"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Jagunços? Fanáticos? Sertanejos?

Jagunços do Contestado. 
Foto: Claro Jansson

Em estudo clássico, Rui Faço mostrou a distinção entre fenômenos sociais que muitas vezes se confundem.

“No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as populações rurais, mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a sua ideologia só podia ter um cunho religioso, místico, que se convencionou chamar de fanatismo. Sob essa denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos ou do Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço: fanáticos. Quer dizer, adeptos de uma seita ou misto de seitas, que não a religião dominante.

Só que a seita por eles abraçada, fortemente influenciada pela religião católica, que lhe dá o substrato, era a sua ideologia. Como toda ideologia, um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos etc., que traduzem suas condições materiais de vida, seus interesse, seus anseios de libertação e seus próprios métodos de luta.” (FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963. p. 47-48)

Não podemos, contudo, considerar que Canudos, Contestado e outros ajuntamentos menores de trabalhadores rurais sejam reduzidos apenas a conflitos de fundo religioso, a simples movimentos oriundos do fanatismo sertanejo, como afirmam Pedro Calmon, Pandiá Calógeras e outros autores presos a enfoques da História Oficial, eivados de preconceitos e de conceituações mitificadoras.

Tanto na Bahia como no Brasil Meridional, a concentração da propriedade nas mãos de poucos gerou – e ainda hoje o fenômeno se processa – uma grande massa de trabalhadores rurais desempregados. Eram antigos pequenos e médios proprietários, posseiros, agregados, rendeiros, vaqueiros sem perspectivas, ex-escravos. Marginalizados, esses grupos populacionais desenraizados, pobres e miseráveis, na sua maioria incluíam mestiços e negros.

Muitos migravam para outras regiões do Brasil. Viajavam sozinhos ou com suas famílias. As secas que ocorriam no Nordeste tornavam mais trágica a existência desses sertanejos, que acabaram sendo conhecidos como jagunços.

De acordo com mestre Aurélio Buarque de Holanda, a palavra jagunço é corruptela de zaguncho, arma de arremesso, espécie de lança, com ponta de ferro e haste de madeira. Com o tempo, o termo passou a ser usado para designar todo aquele que manejava aquela arma. Contudo, a expressão jagunço acabou variando no tempo e no espaço.

“Na região do médio São Francisco, em fins do século XIX, o jagunço era um homem temente à lei, que só pegava em armas, sob a responsabilidade do chefe.

Distinguia-se do bandido e do cangaceiro que ‘afrontavam e desprezavam a lei’.

Entretanto, na Bahia, em fins do século XIX, o termo era empregado na acepção de brigão, valentão ou capanga, que mais tarde se sobrepôs às demais.

Com a campanha de Canudos [...] o termo adquire uma dimensão nacional e um novo sentido: o do indivíduo que guerreava em defesa de um líder religioso carismático, recebendo em troca recompensa espiritual, um lugar no Reino do Céu.” (SILVA, B. [et alli]. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 646.)

O jagunço, Cândido Portinari

Não há dúvida de que existiram muitas semelhanças entre os movimentos de resistência sertaneja à exploração imposta pelos poderosos da República. As estruturas sociais, os costumes, as crenças, a religiosidade, com a esperança de uma vida em um paraíso terrestre, construído com a ajuda de forças divinas. Esse misticismo era reforçado pela crença, trazida pelos portugueses, no retorno de D. Sebastião, desaparecido na África da batalha de Alcácer Quibir. O sebastianismo não morrera em Portugal. Permanecera no imaginário popular. Teve continuidade no Brasil. Relatos diversos mencionam a convicção de que o Esperado D. Sebastião chegaria com muitas riquezas que seriam distribuídas entre os seus crentes. Os pobres, humildes, humilhados e explorados da sociedade.

Em Santa Catarina, porém, o sebastianismo substituiu D. Sebastião por S. Sebastião, anunciando o fim do mundo e recompensando seus crentes com a imortalidade e o bem-estar.

Além disso, no Nordeste, a luta sertaneja era contra os poderosos identificados com as oligarquias estaduais e o governo federal que havia suprimido a Monarquia, estabelecido a separação entre a Igreja e o Estado, imposto casamento civil e tributos que aumentavam a miserabilidade da população. No Contestado, a explosão popular foi dirigida também contra a presença espoliadora das empresas norte-americanas Southern Brazil Lamber and Colonization Co. e South Brazil Railway Co., cujo desenvolvimento implicava a ocupação de terras e a expulsão de centenas de sertanejos.

Conhecido como Sindicato Farquhar, porque pertencente ao empresário norte-americano Percival Farquhar, o poderoso truste South Brazil Railway Co. obtivera do governo federal extensas concessões de terras para construção de uma ferrovia ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul. Acontece que o traçado dessa ferrovia passava justamente pelo Contestado, região assim chamada porque disputada pelos estados do Paraná e de Santa Catarina, mais um diferencial em relação a Canudos.

Os jagunços do Contestado, como de outros movimentos sertanejos, curiosamente não detectados nos sertões da Bahia, dedicavam um culto quase religioso a Carlos Magno, antigo rei dos francos, que viveu em fins do século VIII e inícios do século IX. Muitos dos poucos que sabiam ler possuíam um livro relatando a versão romanceada da vida de Carlos Magno e seus lendários cavaleiros. As proezas de Rolando, Olivério e Reinaldo eram relatadas em conversas dos jagunços, reunidos ao pé da fogueira. Os analfabetos escutavam atentos a narrativa dos que sabiam ler. O imaginário popular vivia aquela época de um passado distante, pintado com as cores vivas de valores como a igualdade, a justiça e a lealdade ao rei.

Tanto os jagunços do Contestado como os de Canudos desenvolveram sentimentos saudosistas dos tempos da Monarquia. De uma época em que muitos haviam vivido. De uma época em que a Igreja estava ligado ao Estado. Com verdadeira idolatria considerava-se a Monarquia como coisa do céu. Não há dúvida de que essa idealização dos tempos passados foi influenciada no Contestado pelas histórias de Carlos Magno e seus Pares de França, cujos personagens romanceados constituíam exemplos de coragem, de devotamento a causas justas, de luta pela verdade e pela justiça.

Aspecto marcante nos dois movimentos foi o igualitarismo comunitário: nas comunidades criadas pelos jagunços, desenvolveu-se forte tradição de que os bens individuais possuídos anteriormente passavam a pertencer a todos. Havia mesmo um certo desprezo pelos bens materiais. Afinal, no Reino dos Céus, as riquezas terrenas nada significavam! Não era o que afirmavam as Sagradas Escrituras?

“A existência desse igualitarismo básico, de condição econômica e de etiqueta, não significava, porém, que reinasse a anarquia entre os irmãos e que entre eles não houvesse diferenças de posição social [...]. Reconheciam-se as relações anteriores de amizade, de compadrio e de família, desde que nenhuma destas se chocasse com os interesses da crença. Acima de tudo, colocavam-se os valores religiosos, políticos e sociais da causa.” (QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social: a Guerra Sertaneja do Contestado, 1912-1916. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. 157.)

Não se pode esquecer que o milenarismo também estava presente no imaginário dos sertanejos de Canudos. A chegada de novo milênio se aproximava. E com ele viria o fim dos tempos, como anunciavam os textos do Apocalipse. Novos tempos começariam. Os bons, justos e humildes seriam levados ao Reino dos Céus!


AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 138-141.

Nenhum comentário:

Postar um comentário