"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Nos submundos da Antiguidade: as ruas de Roma e Pompeia

Na época de Plauto ou de Cícero, é no Foro Romano que se concentram todas as atividades da cidade, das mais honrosas às mais equívocas. Na Roma imperial, o Foro parece bem pequeno, ao lado dos magníficos foros imperiais que foram sendo edificados no decurso dos sucessivos reinados. É toda a cidade que se torna um lugar de passeio, de encontros, de tráficos para essa massa ociosa: otários em busca de espetáculos, escroques à caça, parasitas em busca de um jantar, de um patrão acolhedor e generoso. Se acreditarmos nos quadros que os escritores da época imperial nos legaram, a vida cotidiana – para a maioria dos romanos – apresenta-se como uma perpétua busca.


O Fórum de Pompeia, Christen Købke

Roma é, antes de mais nada, o barulho: murmúrio, gritos, nada parece poder conter esse rumor confuso que, durante todo o dia, eleva-se das ruas:

“Em Roma, não é possível ao pobre pensar ou repousar. Impossível viver em paz pela manhã por causa  dos professores; à noite, por causa dos padeiros; durante o dia, por causa do martelo dos ferreiros” (Marcial, Epigramas XII, 57).

Assim, é uma barafunda que, da aurora ao pôr do sol, invade calçadas, ruas, pórticos. Uma passagem de uma célebre sátira de Juvenal evoca múltiplos perigos que esperam o pedestre que anda pelas ruas de Roma: as vastas liteiras dos ricos, as carruagens, operários que transportam odres, potes ou grandes vasos contendo vinho e azeite. É bem difícil abrir caminho por entre tais ruelas, que ficam ainda mais estreitas por causa da exposição das mercadorias. A calçada, com efeito, durante o dia, é coberta pelos cavaletes e barracas móveis onde os comerciantes expõem suas mercadorias. Nas estacas que sustentam essas barracas provisórias, são penduradas tanto as garrafas do botequineiro quanto os rolos de papiro dos livreiros. . Domiciano será obrigado a promulgar um édito impedindo os comerciantes de monopolizarem a calçada, instalando nela essas barracas que trazem perigo à segurança dos pedestres. E, por vezes, acima da massa compacta que transita pelas ruas, surge a navalha brandida às cegas pelo barbeiro que está escanhoando seu cliente em meio à algazarra. As ruas de Roma são tão obstruídas, tão invadidas pela população, que um passeio pode ser pago com a própria vida: uma inscrição recorda uma mulher e uma criança de treze anos, esmagadas pela massa que se comprimia perto do Capitólio [...].


Mercado de escravos, Gustave E. Boulanger

A rua não é mais do que um espetáculo: saltimbancos, exibidores de animais amestrados ou charlatães invadem as calçadas; [...]

Se acreditarmos nos escritores romanos que nos deixaram negras descrições dos engarrafamentos da capital, é bem perigoso passear pelas ruas de Roma durante o dia. Todavia, algazarra, tumultos, barulho e poeira nada são, ao lado do que espera o transeunte noturno. Poucos romanos, de resto, se aventuram a atravessar Roma depois do pôr do sol, a não ser acompanhados por uma guarda de escravos armados e munidos de chicotes. Com efeito, reina a escuridão nas ruas da cidade, pois não há iluminação pública.

Além do mais, as ruas estão longe de ser desertas: todos os que não têm o direito de circular durante o dia, as carroças de transporte, os comboios que obstaculizam o tráfego, atravessam ruidosamente a cidade e acordam os habitantes das insulae [...].

Se as ruas do centro da cidade são mais seguras, imagine-se o que ocorre nos terrenos baldios situados na periferia da cidade, ao longo das grandes estradas que saem de Roma para os quatro cantos da Itália. Desde o cair da tarde, sombras suspeitas e furtivas vagueiam, absorvidas em atividades misteriosas. É a zona dos túmulos, dos cemitérios, dos crematórios, zona temida pelos cidadãos romanos e, justamente por isso, transformada em asilo de numerosos marginais.

Quer se destinem ao descanso do passante, a alimentar ou a hospedar o viajante, ou os habitantes da cidade, são muitos os estabelecimentos hospitaleiros no mundo romano. Numerosos testemunhos nos permitem saber que eles se concentram essencialmente nos bairros populares. Em Roma, muitas tavernas se situavam perto do Grande Circo, dos teatros ou anfiteatros, bem como das casas de banho: em suma, em todos os lugares freqüentados pela multidão. Outros também servem como pontos de descanso situados nas portas das cidades: em Pompeia, a “estação” – freqüentada pelos que se encarregam dos transportes pelas estradas – situa-se fora da cidade, perto da porta de Estábias. Lá se reúnem também os arrieiros, os proprietários dos veículos de aluguel e dos mulos alugados aos viajantes.

São geralmente construções modestas: podemos bem conhecê-las por causa dos numerosos albergues que ainda animam as ruas de Pompeia. No interior, uma ou duas salas recebem os clientes; há alguns quartos no andar superior, assim como um jardim, onde os consumidores podem se sentar sob um caramanchão. Muitas dessas tavernas – as termopolia – prolongam-se na rua através de um balcão, no qual são postas as ânforas contendo o vinho fresco ou quente; o passante, que não tem tempo de entrar no estabelecimento para servir-se de uma bebida, pode tomar rapidamente uma taça de vinho e, de pé, comer uma salsicha ou um doce quente.


Cena erótica. Lupanar em Pompeia, Artista desconhecido. Século I d.C.

Tabuletas pintadas ou mosaicos indicam ao interessados os nomes dos estabelecimentos. Alguns proprietários não demonstram grande imaginação, contentando-se em batizar suas tavernas com uma indicação topográfica: “Nos rochedos vermelhos”, “Na pereira”, “No templo de Diana”. Outros, talvez mais esnobes, buscam a originalidade: o albergue “O Elefante”, em Pompeia, é ornado por um desenho que representa um elefante vermelho. O estabelecimento de Heleno, sempre em Pompeia, “A Fênix”, conserva ainda a magnífica tabuleta que lhe deu o nome: uma fênix passeia num cenário floral de grande finura. Abaixo dela, dois pavões enquadram uma frase de saudação: “Também tu deves ser feliz, como a fênix”.


Casal nu na cama. Artista desconhecido. Afresco na Casa della Farnesina, Roma, ca. 19 a,C.

E, como a maioria dos albergues ou tavernas funcionam [...] como locais de prostituição, algumas inscrições indicam que a casa pode oferecer outros prazeres além de beber e comer: um estabelecimento de Roma, certamente muito acolhedor, chama-se “As Quatro Irmãs”. Em “As Filhas de Aselina”, em Pompeia, Aglaé, Maria e Esmirina garantem o serviço, sob as ordens de “madame” Aselina.


SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 222-4, 231-2 e 240-2.

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