"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 1 de novembro de 2014

A Revolta da Cachaça (1660-1661)

Aqueduto da Carioca, Leandro Joaquim

Embora ligado aos espanhóis por laços de sangue, pois descendia pelo lado materno de família espanhola, Salvador Correia de Sá e Benevides, nomeado governador do Rio de Janeiro pela terceira vez (1659-1660), desfrutava de grande prestígio, tanto assim que também recebeu a jurisdição sobre toda a costa do sul. Em conseqüência, seus poderes não ficavam subordinados à autoridade do governador-geral residente na Bahia. Sá e Benevides era um oligarca típico, grande proprietário, e contra ele existem inúmeros depoimentos negativos.

Logo nos primórdios de sua administração solicitou ao Senado da Câmara a criação de um imposto predial. A receita proveniente dessa nova tributação visava atender despesas com o aumento da tropa, subordinada ao governador. Além do mais, a receita apurada também se destinava a evitar atrasos no pagamento da guarnição, o que ocorria com freqüência.

Como ainda hoje acontece, apareceram propostas de isenção ao imposto em discussão, sendo tal benefício concedido às ordens religiosas dos jesuítas, dos carmelitas e dos beneditinos.

Diante das controvérsias surgidas, como alternativa, a Câmara aprovou a cobrança de impostos sobre a venda de cachaça e de carne. Ora, essa tributação indireta atingia os setores populares da sociedade, ao passo que o imposto predial incidia apenas sobre os proprietários de imóveis. Todavia, após alguns meses, permanecia baixa a arrecadação com a cobrança dos impostos indiretos sobre a cachaça e a carne, o que levou o governador a ordenar que também fosse recolhido o imposto predial.

Em seguida partiu para a capitania de São Paulo, a fim de verificar como andava a mineração de ouro, tendo deixado Tomé Correia de Alvarenga, seu primo, para substituí-lo e designado outro parente para presidir o Senado da Câmara.

No dia 8 de novembro de 1660 explodiu a revolta, liderada por Jerônimo Barbalho Bezerra, filho de Luís Barbalho Bezerra, que governara o Rio de Janeiro (1643-1644) e se destacara na luta contra os holandeses.

Por que a revolta?

Basicamente por causa do peso da tributação estabelecida. A isso se juntou o fato de o governador favorecer abertamente seus parentes, arrivistas e sem escrúpulos, ele próprio sendo acusado de tirania, de peculiato e de manter ligações escusas com donos de casas de jogo. Além do mais, os Sá e Benevides tinham como aliados os jesuítas, contra os quais existiam fortes animosidades porque eram defensores da liberdade dos índios.

O governador interino foi deposto e recolhido preso à fortaleza de Santa Cruz, após fracassar sua tentativa de se asilar no mosteiro de São Bento. Em meio ao tumulto, realizaram-se eleições para escolha de novos integrantes do Senado da Câmara (ou Câmara Municipal) não vinculados à família ou à clientela dos Benevides. Nomeou-se governador Agostinho Barbalho Bezerra, irmão do líder dos sublevados (8 de novembro de 1660).

Contando com o apoio da guarnição militar, os revoltosos enviaram para Portugal muitos dos aliados do governador Salvador Correia de Sá e Benevides.

A população revoltada chegou a saquear imóveis dos Correia de Sá e, quando o Senado da Câmara descobriu manobras conciliatórias do recém-eleito Agostinho Bezerra, destituiu-o do cargo e assumiu o governo da cidade, em fevereiro de 1661.

Contudo, Salvador Correia habilmente retornou ao Rio de Janeiro, quando pôde contar com a ajuda de forças militares vindas do reino. De surpresa, invadiu a cidade e reconquistou o poder em abril de 1661.

De imediato, designou o desembargador Antônio Nabo Pessanha para abrir devassa, sendo apontados Jerônimo Barbalho Bezerra e Jorge Ferreira Bulhões como chefes da revolta. O primeiro foi condenado à morte e, a 10 de abril de 1661, enforcado no Largo do Polé, hoje Praça XV de Novembro. Em seguida, como prática usual da justiça colonial, foi decapitado a machadadas, tendo a cabeça ficado exposta no pelourinho existente próximo à forca.

Outros participantes da revolta foram postos a ferros e ficaram presos por alguns anos em presídios de Portugal, até serem perdoados e voltarem ao Brasil. A exceção foi Jorge Ferreira Bulhões, que, devido a maus-tratos, faleceu na prisão de Limoeiro.

No entanto, a corte havia designado outro governador, e sua carta de nomeação era dirigida a Agostinho Barbalho Bezerra (1º de julho de 1661), o que evidenciava o enfraquecimento político do velho oligarca.

Como Pedro de Melo assumiu o cargo somente em 29 de abril de 1662,

“Salvador aproveitou esse prazo para realizar um dos seus projetos: a construção de um barco de grandes proporções (o maior do mundo, diziam): o Padre Eterno – que deu nome à ponta do ‘Galeão’, na Ilha do Governador. Mas não ousou impor novamente os tributos, e não conseguiu antes de alguns anos levantar o seqüestro que fora imposto às suas propriedades pelos oficiais da Coroa [...] Salvador nunca mais voltou ao Brasil [...] Mais tarde [...] obteve para os seus filhos a outorga de Capitanias na antiga de São Tomé (Paraíba do Sul); aí fundaram-se as Vilas de São Salvador de Campos (hoje cidade deste último nome) e de São João da Barra.” (BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. História geral da civilização brasileira: A Época Colonial. Tomo I, v. 2. São Paulo: DIFEL, 1985. p. 17-18)


AQUINO, Rubim Santos Leão de [et all]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 292-294.

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