Jagunços do Contestado.
Foto: Claro Jansson
Em estudo clássico, Rui Faço mostrou a distinção entre fenômenos sociais que muitas vezes se confundem.
“No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as populações
rurais, mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a sua
ideologia só podia ter um cunho religioso, místico, que se convencionou chamar
de fanatismo. Sob essa denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos
ou do Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço: fanáticos. Quer dizer,
adeptos de uma seita ou misto de seitas, que não a religião dominante.
Só que a seita por eles abraçada, fortemente influenciada pela religião
católica, que lhe dá o substrato, era a sua ideologia. Como toda ideologia, um
conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos etc., que traduzem suas
condições materiais de vida, seus interesse, seus anseios de libertação e seus
próprios métodos de luta.” (FACÓ, Rui. Cangaceiros
e fanáticos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963. p.
47-48)
Não podemos, contudo, considerar
que Canudos, Contestado e outros ajuntamentos menores de trabalhadores rurais
sejam reduzidos apenas a conflitos de fundo religioso, a simples movimentos
oriundos do fanatismo sertanejo, como afirmam Pedro Calmon, Pandiá Calógeras e
outros autores presos a enfoques da História Oficial, eivados de preconceitos e
de conceituações mitificadoras.
Tanto na Bahia como no Brasil
Meridional, a concentração da propriedade nas mãos de poucos gerou – e ainda
hoje o fenômeno se processa – uma grande massa de trabalhadores rurais
desempregados. Eram antigos pequenos e médios proprietários, posseiros,
agregados, rendeiros, vaqueiros sem perspectivas, ex-escravos. Marginalizados,
esses grupos populacionais desenraizados, pobres e miseráveis, na sua maioria
incluíam mestiços e negros.
Muitos migravam para outras
regiões do Brasil. Viajavam sozinhos ou com suas famílias. As secas que
ocorriam no Nordeste tornavam mais trágica a existência desses sertanejos, que
acabaram sendo conhecidos como jagunços.
De acordo com mestre Aurélio
Buarque de Holanda, a palavra jagunço é corruptela de zaguncho, arma de arremesso, espécie de lança, com ponta de ferro e
haste de madeira. Com o tempo, o termo passou a ser usado para designar todo
aquele que manejava aquela arma. Contudo, a expressão jagunço acabou variando
no tempo e no espaço.
“Na região do médio São Francisco, em fins do século XIX, o jagunço era
um homem temente à lei, que só pegava em armas, sob a responsabilidade do
chefe.
Distinguia-se do bandido e do cangaceiro que ‘afrontavam e desprezavam
a lei’.
Entretanto, na Bahia, em fins do século XIX, o termo era empregado na
acepção de brigão, valentão ou capanga, que mais tarde se sobrepôs às demais.
Com a campanha de Canudos [...] o termo adquire uma dimensão nacional e
um novo sentido: o do indivíduo que guerreava em defesa de um líder religioso
carismático, recebendo em troca recompensa espiritual, um lugar no Reino do Céu.”
(SILVA, B. [et alli]. Dicionário de Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 646.)
O jagunço, Cândido Portinari
Não há dúvida de que existiram
muitas semelhanças entre os movimentos de resistência sertaneja à exploração
imposta pelos poderosos da República. As estruturas sociais, os costumes, as
crenças, a religiosidade, com a esperança de uma vida em um paraíso terrestre,
construído com a ajuda de forças divinas. Esse misticismo era reforçado pela
crença, trazida pelos portugueses, no retorno de D. Sebastião, desaparecido na África
da batalha de Alcácer Quibir. O sebastianismo não morrera em Portugal.
Permanecera no imaginário popular. Teve continuidade no Brasil. Relatos
diversos mencionam a convicção de que o Esperado D. Sebastião chegaria com
muitas riquezas que seriam distribuídas entre os seus crentes. Os pobres,
humildes, humilhados e explorados da sociedade.
Em Santa Catarina, porém, o
sebastianismo substituiu D. Sebastião por S. Sebastião, anunciando o fim do
mundo e recompensando seus crentes com a imortalidade e o bem-estar.
Além disso, no Nordeste, a luta
sertaneja era contra os poderosos identificados com as oligarquias estaduais e
o governo federal que havia suprimido a Monarquia, estabelecido a separação
entre a Igreja e o Estado, imposto casamento civil e tributos que aumentavam a
miserabilidade da população. No Contestado, a explosão popular foi dirigida
também contra a presença espoliadora das empresas norte-americanas Southern Brazil Lamber and Colonization Co.
e South Brazil Railway Co., cujo
desenvolvimento implicava a ocupação de terras e a expulsão de centenas de
sertanejos.
Conhecido como Sindicato Farquhar, porque pertencente
ao empresário norte-americano Percival Farquhar, o poderoso truste South Brazil Railway Co. obtivera do
governo federal extensas concessões de terras para construção de uma ferrovia
ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul. Acontece que o traçado dessa ferrovia
passava justamente pelo Contestado, região assim chamada porque disputada pelos
estados do Paraná e de Santa Catarina, mais um diferencial em relação a
Canudos.
Os jagunços do Contestado, como
de outros movimentos sertanejos, curiosamente não detectados nos sertões da
Bahia, dedicavam um culto quase religioso a Carlos Magno, antigo rei dos
francos, que viveu em fins do século VIII e inícios do século IX. Muitos dos
poucos que sabiam ler possuíam um livro relatando a versão romanceada da vida
de Carlos Magno e seus lendários cavaleiros. As proezas de Rolando, Olivério e
Reinaldo eram relatadas em conversas dos jagunços, reunidos ao pé da fogueira. Os
analfabetos escutavam atentos a narrativa dos que sabiam ler. O imaginário
popular vivia aquela época de um passado distante, pintado com as cores vivas
de valores como a igualdade, a justiça e a lealdade ao rei.
Tanto os jagunços do Contestado
como os de Canudos desenvolveram sentimentos saudosistas dos tempos da
Monarquia. De uma época em que muitos haviam vivido. De uma época em que a
Igreja estava ligado ao Estado. Com verdadeira idolatria considerava-se a
Monarquia como coisa do céu. Não há dúvida de que essa idealização dos tempos
passados foi influenciada no Contestado pelas histórias de Carlos Magno e seus
Pares de França, cujos personagens romanceados constituíam exemplos de coragem,
de devotamento a causas justas, de luta pela verdade e pela justiça.
Aspecto marcante nos dois
movimentos foi o igualitarismo comunitário: nas comunidades criadas pelos
jagunços, desenvolveu-se forte tradição de que os bens individuais possuídos
anteriormente passavam a pertencer a todos. Havia mesmo um certo desprezo pelos
bens materiais. Afinal, no Reino dos Céus, as riquezas terrenas nada
significavam! Não era o que afirmavam as Sagradas Escrituras?
“A existência desse igualitarismo básico, de condição econômica e de
etiqueta, não significava, porém, que reinasse a anarquia entre os irmãos e que
entre eles não houvesse diferenças de posição social [...]. Reconheciam-se as
relações anteriores de amizade, de compadrio e de família, desde que nenhuma
destas se chocasse com os interesses da crença. Acima de tudo, colocavam-se os
valores religiosos, políticos e sociais da causa.” (QUEIROZ, Maurício
Vinhas de. Messianismo e conflito social:
a Guerra Sertaneja do Contestado, 1912-1916. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966. p. 157.)
Não se pode esquecer que o milenarismo também estava presente no
imaginário dos sertanejos de Canudos. A chegada de novo milênio se aproximava.
E com ele viria o fim dos tempos, como anunciavam os textos do Apocalipse. Novos
tempos começariam. Os bons, justos e humildes seriam levados ao Reino dos Céus!
AQUINO, Rubim Santos Leão de [et
alli]. Sociedade brasileira: uma história
através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do
neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 138-141.
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