"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O tenentismo: as rebeliões

Mas a insatisfação e a rebeldia de um grupo significativo de jovens capitães e tenentes do Exército (e também alguns da Marinha) resultariam numa ação mais radical. O fechamento, por ordem do Governo, do Clube Militar e a prisão de seu presidente, o marechal Hermes, acusado de interferir indevidamente na política pernambucana, fizeram explodir a revolta. Na madrugada de 5 de julho, um grupo de oficiais, sob o comando do capitão Euclides da Fonseca, filho do marechal, tomou o Forte de Copacabana, de onde atacou o quartel-general do Exército, enquanto outras unidades na Vila Militar do Rio, em Niterói e em Mato Grosso também se rebelavam.

No dia seguinte, o Congresso, com a concordância dos membros da Reação Republicana, aprovou a decretação do estado de sítio. Depois de inúmeras desistências, um grupo menor (teriam sido 18, segundo o oficial Nilton Prado, e 28, segundo o historiador Hélio Silva) deixava o forte, iniciando a marcha heróica e romântica pela praia de Copacabana, contra as tropas do Governo, “dispostos a resistir até a morte”. No meio do caminho, alguns soldados fugiram ou foram presos. Ficaram até o combate final e suicida, na rua, apenas quatro oficiais (Siqueira Campos, Eduardo Gomes, Bilton Prado e Mário Carpenter) e quatro soldados (Manoel Antônio dos Reis, Hildebrando Silva Nunes e dois desconhecidos, um preto e um branco), além do civil Otávio Correia, que aderiu ao grupo na rua, e do soldado eletricista José Pinto de Oliveira; este, ainda no forte, ajudou a cortar a bandeira brasileira em pedaços, com os quais os revoltosos se enrolaram. No tiroteio, à altura da rua Siqueira Campos, apenas os dois primeiros escaparam – um deles, Eduardo Gomes, com um grave ferimento. O episódio ficou conhecido como “Os Dezoito do Forte”.

Revolta dos 18 do Forte de Copacabana: da esquerda para direita, tenentes Eduardo Gomes, Siqueira Campos, Nílton Prado e o civil Otávio Correia. Fotógrafo desconhecido

A segunda rebelião tenentista ocorreu dois anos depois. A crise internacional de 1929-21 levara o presidente Bernardes (1923-1926) a decretar a terceira operação valorizadora do café, responsável em grande parte pelo assustador aumento do custo de vida e pela elevação da dívida externa. Bernardes, governando a maior parte do tempo sob estado de sítio, reprimiu manifestações populares contra a carestia e greves dirigidas pelos anarquistas. Enquanto isso, acentuavam-se os atritos entre o governo e os tenentes, descontentes com a condenação dos implicados em 1922 e a remoção de oficiais para regiões distantes.

No dia 5 de julho de 1924, depois de meses de conspiração preparada, entre outros, pelos tenentes Joaquim Távora, Juarez Távora e Eduardo Gomes, diversas unidades militares se sublevaram em São Paulo. Sob o comando de dois generais adeptos da causa tenentista – Miguel Costa e Isidoro Dias Lopes – eles definiam num manifesto suas posições.

“O Exército não tem ambições e não quer postos. Age abnegadamente, por altruísmo brasileiro e fundamentalmente patriótico, e, nesse sentido, os chefes do movimento revolucionário querem dar o exemplo que empresta autoridade a sua crítica aos republicanos que, até agora, ocuparam os altos postos da administração do país e que, com raras exceções, não souberam servi-lo nos seus interesses gerais. [...]

O Brasil está reduzido a verdadeiras satrapias, desconhecendo-se completamente o merecimento dos homens e estabelecendo-se como condição primordial, para o acesso às posições de evidência, o servilismo contumaz que, movendo-se pela mola das ambições, cada vez mais se generaliza, constituindo fator de degradação social. O povo ficou reduzido a uma verdadeira situação de impotência, asfixiado em sua vontade pela ação compressora dos que detêm as posições políticas e administrativas.”

Os revoltosos de São Paulo queriam a formação de um governo provisório, a eleição de uma constituinte e a realização de reformas políticas de cunho liberal. Eram reformas que não se chocavam com os princípios da ordenação constitucional da República Velha, como a adoção do voto secreto e a proibição de reeleição dos presidentes do governo federal e dos estados.

Já no Amazonas, predominavam tendências radicais. Os rebeldes, favoráveis a reformas econômicas e sociais de caráter socialista, constituíram um conselho governativo chefiado pelo tenente Ribeiro Júnior, propondo-se “a varrer o capitalismo do Brasil”. Criaram o Tributo da Redenção (imposto dos ricos para socorrer os pobres), prenderam os especuladores de gêneros e expropriaram matadouros de capitalistas ingleses, entregando-os à Comuna de Manaus. Depois de trinta dias de governo, foram derrotados pelas forças legalistas.

Em São Paulo, os combates estenderam-se por diversos bairros, obrigando o presidente do Estado a abandonar o Palácio dos Campos Elíseos. Depois de 22 dias de lutas, os revoltosos seguiram para o Paraná onde, em abril de 1925, juntaram-se a uma Coluna vinda do Sul, sob o comando do tenente Luiz Carlos Prestes. Ali, os dois grupos se juntaram e decidiram estender a campanha antigoverno a todo o país. Iniciava-se, assim, sob o comando do general Miguel Costa e de Luiz Carlos Prestes (o “Cavaleiro da Esperança”) a Coluna Prestes – na época, “a mais importante demonstração de guerrilha do continente”, segundo o historiador Hélio Silva.

Comando da Coluna Prestes: Luís Carlos Prestes é o terceiro sentado, da esquerda para a direita. Fotógrafo desconhecido

Entre abril de 1925 e fevereiro de 1927, os rebeldes, com 800 a 1.500 civis e militares percorrem cerca de 24.000 quilômetros, sem perder qualquer dos 53 combates travados contra as forças governamentais e a jagunçada de muitos coronéis.

“Em suas andanças, a Coluna palmilha o sertão e foge às áreas mais povoadas, atacando apenas uma vez uma cidade maior, Teresina, na esperança de apoio de revolucionários locais... É verdade que a população rural do Piauí e do Maranhão trata bem a coluna, ajudando e fornecendo víveres e informações. Mas a propaganda, acrescida de estragos e requisições, leva a hostilizar homens cujos objetivos essas populações não entendiam e não podiam entender.... no Ceará a população atacou os revolucionários porque pensavam – como dizia a propaganda bernardista – que eram ateus e iam prostituir as mulheres.”



Em 1929, os principais líderes da Coluna exilaram-se na Bolívia e Prestes, seu maior estrategista, afirmou que a luta não tinha mais sentido pois Bernardes já não governava. A justificativa, contrastando com o esforço feito, revelava uma das limitações do movimento: era em parte dirigida à pessoa do presidente, o que esvaziava o seu caráter político.

O tenentismo nunca teve uma unidade nem chegou a elaborar um programa político claro, embora evoluísse com o tempo. Em 1922, predominava já a ideologia liberal, mas a visão romântica era forte em oficiais dispostos a atos isolados de heroísmo e preocupados com a reação das “moças brasileiras”. A partir de 1924, duas tendências se diferenciavam cada vez mais: uma radical e minoritária – com os rebeldes do Amazonas e os que no final da década seguiriam Luiz Carlos Prestes – queria reformas sociais e econômicas, reformas de estrutura; outra, predominante, contentava-se com reformas políticos de cunho liberal, o que facilitaria sua aproximação com as oligarquias dissidentes, como veio a ocorrer em 1930.

As duas correntes, além do mais, eram elitistas e militaristas. Em nenhuma das revoltas pensaram em mobilizar o povo e, por mais de uma vez, renegaram o apoio popular, como foi o caso do general Isidoro Dias Lopez, que não aceitou a adesão dos operários anarquistas de São Paulo. Como notou Edgard Carone: “A pequena-burguesia é espectadora; o operariado não encara o movimento como seu.”


ALENCAR, Francisco [et alli]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 293- 296.

NOTA: O texto "O tenentismo: as rebeliões" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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