáveis pelo
controle dos recursos vegetais de cura e consolo. Ao longo da época clássica da
Grécia e de Roma [...] a medicina tornou-se uma disciplina autônoma, e o uso
das drogas um dos seus recursos mais importantes. Autores como Hipócrates e
Galeno contribuíram para a teoria que ficou conhecida como medicina humoral,
baseada na correspondência entre quatro elementos da natureza - água, terra, ar
e fogo - e quatro humores do corpo - fleuma, bílis negra, sangue e bílis
amarela. As drogas eram classificadas de acordo com seu potencial de influência
sobre esses humores, corrigindo excessos ou compensando carências. Assim foi
compilado um saber botânico voltado para a medicina, em , os chamados de
"matéria médica" - como a farmacopeia de Dioscórides, que ficou
popular na Europa ao ser publicada, no século XV, após a invenção da imprensa.
O contato com outros continentes ao final da Idade Média fez
chegar à Europa grande quantidade de plantas desconhecidas, que eram usadas
como produtos de luxo, chamadas de especiarias e vistas como possuidoras de
virtudes quentes, por virem de regiões banhadas por muito sol. Consideradas
estimulantes e até afrodisíacas, serviriam para corrigir os "males de
origem fria" existentes no continente europeu. Em 1498, o português Vasco
da Gama rodeou o Cabo da Boa Esperança, no sul da África, em busca de
especiarias orientais, como a pimenta da Índia, a canela do Ceilão e o cravo
das Ilhas Molucas. Essas substâncias foram chamadas de "drogas", uma
derivação do termo holandês para produtos secos. Em 1813, o Dicionário da
Língua Portuguesa Recopilada, do fluminense Antonio de Moraes Silva, definia
droga como "todo o gênero de especiarias aromáticas; tintas, óleos, raízes
oficiais de tinturaria, e botica. Mercadorias ligeiras de lã, ou seda".
Essa utilização ampla do termo "droga" deu origem a palavras como
droguete, um tipo de tecido.
A riqueza do Brasil se devia às suas "drogas e
minas", segundo o jesuíta André João Antonil, em 1711. Aguardente, tabaco
e depois o café tiveram papel central na história econômica do Brasil e de
vários outros países, assim como o açúcar. O comércio triangular entre Europa,
África e América articulava o tráfico de escravos com a mercantilização das
drogas coloniais. Mas também havia a quina, a ipecacuanha, a copaíba, o
guaraná... nos interiores do Brasil e na Amazônia, as drogas do sertão e da
selva eram produtos de grande valor mercantil. Na bacia do rio da Prata, a erva
guarani (conhecida como mate naquela região e como congonha no sudeste)
articulou as missões. o Paraguai e o Paraná numa rede de produção e comércio de
"ouro verde" do chimarrão. Café e tabaco tiveram sua importância
consagrada ao serem escolhidos como adornos para o brasão imperial brasileiro.
As duas drogas foram mantidas como símbolos nacionais no brasão da República e
estão lá até hoje: o ramo florido do tabaco, o ramo frutificado do café.
Enquanto isso, a milenar papoula tornava-se o mais
importante medicamento do mundo, utilizada na forma de ópio como analgésico,
tranquilizante e sonífero, contra tosse e disenteria, além dos usos recreativos
e até afrodisíacos. Com a Revolução Industrial, a partir do século XVIII, o chá
e o café, por suas propriedades excitantes, passaram a ser associados ao
aumento do desempenho dos operários, e o tabaco foi incorporado à vida
cotidiana como droga de sociabilidade essencialmente masculina até o século XX,
quando as mulheres também passaram a fumar. O álcool destilado, usado antes
apenas como remédio, após o século XVII tornou-se a principal droga de uso
recreativo no mundo.
A era da indústria farmacêutica teve início no século XIX,
quando as plantas tiveram seus princípios ativos extraídos em laboratório. Fármacos
puros como morfina, cocaína, cafeína e mescalina foram isolados e começaram a
ser produzidos por empresas alemãs, norte-americanas e suíças, entre as mais
importantes. A medicina tradicional e o uso de plantas se viram deslocados por
um mercado florescente de pílulas e elixires industrializados, muitos deles com
"fórmulas secretas", como as bebidas tônicas - que levavam, por
exemplo, folha de coca e noz de cola, duas drogas excitantes - ou os vinhos com
cocaína, usado por elites políticas, religiosas e militares. Seguiu-se uma
disputa pela legalização e o controle desse mercado, com mecanismos de monitoramento,
inspeção de qualidade e tributação.
Botica
medieval, Magister Faragius
Dois marcos na repressão às drogas foram o controle sobre o
ópio na China, realizado a partir de 1729 pela dinastia Qing, de origem manchu,
e a campanha pela abstinência e proibição do álcool nos Estados Unidos do
século XIX e início do XX. Esses países adotaram leis que se tornariam exemplos
para políticas internacionais. Já no século XX, foi criada a distinção entre as
drogas de uso médico controlado, as proibidas e aquelas consideradas lícitas,
de livre acesso a homens adultos. Esses três percursos de circulação de drogas
se tornaram ramos florescentes da economia contemporânea. Tanto a indústria
farmacêutica e o comércio de drogas lícitas quanto o tráfico de drogas ilícitas
viraram grandes impérios. A diferença é que o mercado de substâncias proibidas
se faz por meios clandestinos, aumentando sua renda potencial, privando o
Estado de tributos e instaurando um regime de violência e corrupção entre
grupos criminosos e aparatos policiais-militares.
Na China, a proibição do ópio na primeira metade do século
XIX foi a motivação imediata para duas guerras (1839-42 e 1856-60), através das
quais as potências ocidentais exportadoras, especialmente a Inglaterra,
impuseram o seu comércio de venda de ópio e compra de chá. O ópio foi mantido à
força no comércio, mas continuou formalmente proibido. Nos Estados Unidos, a
proibição do álcool começou em 1851, em estados como o Maine. Em 1920, a regra já valia para
todo país, incluída na 18ª emenda à Constituição. A medida criou um mercado
paralelo dominado por violentas máfias, como a de Chicago. A grave crise
econômica de 1929 pressionou o Estado a voltar atrás para recuperar os impostos
desse enorme comércio. No lugar do álcool, a repressão voltou-se contra
substâncias ligadas a populações imigrantes - como a maconha consumida pelos
mexicanos, o ópio dos chineses e a cocaína, associada aos negros.
O
farmacêutico, Pietro Longhi
No nível internacional, a primeira tentativa de controle das
drogas ilícitas veio em 1912, pelo acordo de Haia. Depois da Segunda Guerra
Mundial, foi colocada de pé a Convenção Única de 1961, cuja ratificação foi
ampliada em 1971 e 1988. O tratado tornou-se o arcabouço jurídico-institucional
mundial para a "guerra contra as drogas", que pressupõe a erradicação
de todos os cultivos de cannabis, coca e papoula dormideira. Mais de meio
século depois, não é difícil concluir que a finalidade da Convenção continua
distante de ser alcançada. O fracasso sucessivo das medidas proibitivas vem
abrindo espaço para novas propostas de regulação legal das drogas por parte de
diversos setores da política global. Por outro lado, cresce o mercado de
antidepressivos, ansiolíticos, soníferos, estimulantes, moduladores e
focalizadores psíquicos - que ampliam sua influência cultural em relação à
infância, à maturidade e à velhice, consumidoras de drogas psicotrópicas
específicas no imenso cardápio hoje disponível e em ampliação na pesquisa
científica.
A compulsão, ligada não só às drogas como aos alimentos, às
bebidas e outros consumos, é um fenômeno que tem enorme incidência na sociedade
contemporânea. A maior parte das drogas é consumida de forma integrada à vida
social cotidiana. A ciência psicofarmacológica está em expansão e integra o
acervo da civilização humana. Seu uso é uma lição central sobre o aprendizado
de nossa autodeterminação e autorregulação.
Henrique Carneio. Portais de todo prazer. In: Revista de
História da Biblioteca Nacional. Ano 10 / Nº 110 / Novembro 2014. p. 17-20.
Orides, fiquei bem impressionada com a intensidade do blog. Muito interessante!
ResponderExcluirObrigado pela visita Gelta. Abraço.
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