"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: as ideias da Igreja sobre a mulher

Uma jovem dama da moda, Paolo Uccello

A doutrina da Igreja medieval sobre o casamento baseava-se em ideias que foram se desenvolvendo dentro da própria Igreja ao longo de sua história. Sob influência da tradição e dos desafios de cada momento, essas ideias iam sendo renovadas e atualizadas.

A renovação católica iniciada com o papa Urbano II, no final do século XI, produziu uma atualização das ideias sobre a mulher. Do final do século XII ao final do século XV, os textos que tratavam da mulher, do casamento e da sexualidade se multiplicaram. Eles revelam a necessidade que os homens da Igreja sentiram de impor valores e modelos de comportamento à mulher.

Muitas mulheres tinham participado de movimentos heréticos, e também era grande o número das que entravam para as ordens religiosas. Algumas escreveram sobre seus ideais religiosos. Isso despertou a atenção do clero.

Na nova economia que se esboçava nessa época, principalmente com o crescimento do comércio e da vida urbana, as mulheres participavam como produtoras e vendedoras de bens. Mas elas eram vistas apenas como mães, filhas e esposas.

Definir claramente os papéis sociais femininos foi um dos objetivos principais dos homens da Igreja. Eles estavam empenhados em restituir a palavra de Deus, vale dizer, a autoridade do clero, onde ela se achava ameaçada. Os pregadores preocupavam-se com uma espécie de desleixo intelectual e moral, que emanava principalmente das cidades.

Ao falar às mulheres, os homens da Igreja não identificam claramente as destinatárias. Dirigem-se às nobres, às camponesas ou às habitantes da cidade? Aparentemente a todas as mulheres, não importando a posição sexual.

Nota-se, entretanto, um esforço de classificação ao qual não estavam acostumados. A tentativa de classificação oscilava entre a categoria social, o tipo de atividade, a idade etc. Assim, temos as virgens, as casadas e as viúvas. As esposas e as mães. As monjas e as servas. As moças, as mulheres jovens, as de meia idade e as velhas. As mulheres pobres e as prostitutas.

Os discursos têm como eixo a oposição entre o que as mulheres eram e o que deveriam ser. Não podemos esquecer que são discursos de clérigos. Além de serem homens falando sobre mulheres, estavam submetidos às regras do celibato e da castidade. Tendiam a ser tanto mais severos na censura da sexualidade, principalmente da feminina, quanto mais dela estivessem afastados.

Para esses pregadores, as mulheres das categorias sociais superiores eram portadoras, ou deveriam ser, de valores mais elevados. Esperava-se que elas servissem de exemplo para as camadas subalternas e tomassem consciência dos seus altos deveres como nobres. As mulheres pertencentes a categorias sociais mais baixas foram vítimas das principais condenações morais nestes discursos.

Quando a mulher é referida sem a identificação do grupo social ao qual pertencem, aparece como uma criatura de extremos entre o bem e o mal: é a filha de Eva ou a virgem que imita Maria.

Mas, independentemente da categoria social, o espaço da mulher é o doméstico. A única que não pertence a ele é a prostituta, à qual só resta o arrependimento e a penitência.

Os textos mais impressionantes são os que falam sobre as mulheres, e não para elas. Eles demonstram claramente o grande medo que elas despertavam. O medo da mulher é uma das principais características do pensamento medieval. Esse medo levava a um severo controle sobre as mulheres. Controlar e castigar as mulheres era uma tarefa dos homens.

Como há um predomínio do espírito sobre a carne, a pureza seria mais de pensamento do que do corpo, mas na hierarquia da castidade, a virgem de corpo está em primeiro lugar.

Foram estabelecidos, então, três graus possíveis de castidade, de virtude e de perfeição. O ideal de mulher é a virgem que renuncia para sempre ao sexo. As viúvas que renunciam a ele por haverem perdido o marido e não se casam estão em um segundo plano. As casadas, que usam o sexo de forma casta e moderada com a finalidade de procriação, estão em terceiro lugar na escala dos méritos. A castidade vale mais do que a continência.

[...]

Até a sua presença na missa seria arriscada, pois os seus olhares poderiam "incendiar os lugares sagrados".

Os conhecimentos medievais sobre anatomia confirmavam o juízo depreciativo dos homens da Igreja em relação à mulher. A fisiologia da mulher foi objeto de longos debates. A conclusão era a de que ela trazia no próprio corpo as marcas da sua inferioridade e mesmo dos seus malefícios.

O Gênesis é citado para mostrar que a mulher é um ser secundário, um apêndice do homem. Acreditava-se que os órgãos femininos fossem menos aperfeiçoados e fracos, de certa maneira opostos aos masculinos. O corpo da mulher foi considerado com base no modelo masculino e os seus órgãos, classificados de acordo com a finalidade. Os seios, por exemplo, eram vistos apenas pela sua finalidade de aleitamento.

No pensamento medieval, o matrimônio era enfocado na sua finalidade de procriação. Por isso não se falava do prazer sexual, mesmo dentro do casamento. Dessa forma, não existiram no Ocidente cristão condições para o desenvolvimento de uma verdadeira arte erótica.

Ao mesmo tempo, os discursos revelam o medo de um saber feminino sobre o sexo. Saber sempre envolvido em mistério e sempre suspeito de origem demoníaca. Tinha-se medo da mulher durante a menstruação e das que deixaram de menstruar.

As velhas eram consideradas particularmente perigosas. Pensava-se que elas conheciam os segredos do sexo e induziam as mulheres mais jovens ao pecado.

A mulher era vista como um tesouro a ser protegido e preservado, pois era fácil de se perder. Daí a necessidade de reprimir, vigiar e enclausurar. Deus é a cabeça de Cristo; Cristo é a cabeça do homem; o homem é a cabeça da mulher.

As mulheres que desejavam roupas cada vez mais bonitas e caras preocupavam os pregadores. Eles achavam que esse cuidado com a aparência e com o corpo se aproximava da idolatria. A maquiagem e os enfeites foram insistentemente condenados.

Apesar de afirmarem que a mulher devia ser protegida, os pregadores diziam que ela precisava ter autocontrole. Aconselhavam-na a não se divertir muito, a mostrar-se orgulhosa, comer pouco, dançar com compostura e mover-se com moderação. Alertavam para o perigo da bebida e do ócio. Contra as tentações, prescreviam o trabalho e a caridade.


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 232-235.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: os movimentos heréticos

Cena noturna da Inquisição, Francisco de Goya

No século XI, os movimentos denominados heréticos pela Igreja coincidem com as mudanças que ocorriam na época, entre elas o esforço dos chefes de famílias nobres para controlar o casamento, a renovação católica e a degradação da condição feminina.

Podemos ver nesses movimentos uma reação dos oprimidos por essas mudanças: filhos deserdados, mulheres que tinham seus direitos desrespeitados pelos homens, camponeses abastados que começaram a ser explorados por senhores feudais, clérigos que não concordavam com as imposições dos seus superiores, populações urbanas que queriam se livrar das imposições dos senhores.

Os cristãos, leigos e clérigos, que contestavam radicalmente o casamento, considerando-o um impedimento à salvação, encontravam apoio nas práticas monásticas tradicionais, que davam prioridade à vida em comunidade, à castidade e à obediência. Todavia, contrariavam o projeto de trazer o casamento para a esfera religiosa, de tornar sagrada a união matrimonial, para controlar melhor a sua prática.

Em muitas comunidades heréticas, as mulheres eram tratadas como iguais, abolindo-se as diferenças entre os sexos e colocando como ideal para ambos a pureza dos anjos. Esses puros eram um pequeno número, mas atraíam muitos simpatizantes. Aderir aos grupos heréticos era uma forma de reagir contra a intervenção da Igreja nas regras matrimoniais do povo. No fundo significava um protesto contra os privilégios do clero. Os hereges julgavam o clero inútil.

Como costuma acontecer com os movimentos contestadores da ordem, a heresia, perseguida e destruída, deixou pouca memória. Seus vestígios são encontrados na palavra dos vencedores, dos que a condenaram e destruíram.

As vozes dos vencedores procuraram ligar a heresia à mulher, ser que, na visão católica, era envenenador, instrumento de Satanás, eterna Eva que levava à perdição.

Como muitos hereges recusavam o casamento e o sexo, foram taxados pelos membros da Igreja como hipócritas e mentirosos. Na verdade, diziam os clérigos, praticariam a comunidade sexual, tendo relações com a mulher que estivesse mais próxima, fosse sua mãe ou irmã. Os filhos dessas relações monstruosas seriam queimados em rituais etc. Conhecemos, portanto, as vozes dos que venceram as heresias, mas muito pouco as dos vencidos.

Os bispos da Igreja venceram as heresias e acomodaram os seus interesses aos das altas linhagens nobres. Disso resultou um modelo de casamento e de comportamento sexual que se estabeleceu solidamente na sociedade feudal.

Esse modelo dava ao cristão apenas duas maneiras de lidar com a sexualidade. Como cônjuge, na moderação das relações matrimoniais - seguindo as normas e proibições -, e como dirigente da Igreja, renunciando ao sexo. O casamento seria uma proteção contra o mal.

O convento passou a ser refúgio das esposas repudiadas e das mulheres sem marido, ajudando a resolver a questão da bigamia e a do repúdio à esposa.

A acomodação entre a sociedade e a doutrina da Igreja sobre o casamento trouxe também a aceitação implícita da diferença entre o ensinamento e a prática.

A repressão ao sexo se afrouxava quando os laços do matrimônio não estavam em questão. O pecado era perdoado pela penitência, uma para cada tipo de falta. O pecador reafirmava a sua submissão à Igreja aceitando a penitência. Dava também uma satisfação à sociedade pelo seu erro. A sua prática contribuía, então, para a ordem social.


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 231-232.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: a sacralização do casamento

O casamento de Arnolfini,  1434, Jan van Eyck

O conflito entre o clero e a nobreza teve início na fase de desagregação do império carolíngio e se acentuou no século XI, quando o papa Urbano II empreendeu um movimento de reforma na Igreja. Ele se empenhou em combater os maus costumes do clero, principalmente o gosto pelos prazeres do mundo e, sobretudo, pelas mulheres.

[...]

Antes, até o final do século IX, o parentesco era sobretudo horizontal, estabelecendo um grupo formado por parentes consanguíneos e os seus aliados, congregando duas ou três gerações. Nesta forma de estrutura familiar, os homens e as mulheres estavam no mesmo plano.

No decorrer do século X e da primeira metade do XI esse modelo foi substituído por outro, no qual se privilegiava a verticalidade. Recordava-se cada vez mais um maior número de mortos em direção a um antepassado fundador da família. Cada família de nobres imitava, assim, as próprias dinastias de reis.

Nesse novo modelo, o chefe de família reforçava o seu controle sobre os casamentos. Facilitava o matrimônio das mulheres e dificultava o dos homens, pois este aumentaria os laços familiares por via masculina no sentido horizontal. Tentava-se, assim, concentrar o patrimônio nas mãos do primogênito. Foram colocados limites aos direitos de herança e extinguiu-se o antigo direito da mulher de doar bens.

Por esse costume, as mulheres da casa recebiam uma parte do patrimônio, que se transmitia de mãe para filha e de tia para sobrinha. Antes do casamento, também o noivo dava um patrimônio à futura esposa, do qual podia dispor livremente e que lhe garantia o sustento na viuvez ou quando fosse vítima de repúdio. Também esse costume se extinguiu lentamente. O poder e a propriedade se concentravam nas mãos do marido.

O primogênito devia se casar e dar continuidade à família, mas não os irmãos mais novos. Esses eram muitas vezes destinados à carreira eclesiástica ou enviados para longe para buscarem glória e fortuna. A esperança era encontrar uma herdeira, uma filha sem irmãos. Alguns não primogênitos chegavam a ser assassinados.

Essa prática criou uma série de pequenas dinastias rivais e manteve fixo o número de casas aristocráticas.

A mulher ficou mais estreitamente submetida ao homem, mas acentuou-se o medo que as esposas inspiravam aos seus maridos. Era um outro sangue introduzido na casa. Pelo veneno ou pelo adultério, ela poderia comprometer a perpetuação de uma estirpe.

[...]

Aos poucos o conflito foi dando lugar a uma adaptação, uma acomodação entre a nobreza e a Igreja. Com isso o casamento passou para a esfera do sagrado e foi submetido ao controle da instituição eclesiástica.

O movimento reformista católico do século XI visava basicamente a uma mudança nos costumes dos leigos e do clero. Foi uma verdadeira guerra contra o que era considerado vício. Procurou-se impor aos clérigos a sempre pregada abstenção do sexo e aos leigos a moderação, o comedimento.

[...]

O discurso que colocava o homem acima da mulher estabelecia também a submissão dos leigos ao clero, do temporal ao espiritual. Determinava celibato para o clero e casamento sob a autoridade da Igreja para os leigos.

O movimento de renovação acabou em uma definição do matrimônio como monogâmico, indissolúvel e sagrado.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 229-230.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: o confronto entre a moral católica e a moral germânica

Cena de abuso, Ambrogio Lorenzetti

Nos séculos que se seguiram à queda do Império Romano [...], a Igreja esteve empenhada em converter os povos bárbaros ao cristianismo e em estabelecer alianças com os novos donos do poder: os chefes guerreiros, a nobreza bárbara, os reinos que se formavam.

Entre os germânicos, assim como entre os romanos, o casamento situava-se praticamente fora da esfera religiosa, era muito mais civil. Significava um pacto conjugal e obedecia a uma série de formalidades. Seu principal sentido para a nobreza germânica era o de estabelecer alianças entre parentelas. O pacto conjugal mais ligava famílias do que indivíduos.

O auge da aliança Estado bárbaro-Igreja se deu na época carolíngia (séculos VIII e IX), marcada pela estreita cooperação entre o poder temporal e o poder espiritual. Essa aliança [...] fortaleceu a Igreja e a monarquia.

[...]

Os monarcas francos, sagrados pela Igreja, se sentiam na obrigação de implantar na sociedade os ensinamentos cristãos enunciados pelos bispos [...]. O senso de realidade das autoridades eclesiásticas e temporais levava a uma visão do casamento mais próxima da de Santo Agostinho do que da de Santo Ambrósio. Nada se ganharia condenando o casamento e o sexo de maneira radical. Para a ordem pública, o melhor seria moralizar o casamento.

No pensamento medieval, o mal vem do sexo, mas é possível atenuá-lo pela penitência. Os cônjuges deviam ficar afastados um do outro durante o dia, nas noites que precedem os domingos, nos dias de festas e solenidades e nas quartas e sextas-feiras. A abstinência sexual devia ocorrer também em determinados períodos do ano, como, por exemplo, na quaresma.

Acrescentam-se ainda as três noites após o casamento, o período menstrual, os três meses antes do parto e os quarenta dias após o nascimento dos filhos.

[...]

[...] Por isso não se deve casar por luxúria, mas para procriar. Se a procriação é a finalidade das relações sexuais, a virgindade deve ser guardada até as núpcias, e os que têm esposas não devem ter concubinas. O marido deve respeitar sua mulher e honrá-las como a um ser fraco. Deve também se abster dela quando estiver grávida. A mulher não deve ser expulsa de casa, nem se deve tomar outra. O incesto é pecado grave,

Monogamia, exogamia e repressão ao prazer são os pontos centrais dos ensinamentos.

Apesar desses ensinamentos, nessa fase a Igreja não havia ainda firmado o seu direito de ditar regras para a sociedade no que se refere ao casamento. De acordo com os costumes germânicos e mesmo com a tradição cristã, ele sempre havia sido considerado uma instituição social derivada da lei natural, não das leis sagradas. Os rituais do casamento eram civis e profanos, não religiosos. Era isso que a Igreja queria mudar.

[...]

A desagregação do edifício político que se seguiu ao período carolíngio criou um clima de insegurança. O poder se descentralizou, tornando mais difícil a aliança entre Igreja e nobreza.  Essa desagregação estimulou a reflexão dos homens da Igreja [...].

Esses pensadores procuraram recolher na tradição cristã os elementos para uma nova ação da Igreja, que pretendia combater as violências e atenuar o espírito turbulento da nobreza. [...]

Nessa nova ação, o casamento deveria ser, sobretudo, uma forma de repartir pacificamente as mulheres. Daí a preocupação com dois fatores de violência: o rapto e o divórcio.

Mas, mesmo com essa preocupação do clero, o casamento permanecia sob a jurisdição civil. Não havia uma liturgia matrimonial cristã. [...]

Essa moral cristã em muitos pontos estava de acordo com a moral da elite guerreira germânica sobre o casamento. Ambas concordavam, por exemplo, com a submissão da mulher ao homem, os perigos representados pela sexualidade feminina, a condenação do rapto... A honra de uma família nobre dependia em larga medida da conduta das mulheres, e nisso a Igreja podia prestar importante auxílio.

Em outros pontos, porém, como a condenação cristã do adultério e do incesto, essas duas morais não se harmonizavam.  [...]

A condenação do que a Igreja chamava de adultério contrariava a prática comum da concubinagem entre a nobreza.

Entre os francos, além do casamento legítimo, longamente acertado entre as famílias, o qual garantia a sucessão do patrimônio e dos títulos, havia outros tipos de união. Existia um casamento de segunda categoria, que servia para disciplinar a sexualidade dos rapazes nobres. Era uma união temporária, que podia ser desfeita diante da possibilidade de um casamento mais vantajoso. Neste casamento de segunda categoria, a mulher era mais emprestada do que dada, embora isso fosse feito solenemente, através de um contrato.

Além desse tipo de casamento, era comum a concubinagem, que resultava em um grande número de herdeiros de segunda classe e de filhos bastardos. [...]

A esposa legítima tinha como principal papel garantir a "perpetuação do sangue" e do patrimônio de uma família nobre. Se ela não concebesse herdeiros masculinos, isso já seria motivo mais que suficiente, aos olhos da nobreza, para um novo casamento.

[...] Os casos de incesto listados pela Igreja eram numerosos. As proibições iam até o sétimo grau de parentesco. O parentesco por afinidade também criava impedimento ao casamento, como o de padrinho com afilhada, entre cunhados etc.

Considerava-se que a valentia dos antepassados era transmitida pelo sangue. Daí o cuidado em escolher a esposa, pois dois sangues seriam misturados. Era preferível, então, que a esposa fosse aparentada ao marido. As rigorosas leis da Igreja proibindo o incesto impediam esse tipo de casamento.

Por outro lado, as leis extremamente severas de incesto acabavam neutralizando a proibição do divórcio. [...]

[...]

A tentativa de cristianização do casamento teve uma forte resistência da nobreza porque feria valores e interesses fundamentais dessa classe. Ao que parece foi mais fácil cristianizar o casamento nas camadas inferiores da sociedade, ou seja, entre pessoas que pouco possuíam. O casamento e o comportamento sexual recomendados pela Igreja substituíram as formas mais profanas de acasalamento e a concubinagem.

[...]


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 225-228.

domingo, 25 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: duas visões cristãs sobre o casamento

Um homem colocando um anel no dedo de uma mulher. Detalhe de miniatura do século XIV. James le Palmer

No início da Idade Média, a tradição cristã fornecia um pequeno número de ensinamentos acerca do casamento. Devido às contradições entre os dois papéis assumidos pela Igreja, havia vozes eclesiásticas dissonantes, todas se baseando na palavra de Deus. Uma doutrina católica sobre o casamento, coerente e uniforme, só se formou lentamente.

Duas concepções do casamento se opuseram com violência na cristandade até cerca de 1100. Como resultado desse conflito, foram instituídos usos e costumes que prevaleceram na sociedade ocidental até pouco tempo atrás.

É possível identificar em Santo Ambrósio (século IV) e Santo Agostinho (séculos IV-V), portanto já no início da Idade Média, os argumentos contra e a favor do casamento.

A primeira dessas concepções, que aparece nos escritos de Santo Ambrósio, foi herdada do cristianismo primitivo. Nela o casamento não é recomendado. Quando muito é tolerado. A vida ascética e o horror à mulher marcavam a vida do cristão ideal. Esse cristianismo foi influenciado pela filosofia greco-romana, que opunha a matéria ao espírito.

Dessa forma o casamento seria um mal em si, pois o marido é forçosamente um pecador. Ao amar com ardor sua mulher, comete pecado. O casamento estaria inevitavelmente manchado pelo prazer sexual, sendo um obstáculo à espiritualidade. Essa concepção opunha a vida terrena à salvação e o clero aos leigos.

A outra concepção do casamento conciliava as necessidades terrenas e as aspirações espirituais. Reconhecendo a importância do casamento no ordenamento social, procurou resgatar os seus possíveis pontos positivos. Os padres procuram salvar o casamento de sua maldição de origem. Para isso se centraram em Santo Agostinho, menos severo de que Santo Ambrósio em relação ao sexo e ao casamento. Em vez de condená-los, era necessário submetê-los ao sagrado.

Nessa concepção, o casamento é positivo por atenuar os defeitos de cada um dos sexos. Nele a mulher perde as suas manhas e o homem a sua brutalidade. E dessa harmonia nascem os filhos. A procriação é colocada como a principal finalidade do casamento.

Nesse conjunto de ideias, não é bom que o homem viva só. A mulher foi feita do homem e eles devem voltar a ser um só no casamento. Todavia, permanece a desigualdade original. A mulher deve estar submetida ao homem, assim como deve sofrer as dores do parto, por uma designação divina.

Santo Agostinho diz que o homem é a parte espiritual e a mulher a parte sensual da condição humana. Por isso o casamento permite a submissão da carne ao espírito. Mas para que isso se efetive, o homem deve superar a fraqueza que levou Adão à perdição e reinar sobre sua esposa.

Depois de um longo processo de elaboração, a Igreja conseguiu firmar uma doutrina e um ritual do casamento.


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 224-225.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: os dois papéis da Igreja

Casal dançando e celebrando o amor. Não combinava com o saber produzido pelos homens da Igreja sobre o casamento e a sexualidade.

Com a queda do Império Romano, a Igreja foi a única instituição desse Estado que sobreviveu. Gradativamente ela conseguiu converter os bárbaros à fé cristã e assumir o papel de guia espiritual da sociedade medieval que se constituía sobre os escombros do império.

A Igreja medieval se propunha a desempenhar dois papéis, que nem sempre se harmonizavam. O primeiro, como representante de Deus na terra, era o de apontar o caminho da salvação, do retorno à casa do Pai. Para isso prescrevia uma série de princípios morais, difíceis de serem seguidos na vida cotidiana, uma vez que essa é marcada pelas necessidades materiais e pelas relações de poder.

O segundo papel, como instituição poderosa, rica e com um vasto quadro de funcionários permanentes (o clero) era o de regular a vida social e política, contribuindo para a sua permanência e reprodução. O primeiro papel levava a Igreja a se contrapor à sociedade laica, e o segundo a se confundir com ela, visto que era uma instituição privilegiada na repartição da riqueza e do poder.

Os dois papéis obrigavam a Igreja a se preocupar com o casamento. Era o matrimônio que regulamentava a divisão das mulheres pelos homens e disciplinava, em volta delas, a competição masculina, Era ele que oficializava, socializava e colocava ordem na procriação e na sexualidade.

Ao regulamentar essas forças vitais do ser humano, o casamento tocava no domínio do misterioso e do sagrado. Por outro lado, designando quem eram os pais, o casamento estabelecia os herdeiros e os parentes. Por essa razão o papel da instituição matrimonial variava conforme a posição social e econômica dos herdeiros. Ela não era a mesma para todos os grupos sociais.

O casamento era, portanto, o alicerce do edifício social, um ponto de junção entre o material e o espiritual.

Para manter a ordem social, era preciso que a vida material, incluindo a economia e a política, estivesse ajustada à espiritual, mas houve momentos em que isso deixou de acontecer. Essa contradição levou à mudança.


PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 222-224.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: a família germânica

Antiga família germânica, Grevel

[...]

Os bárbaros germânicos se organizavam em comunidades agrícolas e pastoris com um mínimo de desigualdade social. As lideranças guerreiras gozavam de prestígio, mas este não resultava na dominação e na exploração econômica de um grupo social sobre outro. As terras eram periodicamente redistribuídas, o que impedia que as melhores terras se acumulassem nas mãos de algumas famílias.

Todavia o próprio contato com os romanos foi dissolvendo a organização comunitária germânica. A desigualdade econômica e social foi se generalizando: formou-se uma casta de guerreiros hereditários, com privilégios e riquezas.

Com essa mudança, o casamento passou a ter uma nova importância social e política entre os bárbaros germânicos, pois dele dependia a transmissão dos bens acumulados e do poder estabelecido.

Nessas sociedades bárbaras já transformadas pelo contato com os romanos, o casamento podia resultar de três processos: a compra, o rapto e o consentimento mútuo. Assim, do ponto de vista de seu pai, uma mulher era principalmente um bem móvel. Como tal, era vendida, perdida pelo rapto ou usada para fazer alianças. Uma vez constituído o casal, a mulher se tornava companheira do marido.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 222.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Família e sexualidade na Europa Medieval: a família romana

Neste afresco romano, uma sacerdotisa do deus Baco dança tocando pratos. Para os romanos, o amor era fonte de prazer e símbolo da vida, incorporado na religião. A moral cristã tentou reverter essa característica. Vila dos Mistérios, Pompeia.

Na Roma pagã as pessoas casavam mais por dever cívico e interesse político do que por amor. O desejo, o amor e a afetividade ocorriam mais fora do casamento do que dentro dele. A procura do prazer pelo homem fora do casamento, desde que não afetasse a ordem social, era considerada normal.

De maneira geral, a mulher estava submetida à autoridade do homem, primeiro como filha e depois como esposa. Mas, como sempre acontece, essa submissão não era absoluta. Na política e no espaço público, o homem romano, aparentemente, decidia tudo, mas no espaço doméstico predominava a mulher, a administradora do lar. Esta possuía uma posição honrosa, mas tanto a lei como os costumes procuravam limitar o seu espaço às fronteiras domésticas.

O poder do marido era contrabalançado de várias maneiras. A figura do pai, por exemplo, ficava acima da do esposo, pois o matrimônio romano era sine manu, ou seja, a autoridade paterna não se transferia ao marido.

Mesmo na casa do pai, a mulher possuía alguma liberdade. Aquelas em idade de casar podiam administrar os seus bens e escolher seu marido. Mas sua ação era restringida pelo padrão duplo que regia o comportamento sexual: o homem tinha liberdade de procurar o prazer fora do casamento, mas a mulher não.

Convém ressaltar que as informações que temos sobre a mulher na sociedade romana antiga se referem quase exclusivamente às mulheres das famílias aristocráticas. Mas é possível saber que as das classes mais baixas, especialmente as escravas, tinham poucas opções de decidirem sobre as suas vidas. Se os seus senhores as achassem atraentes, tornavam-se suas concubinas.

Essa família romana tradicional, na fase de decadência do Império Romano do Ocidente e de ascensão da Igreja (séculos IV e VI), já estava bastante transformada pelo cristianismo. Este deu oportunidade à mulher de se tornar uma pessoa independente, e não somente filha, mulher e mãe de alguém.

Na visão cristã primitiva, as mulheres são seres espirituais com a mesma potencialidade dos homens para a perfeição moral. No entanto, a evolução do cristianismo primitivo para a institucionalização da religião e a formação da Igreja Católica [...] n]ao favoreceu a mulher.

A vitória do cristianismo na sociedade romana dependeu de uma acomodação entre o comportamento dos cristãos e os interesses do Estado. O radicalismo primitivo, que fazia com que as autoridades romanas vissem o cristão como um mau cidadão, teve de ser atenuado. O casamento e a sexualidade, que antes eram tidos como obstáculos à salvação, passaram a ser compatíveis com a religião.

A acomodação entre a moral romana e a cristã no que se refere à sexualidade foi bastante problemática. O amor era visto pelos romanos como sagrado, misterioso, fonte de vida e de prazer. Os primitivos cultos aos deuses romanos da fertilidade e do amor incluíam o uso de símbolos fálicos e relações sexuais entre os que cultuavam esses deuses.

Bem ao contrário, a sexualidade na moral cristã está ligada ao pecado e, como tal, é uma fraqueza a ser vencida no caminho da salvação. Esse cristianismo primitivo considerava de modo negativo o próprio matrimônio e a procriação. O casamento era visto como uma concessão às exigências do corpo. Os prazeres da vida desviaram o crente do verdadeiro caminho.

A vitória do cristianismo, que acabou se tornando a religião oficial do Império Romano, fez com que a visão romana tradicional sobre a sexualidade fosse suplantada pela moral cristã, mas esta teve de alterar o seu radicalismo original para se tornar aceita pela maioria da população.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 219-221.

sábado, 17 de setembro de 2016

O épico de Gilgamesh

Tábua em escrita cuneiforme contendo trechos do épico de Gilgamesh

Gilgamesh é um herói lendário da literatura mesopotâmica. No século VII a.C., as suas aventuras foram registradas por um rei assírio, mas a sua origem é muito mais antiga. É possível que o personagem Gilgamesh se baseasse em um rei que governou Uruk entre 3000 e 2500 a.C. O épico fala de um rei semideus e semi-humano de Uruk que, consumido pelo desejo de aventuras, parte em busca da vida eterna. O épico pode preservar algo da história mesopotâmica antiga no personagem do selvagem Enkidu domado pelos deuses, que depois ajuda um grupo de pastores. Mais tarde, ele é levado a uma cidade agrícola onde luta com Gilgamesh e depois se torna seu amigo. O progresso de Enkidu pode ser interpretado como representação da evolução gradual dos mesopotâmios de caçadores-coletores selvagens a moradores civilizados da cidade.


WOOLF, Alex. Uma Nova História do Mundo. São Paulo: M. Books do Brasil, 2014. p. 22.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Abelardo e Heloísa: amor e tragédia

Representação de Abelardo e Heloísa em ilustração de manuscrito francês de 1370. Artista desconhecido

Pedro Abelardo (1079-1142) era um brilhante professor de Dialética (Lógica) em Paris, na França. Heloísa (1101-1164) era a jovem e culta sobrinha de Fulberto, o cônego da catedral de Notre-Dame. Quando se conheceram, ele tinha 36 anos e ela 17. Abelardo, para ficar mais próximo da moça, convenceu o cônego a dar-lhe abrigo e passou a lecionar para ela.

O cônego não suspeitou que os dois tivessem iniciado um relacionamento amoroso. Quando descobriu a paixão entre sua sobrinha e o professor, Fulberto expulsou Abelardo de sua casa.

O casal continuou a se encontrar secretamente e a moça engravidou, dando à luz o filho longe de Paris para evitar escândalos. Contrariado, o cônego consentiu que Abelardo e Heloísa se casassem às escondidas, mas não perdeu a chance de se vingar do ultraje: contratou uns homens para invadir os aposentos de Abelardo e castrá-lo. Humilhado e envergonhado, Abelardo se tornou monge, ordenando que sua esposa fizesse o mesmo.


O amor de Abelardo e Heloísa, Jean Vignaud

A partir de então, nunca mais se viram, e comunicaram-se apenas por cartas. Mais do que protagonistas de uma trágica história de amor, Abelardo e Heloísa passaram a ser vistos como exemplos de liberdade intelectual e moral em uma época de rígidas convenções religiosas e sociais. Além disso, simbolizavam o amor em suas diversas formas (físico, intelectual e espiritual).

Não é possível comprovar a veracidade dos textos hoje conhecidos como as cartas de Abelardo e Heloísa, uma vez que, ao longo de séculos, tal correspondência foi numerosas vezes transcrita, recriada, poetizada. Alguns estudiosos se referem a elas como um mito literário. Ainda assim, a popularidade dessas cartas, em suas várias versões, traduzidas para diversas línguas, contribuíram para disseminar a história desse amor proibido, bem como os valores da época e a situação da mulher na sociedade medieval.

NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana. História para o ensino médio. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 131.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Uma greve no Egito antigo

Israel no Egito - detalhe, Edward Poynter

Os trabalhadores dos templos eram relativamente privilegiados: eram vestidos e alimentados pelo governo e, graças ao seu número e à união que sempre mantiveram, podiam recorrer à greve quando suas reivindicações não eram atendidas.

O serviço de fornecimento de víveres aos trabalhadores era prejudicado pela preguiça e desleixo dos escribas. Por isso, as queixas eram frequentes; eles queriam apelar ao Governador, e os escribas, temerosos, lhes forneceram mantimentos para um dia, como vemos no documento a seguir:

"O escriba da contabilidade e os sacerdotes da necrópole de Tebas ouviram as reclamações dos trabalhadores [...]
- Nós estamos sem roupas, nós estamos sem medicamentos, nós estamos sem peixes [...] Tendo mandado um representante ao Faraó, nosso Senhor, para expor a situação, nós nos dirigiremos ao Governador, nosso Superior. Que nos dêem os meios para que possamos viver.
Eles lhes forneceram os víveres para aquele dia."

Como suas exigências não foram atendidas, os trabalhadores forçaram os portões da necrópole, sendo contidos pela guarda.

"Por ordem do Governador, o comandante da guarda parlamenta com os trabalhadores:
- Não fui eu que impedi vocês de chegar até os víveres [...] Não fui eu que coloquei os policiais nos portões [...] Abram os celeiros. Eu vos dou tudo aquilo que lá encontrarem."

O Governador, através de seu porta-voz, declarou-se inocente em relação aos abusos cometidos, autorizando os trabalhadores a pegarem nos celeiros tudo o que encontrassem. O escriba, no entanto, procurou reduzir a vitória dos trabalhadores, dizendo:

" - Eu vos dou a metade dos víveres e eu mesmo farei a partilha."

Obviamente, a distribuição foi insuficiente. Um líder dos trabalhadores, então, incitou seus companheiros para que atacassem o porto, onde um carregamento de trigo estava sendo desembarcado, assumindo a responsabilidade de avisar o Governador.

"O escriba, temeroso da invasão, distribuiu todo o trigo que estava no porto. Porém, como encontrasse, mais tarde um portão arrombado, advertiu os trabalhadores:
- Por que vocês forçaram a entrada do porto? Eu vos dei todo o trigo assim que o pediram. Partam logo, senão eu vos considerarei culpados por todo objeto que desaparecer." (Extraído do Papiro Hierático existente no Museu de Turim.)

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli]. Fazendo a História: da Pré-história ao Mundo Feudal. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989.

domingo, 11 de setembro de 2016

American way of life

A nova posição feminina expressava-se por meio de comportamentos considerados ousados e vistos pelos conservadores como mais uma "prova" de decadência nos padrões de convivência humana: encurtamento das saias até os joelhos, cabelo curto, hábito de frequentar bares e prática de danças como o foxtrote e o charleston. 
Foto: Inspeção de trajes de banho em 1919, Estados Unidos. Se o modelo fosse muito curto, a moça tinha que pagar multa

O milagre americano criou condições para que aflorasse, nas classes médias e na burguesia, um estilo de vida considerado modelo da moderna civilização ocidental: o american way of life (modo de vida americano). Tal como as mercadorias, ele foi exportado para o mundo todo¹.

* Prosperidade e liberdade. O modo de vida americano, tendo como base a riqueza, caracterizava-se pela construção de edifícios grandes e modernos, pela multiplicação de bairros residenciais cujas casas se ligavam por jardins e gramados, pelo aumento do número de carros e de aparelhos domésticos. Cada vez mais gerava-se a necessidade de consumir, alimentada pela propaganda e pelo crediário.

Na década da prosperidade presenciou-se também uma mudança na vida social e nos costumes, principalmente no que se refere à emancipação feminina. A mulher conquistou o direito de coto (1920), condição para a igualdade política. Nas décadas subsequentes, além de votar, as mulheres ocuparam cargos públicos e privados em vários escalões hierárquicos.

Contudo, a discriminação nos salários continuaria por muito tempo. Apesar disso, em 1940 as mulheres constituíam 25% da mão de obra do país, quando, em 1900, não passavam de 17,7%. A saída da mulher do lar e o trabalho ao lado do homem trouxeram mudanças significativas nos costumes e hábitos sociais. Cresceram sobretudo as reivindicações por igualdade de direitos.

A maior utilização do automóvel também provocou mudanças sensíveis no comportamento cotidiano, principalmente dos jovens, que puderam manter relações mais abertas e livres, longe do controle dos pais.

* Intolerância e fanatismo. A década de 1920 também foi marcada por manifestações de crescente intolerância, fanatismo e chauvinismo entre todas as classes e em todos os setores da sociedade norte-americana.

A política do cordão sanitário imposta à Rússia fez aflorar o medo do comunismo. O exacerbado chauvinismo intensificou o anti-semitismo, e a legislação praticamente pôs fim à imigração da Europa Meridional e Oriental. Organizaram-se ainda campanhas contra católicos.

Tomava corpo uma ideologia que reconhecia como 100% norte-americanos apenas os brancos e protestantes abastados, justificando perseguições aos negros, às outras minorias raciais e aos pobres em nome da preservação de um hipotético ideal de vida norte-americano.

Passou-se a investigar o conteúdo de livros didáticos e manuais escolares, para abolir as obras que não contivessem a apropriada glorificação do passado norte-americano. Grupos paramilitares, contando com o apoio de uns e o medo de outros, dominaram virtualmente o panorama de alguns estados, sobretudo os sulinos.

Nesse contexto, surgiu, em vários estados, a temida Ku Klux Klan², organização que fazia violenta pressão em prol do norte-americano 100%. Em 1925, a organização contava com aproximadamente 5 milhões de membros, levando fanatismo, violência e corrupção onde quer que penetrasse.

Outro componente do norte-americano 100% foi a ênfase na moralização dos costumes. Surgiram, então, várias ligas que se arrogavam o direito de defender qualquer aspecto da "civilização norte-americana" considerado em perigo. De 1919 a 1933, por exemplo, proibiu-se a fabricação, venda ou transporte de bebidas alcoólicas. A chamada Lei Seca contribuiu para o aparecimento de contrabandistas de álcool, os gângsteres e suas quadrinhas, cujo representante mais famoso foi Al Capone. (NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 434-435.)

 Agentes de proibição destruindo barris de álcool, Chicago, 1921

¹ Na década de 1920, os Estados Unidos estavam embriagados pelo elixir da prosperidade. O mundo não tinha visto nada parecido até então. [...] A família média americana vivia melhor, comia melhor, vestia-se melhor e usufruía mais da sociedade de consumo do que qualquer família média de outra parte do mundo. Eufóricos, os norte-americanos consumiam freneticamente relógios de pulso, geladeiras, latas de ervilhas, aparelhos de barbear, enceradeiras e tudo mais que o dinheiro e o crediário pudessem comprar. Enquanto na Europa a média era de um carro para 84 pessoas, nos Estados Unidos era de um para cada seis pessoas. (CAMPOS, Flávio de; MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da história. São Paulo: Escala Educacional, 2005. p. 464.)

² A Klan foi organizada em 1915 pelo professor de história e pregador laico William J. Simmons. Adotou como modelo a organização de encapuzados que aterrorizava o sul do país depois da Guerra Civil. Os adeptos da Klan eram recrutados, principalmente, entre pessoas da classe média. Como só os protestantes brancos e nativos eram considerados capazes de compreender "racialmente" o norte-americanismo, a Klan deliberou a eliminação de católicos, judeus, negros e da maioria dos estrangeiros.

Referências:

CAMPOS, Flávio de; MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da história. São Paulo: Escala Educacional, 2005. p. 464.
NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 434-435.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O dia do juízo (Parte 3)

O julgamento final (detalhe), Fra Angelico

Todos levantaram-se.

E durante dois dias prepararam-se para a festa. Fariam um ataque-surpresa. Filipe queria que a abadia fosse totalmente destruída pelo mais cruel e violento saque de que a Europa tivera notícias.

Se o castelo de Albey permanecera exatamente igual, o mosteiro de Louvenne, ao contrário, estava muito diferente. Havia sido ampliado em quase dois terços da construção original. Já do lado de fora, podiam ser percebidos ornamentos luxuosos, e, pelos rumores que se escutava, era possível concluir que a festa que se realizava em seu interior devia ser memorável.

Seus homens armados de espadas, pedras e archotes se aproximaram. A ferocidade deles aumentava na medida em que o mosteiro se tornava mais palpável. Fanatizados pela ideia de que sua missão era divina, adquiriam uma nova e poderosa força. Essa era a maior arma que possuíam, embora não tivessem consciência disso.

Enquanto isso, no interior da abadia, com todos ignorantes do que se passava la´fora, a festa prosseguia.

À cabeceira da comprida mesa de carvalho, encontrava-se Samuel Garbois. A sua frente desfilavam faisões, porcos e carneiros, frutas e vinho com fartura. O abade rejubilava-se. Sua abadia ostentava um raro luxo para a época. Com seus 66 anos, era um homem bastante velho, mas vivera o suficiente para ver seu sonho realizado.

O excesso de alimentos e vinho ingeridos criava uma certa sensação de irrealidade. Era um homem obcecado por uma ideia que vira pouco a pouco, ao longo de trinta anos, ser transformada em realidade. Agora que estava tudo concluído, olhava sua obra com certa incredulidade. Era um sonho que se materializava; e agora, o que fazer? Contemplar a obra, apenas isso. Não restava mais nada. Tentava, mas não conseguia esconder uma certa sensação de vazio, apesar de todo júbilo. Eram sentimentos contraditórios que brigavam dentro dele e turvavam sua plena realização naquele dia.

Se pudéssemos penetrar em seus pensamentos, veríamos desfilar em sua cabeça todas as relíquias e tesouros acumulados nesses anos, veríamos pedra por pedra assentada que tornara a Abadia de Louvenne a maior de toda a região.

Veríamos, também, a incômoda certeza de que tudo estava concluído e que não restava mais nada a fazer além de esperar a morte.

Algo de anormal estava acontecendo. Mergulhado em seus pensamentos, não notara que havia uma certa agitação no ar, que trouxe Samuel Garbois de volta ao local onde se encontrava. Estava entorpecido pelo vinho, a visão turvava-se a sua frente, mas percebeu que algo ocorria. Havia uma tensão que fazia com que as pessoas falassem mais baixo, como se estivessem à espera de um grande acontecimento; o ar tornara-se quente e pesado. Começaram os ruídos, no princípio quase inaudíveis, depois fortes demais para se poder ter a ilusão de que era só impressão. O cheiro de fumaça começou a se espalhar e em pouco tempo podia-se ouvir as pessoas tossirem sufocadas, e a fumaça tornou-se tão espessa que a embriaguez do vinho já não era capaz de turvar nada, pois já não se via nada, ou quase nada. Começaram a cair as pedras. Eram tão grandes que cada uma que caía provocava um estrago considerável. As pessoas, apavoradas, começaram a correr sem saber para onde ir, e a maioria acabou seu caminho na ponta de uma espada. Samuel Garbois não se movia. Em algum lugar nesse processo, a razão o abandonara, e através de seus olhos dementes o que se poderia enxergar era a própria visão do apocalipse. Quando viu Filipe parado a sua frente, acreditou realmente que o Dia do Juízo chegara e que os mortos finalmente haviam se levantado.

Filipe olhou para o abade por uns instantes. Aquele homem que sempre causara asco, agora, encurralado naquela cadeira, com os olhos ensandecidos vendo apenas destruição a sua frente, só conseguia lhe despertar pena. Não teve coragem de matá-lo.

Ordenou bruscamente a seus homens que levassem tudo o que pudessem carregar, e o que não pudessem, destruir. Partiram para o Castelo de Albey, onde Filipe pretendia assumir o lugar que era seu de direito, de Senhor do Castelo.

Samuel Garbois olhou ao seu redor. O fogo ainda ardia em alguns pontos. Viu homens estendidos pelo chão. Um rio quente de sangue corria sob seus pés. De seu sonho só restavam escombros. Sentou-se em um banco semidestruído e teve ainda um momento de lucidez, o suficiente apenas para perceber que de medo havia se sujado todo.

Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo; Clube do Livro, 1988. p. 25-28.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O dia do juízo (Parte 2)

O juízo final (detalhe), Michelangelo

No fim de uma acentuada curva na estrada, o Castelo de Albey surgiu à sua frente, imenso e sombrio. Estava tudo exatamente como ele se lembrava. Mais umas duas horas de caminhada e chegariam lá.

Para chegar ao castelo teriam que passar próximo à Abadia de Louvenne. Quanto mais se aproximavam, mais Filipe notava que havia ali uma movimentação anormal.

Seguiam seu caminho quando escutavam o barulho de cascos batendo no chão. Assim que avistaram o cavaleiro, Filipe percebeu pelas roupas e ornamentos quem era e de onde vinha.

Ao avistar aquele bando de homens andrajosos e enlameados, de aspecto ameaçador, o cavaleiro tentou recuar, mas já era tarde. Percebeu que havia sido cercado. O aspecto deles não deixava dúvidas: eram saqueadores.

- Não me matem! Eu entrego tudo o que trago comigo!

- Somos muitos e a fome é muito grande. O que traz consigo não é suficiente. Se quer viver dia o que se passa na abadia!

- É uma grande festa. A abadia foi reformada e hoje comemora-se a conclusão das obras, que duraram mais de trinta anos.

- Quem é o abade?

- Samuel Garbois é seu nome. É um homem muito velho e bondoso, que viveu para glorificar Deus com essa obra.

- Às custas de milagres ocorridos no Castelo de Albey há muitos anos, não estou certo?

O outro olhou espantado para aquele que assim lhe falava e que parecia ser o chefe do grupo.

- A história de meu querido irmão, morto há dez anos, tem-se espalhado por fronteiras que não imaginávamos. Sim, foi um verdadeiro milagre, e lamentamos muito a perda de Filie, esse era seu nome. Nasceu marcado para grandes obras, mas a vida o arrebatou muito cedo.

- A grande obra de Filie ainda nem começou, meu caro Francisco, e se lamenta tanto a morte do irmão, por que não procurou salvá-lo dos saqueadores que invadiram o castelo há dez anos, por que não pagou o resgate que exigiam para devolvê-lo, ao invés de abandoná-lo à sua própria sorte? - disse Filipe, afastando o cabelo da testa e que encobria seu sinal de nascença.

- Meu irmão! Então você ainda vive?

Francisco estava pálido de morte. Sentiu no olhar do irmão fúria e ódio gelados que lhe arrepiaram o corpo e lhe esfriaram o sangue.

Filipe não vacilou, e sua mão estava bem firme quando cravou sua espada bem na altura do coração do irmão, antes mesmo que este tivesse tempo de perceber o que acontecia.

Por um momento o silêncio foi total, só sendo cortado pelo barulho da chuva que transformava o vermelho vivo do sangue que corria em vermelho pálido, até se misturar na lama e ser engolido pela terra.

Filipe quebrou o silêncio.

- Se há uma festa na abadia, eu deveria ser o convidado de honra. Vamos, vou reclamar meus direitos.

Seus homens vacilaram. Saquear um castelo, mesmo que fosse a quase inexpugnável fortaleza de Albey, era uma coisa que fariam sem pensar duas vezes. Eram homens duros e desgraçados, que caminhavam dia a dia ao lado da morte, e por esta ser uma presença tão constante não os assustava. Mas saquear uma abadia? Isso eles não poderiam fazer. A abadia era um lugar sagrado, e isso significava ofender a Deus. E se a ira divina se voltasse contra eles? Fazia-os tremer a simples ideia de tormentos inimagináveis que cairiam sobre eles. Não, não iriam.

Estavam acampados próximo à abadia. Filipe pensava exaustivamente numa saída para esse impasse.

Levou instintivamente a mão à testa.

Levantou-se, caminhou com vagar para o centro do acampamento, onde seus homens estavam reunidos em volta de uma pequena fogueira que ameaçava acabar-se a todo instante, pois a chuva prosseguia.

A luz do fogo refletia-se nos olhos de Filipe, que naquele instante parecia terrível e implacável, mesmo a seus homens.

- Trago estampado na testa o sinal sagrado da cruz desde o dia em que nasci. Vocês temem saquear a abadia por ser um lugar sagrado, mas se esquecem de que um sinal divino orienta esta ação. O lugar é sagrado, os homens que o habitam não. Seus atos infames e impuros só têm feito ofender a Deus durante todos estes anos. Cabe a nós, homens escolhidos por Deus, e para provar isso existe o sinal, vingá-lo. Quem se recusa a me seguir se recusa a fazer o que o Senhor ordena. Para esses, os tormentos do inferno estão reservados. Quem quiser me seguir fique de pé, os outros permaneçam sentados.

Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 22-25.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O dia do juízo (Parte 1)

[As profecias não se cumpriram. O ano mil chega e o mundo não se acaba, como todos esperavam. pelo menos para alguns, não. Mas a espada do fim dos tempos continua pairando sobre todas as cabeças, e as palavras da autora deste conto parecem querer lembrar isso a cada passagem da narrativa.

O motor principal da vida europeia nesses tempos resume-se à fé religiosa; crer ou não crer. Uma enorme legião de desesperados de um lado; do outro, reis, nobres e sacerdotes manipulando o poder e as riquezas em proveito próprio, num universo à parte, onde o futuro é limitado apenas a cada minuto vivido.]

 O último julgamento (detalhe do painel central do tríptico, com o Arcanjo Michael pesando as almas), Hans Memling

"Então abriu-se no céu o templo
de Deus, e apareceu a arca do
seu testamento no seu templo,
e sobrevieram relâmpagos, e vozes,
e um terremoto, e uma grande
chuva de pedra."
Apocalipse de São João, Capítulo 11, versículo 19.

Filipe olhou para seus homens e deixou escapar um profundo suspiro de desânimo. Caminhavam havia cinco dias em direção ao distrito de Albey. Estavam cobertos de lama de tal forma que mais pareciam bonecos de barro do que gente e nem a chuva incessante que os fustigava durante todo esse tempo conseguia limpá-los.

Famintos e esfarrapados, deixavam-se levar pela simples promessa de que no fim da jornada haveria comida para todos. A fome era um espectro ancestral que pairava sobre a Europa desde gerações incontáveis, mas que de dois anos para cá, com as chuvas ininterruptas, que não permitiam sequer abrir um único rego para semear o trigo, tornara-se mais vivo e presente do que nunca. As pessoas devoravam tudo o que podiam encontrar pela frente, e não era raro encontrar carne humana sendo vendida normalmente nos mercados. Havia até quem, em completo desespero, se atirasse ao chão para comer terra.

Filipe e seus homens não estavam em situação diferente, por isso a ideia de um saque no Castelo de Albey não chegara a assustá-los, pois sabiam que lá haveria fartura de alimentos. Era isso que os fazia mover-se, que os mantinha vivos, que os fazia caminhar, apesar da chuva, da fome, do frio e do medo.

Estávamos no ano de 1033. Há 33 anos, exatamente na entrada do ano mil, nascia em Albey um menino com um pequeno sinal de nascença na testa. Era o primeiro filho homem de Maximiliano e Catarina de Albey.

Filipe, é claro, não se lembrava dos acontecimentos daquele dia. Não se lembrava por exemplo das estrondosas gargalhadas de seu pai, já bastante bêbado, conseguia abafar os gritos de dor de sua esposa prestes a dar à luz. Também não se lembrava da opulenta festa que se realizava no castelo no preciso momento em que nascia. Apenas sabia, porque isso lhe fora contado mais tarde, que seu nascimento provocara grande alvoroço no castelo por causa do sinal de nascença. Era uma pequena cruz vermelha bem no meio da testa. A crença de uns e ambição de outros fez com que isso fosse interpretado como um sinal divino. Havia até quem afirmasse que o menino era Filho de Deus enviado à terra para o Dia do Juízo.

Samuel Garbois, Superior da Abadia de Louvenne, se encontrava no castelo de Maximiliano naquele dia. Era um homem de trinta e poucos anos, a quem a natureza dera, além do excesso de gordura, muita astúcia e um certo apreço mal disfarçado pelas coisas materiais.

Sua grande ambição era poder restaurar e ampliar sua abadia de tal forma que as abadias e mosteiros das regiões vizinhas parecessem insignificantes.

Ao se dar conta do que acontecera, percebeu que chegara sua oportunidade. A ideia era reforçar e explorar ao máximo a crença de que o menino fora escolhido por Deus e que o sinal era a prova de que Ele queria nos dizer algo.

Certa noite em que o abade e Maximiliano jantavam juntos, Samuel Garbois colocou seu plano em prática;

- A fama do pequeno Filipe tem se espalhado rapidamente.

- É verdade. Desde que nasceu não pararam de chegar peregrinos por aqui.

- Eu sei, Maximiliano. Tenho hospedado na abadia homens e mulheres de elevada posição, que vêm de toda parte só para ver o menino. É uma pena que a abadia seja tão pequena e humilde e que necessite de urgentes reformas.

- E por que não as fazem, senhor abade?

- Ah, senhor! A fé é grande, mas as doações pequenas. Não temos recursos suficientes.

Maximiliano ficou em silêncio por instantes. Não lhe parecia bem, em seus domínios, uma abadia tão humilde e necessitada. Ainda mais agora que acontecera um milagre dentro de sua própria casa. E se lhe tivesse sido enviado esse sinal justamente para que ele fosse o realizados de uma grande obra para a glória de Deus? Decidiu fazer grande doação para que a Abadia de Louvenne se tornasse a mais rica da região.

Samuel Garbois sorriu feliz. Iria finalmente realizar seu sonho.

Enquanto caminhava no meio da lama e da chuva, Filipe recordava sua infância.

O Castelo de Albey situava-se na encosta de uma montanha. Era uma imensa fortaleza de pedra cujas fortificações tinham, durante muito tempo, impedido saques e pilhagens.

Desde o nascimento de Filipe uma grande transformação havia ocorrido na vida das pessoas que habitavam o castelo e suas redondezas. Uma atmosfera mística os envolvia, sempre renovada pela constante vinda de peregrinos.

Filipe tinha verdadeiro horror aquelas visitas. As pessoas lhe faziam promessas, pedidos, quase exigiam que fizesse algum milagre para provar que era santo. E ele nunca se sentira santo, apesar da cruz estampada na testa. Suas horas de alegria eram aquelas dedicadas às artes da guerra, quando se iniciou no aprendizado da cavalaria. Seu sonho era tornar-se um grande senhor guerreiro.

Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 17, 19-22.