"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Os significados do vestuário, da moradia, da alimentação e do lazer na sociedade medieval

O vestuário designa todas as categorias sociais, é um verdadeiro uniforme. Levar vestuário de uma condição diferente da sua é cometer o pecado capital da ambição ou da degradação. O pannous (o indigente vestido de farrapos), é desprezado. [...] As regras monásticas fixam cuidadosamente o hábito dos seus membros – mais por respeito pela ordem que pela preocupação de evitar o luxo.

[...] As ordens mendicantes iriam mais longe e vestiriam burel, tecido cru. Seriam os monges pardos. Cada nova categoria social se apressa a criar o seu vestuário. Assim fazem as corporações e, em primeiro lugar, a corporação universitária. Dá-se atenção especial aos acessórios que mais particularmente determinam o grau: os chapéus e as luvas. Os doutores usam compridas luvas de camurça e boina. Os cavaleiros reservam para si as esporas. Fato curioso para nós: o armamento medieval é demasiado funcional para constituir um verdadeiro uniforme. Mas os cavaleiros, ao criar a nobreza, juntam ao elmo, ao escudo e às espadas as armarias. Nasceu o brasão.

Os ricos exibem o luxo do vestuário, que se mostra na qualidade e quantidade do tecido: panos pesados, amplos, finos, sedas  bordadas a ouro; mostra-se também nos enfeites: as cores, que mudam com a moda – o escarlate, dependente dos corantes vermelhos...

A casa é a última manifestação da diferenciação social. A casa do camponês é de adobe ou de madeira [...]. Geralmente, reduz-se a um só compartimento e tem por chaminé uma abertura no telhado. Pobremente mobiliada e apetrechada, não cativa o camponês. A sua pobreza contribui para a mobilidade dos camponeses medievais.

As cidades são ainda construídas, principalmente, de madeira. São fáceis presas para os incêndios. O fogo é um grande flagelo medieval. [...] A Igreja não tinha grande dificuldade em persuadir os homens da época de que eram peregrinos neste mundo. Mesmo sedentários, raramente tinham tempo de apegar-se às suas casas.

Já o mesmo não sucede com os ricos. O castelo é sinal de segurança, de poderio e de prestígio. No século XI erguem-se as torres e vence a preocupação da defesa. Em seguida, precisam-se os encantos da habitação. Continuando bem defendidos, castelos passam a dar mais lugar aos alojamentos e criam edifícios de habitação dentro das muralhas. Mas a vida ainda se concentra na sala grande. O mobiliário é diminuto. As mesas, em geral, são desmontáveis e, uma vez concluídas as refeições, são retiradas. O móvel normal é a araçá ou baú, onde são arrumadas as roupas ou a baixela. Esta é de um supremo luxo, resplandece e é também uma reserva econômica. [...] Outro luxo está em tapeçarias, que são, também, utilitárias: postas ao alto, fazem de biombo e separam as câmaras. São transportadas de castelo em castelo e recordam a este povo de guerreiros a sua habitação por excelência, a tenda.

Cena de casa de banhos. Miniatura anônima do século XV

Mas talvez as grandes damas – é o mecenato das mulheres – levem mais longe o rebuscamento da ornamentação de interiores. Segundo Baudri de Bourgueil, a câmara de dormir de Adèle de Blois, filha de Guilherme, o Conquistador, tinha nas paredes tapeçarias que representavam o Antigo Testamento e as Metamorfoses, de Ovídio, e panejamentos bordados com a história de Inglaterra. As pinturas do teto representavam o céu com a Via Láctea, as constelações, o zodíaco, o Sol, a Lua e os planetas. O chão era um mosaico que representava um mapa-múndi com monstros e animais. Um leito com baldaquino era sustentado por oito estátuas [...].

O sinal do prestígio e da riqueza era a pedra, ao torres que rodeavam o castelo. O mesmo faziam na cidade, por imitação, os burgueses ricos: “casa forte e bela”, como se dizia. Mas o burguês iria ligar-se à casa e mobiliá-la. Também neste aspecto daria à evolução do gosto a sua marca característica inventando o conforto.

Cena de banquete. Miniatura do século XV. Artista desconhecido

A alimentação [...] foi uma obsessão da sociedade medieval. A massa campesina tinha de contentar-se com pouco. A base da sua alimentação eram as papas. O principal acompanhamento reduzia-se frequentemente aos produtos de apanha. Mas o [...] acompanhamento de pão espalhou-se em todas as categorias sociais nos séculos XII e XIII – e foi então que o pão tomou verdadeiramente no Ocidente a significação quase mítica que a religião lhe dá. A classe campesina tem, porém, uma festa alimentar: a matança do porco, em dezembro, cujos produtos alimentam os festins do fim do ano e as refeições do longo inverno...

A alimentação é a principal oportunidade que têm as classes dominantes da sociedade para manifestar a sua superioridade nesse essencial domínio das aparências. O luxo alimentar é o primeiro de todos. Exibe os produtos reservados: a caça das florestas senhoriais, os ingredientes preciosos, especiarias compradas por alto preço, e os pratos raros, preparados pelos cozinheiros. [...] A mesa senhorial é também uma oportunidade para exibir e fixar as regras de etiqueta. [...]

Cena de caça. Dezembro (detalhe). Livro de Horas do Duque de Berry, Irmãos Limbourg. Século XV

Uma vez satisfeitas as necessidades essenciais da subsistência e, quanto aos ricos, as exigências – não menos essenciais – do prestígio, pouco ficava aos homens da Idade Média. Sem as preocupações com o bem-estar, sacrificavam tudo às aparências quando isso estava nas suas possibilidades. As suas únicas alegrias profundas e desinteressadas eram a festa e os jogos, mas, nos grandes, a festa era também ostentação e autopropaganda.

Cena de torneio, Barthélémy d'Eyck. Século XV

O castelo, a igreja, a cidade eram cenários teatrais. É sintomático que a Idade Média não tenha tido um local especial para as representações teatrais. Os palcos e as representações eram improvisados onde houvesse um centro de vida social. Na igreja, as cerimônias religiosas eram festas, e é do drama litúrgico que sai o teatro. No castelo, os banquetes, os torneios, os espetáculos dos trovadores, dos jograis, dos bailarinos e dos domadores de ursos sucedem-se. Na cidade, os teatros de saltimbancos erguem-se nas praças [...]. Todas as classes da sociedade fazem das suas festas familiares cerimônias ruinosas: os casamentos deixam os camponeses na pobreza durante anos, e os senhores durante meses. O jogo exerce uma singular sedução sobre esta sociedade alienada. Escrava da natureza, entrega-se ao acaso: os dados rolam em todas as mesas. Prisioneira de rígidas estruturas sociais, faz da própria estrutura social um jogo: é o caso do xadrez [...]. Projeta e sublima as suas preocupações profissionais em jogos simbólicos e mágicos: os torneios e os desportos militares exprimem a essência da vida cavalheiresca e as festas folclóricas, o ser das comunidades campesinas. [...] E, em especial, a música, o canto, a dança arrastam todas as classes sociais...


LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1984. v. 2. p. 88-9, 91, 121-7.

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