Tropical, Anita Malfatti
O término da Primeira Guerra Mundial marcou o fim de uma época não só na política e na economia internacionais mas, também, no modo de vida e nas artes do Ocidente. As velhas estruturas, as classificações que por tantos séculos haviam norteado os julgamentos do "gosto" artístico perdiam a razão de ser, diante das divisões do mundo moderno. Surgiam as chamadas "vanguardas" na literatura, na música, nas artes plásticas: futurismo, dodecafonismo, cubismo. O cinema aparecia como a primeira arte para as massas. As comunicações se tornavam mais rápidas com o aeroplano e as transmissões radiofônicas. O mundo começava a tornar-se a "aldeia global" que hoje somos.
A intelectualidade brasileira, principalmente em sua parte mais jovem e mais inquieta, sentiu então a necessidade de corresponder às exigências dos novos tempos e renegar os modelos arcaicos. Ao mesmo tempo, era preciso libertar de uma vez por todas a nossa criação artística dos padrões europeus. Todo esse desejo, difuso a princípio, desembocou num acontecimento marcante: a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922.
A Semana não foi, como muita gente pensa, o início do Modernismo nem foi só a partir dela que os artistas revelaram as novas tendências. Já alguns anos antes a pintora Anita Malfatti expunha seus quadros, em São Paulo, provocando muita polêmica. Oswald de Andrade escreveu um romance de forma revolucionária, Memórias Sentimentais de João Miramar, em 1917, embora só viesse a publicá-lo em 24. Na música, Villa-Lobos já iniciara sua produção inovadora. Enfim, era todo um clima que já existia e foi canalizado para a Semana de Arte Moderna.
O mais importante nesse movimento foi que, desde então, os intelectuais e artistas brasileiros (com raras exceções) deixaram de colocar-se na posição isolacionista da "torre de marfim" e passaram a dirigir sua produção para uma problemática bem mais próxima do povo. E isto se refletia não só no terreno da linguagem, com a preocupação constante dos poetas e dos prosadores de se expressarem como brasileiros, sem "macaquear a sintaxe lusíada", como disse Manuel Bandeira num poema. Refletia-se também na temática: os modernistas retomaram os temas do indianismo, agora depurado das idealizações românticas. É assim que Mário de Andrade, por exemplo, ia buscar as fontes para o seu Macunaíma nas lendas e mitos de várias regiões do Brasil e construía um "herói sem nenhum caráter", ou seja, um personagem que, assumindo as características de toda a gente, ficou sem nenhuma própria dele. Ou Cassiano Ricardo, compondo o Martim Cererê mostrava no próprio nome do herói a fusão das raças forjadas da nacionalidade de todas as influências estrangeiras para que pudéssemos criar uma arte verdadeiramente nossa.
O Modernismo foi, sobretudo, um deflagrador de movimentos, mais do que um movimento em si mesmo. Dele saíram várias correntes. Alguns de seus participantes derivaram para a ação política de esquerda, como foi o caso de Oswald; outros, como Plínio Salgado, foram para a direita integralista.
E também foi muito importante por ter representado o fim da primazia da literatura sobre as outras artes. Pintores, como Portinari e Di Cavalcanti, tornaram-se mundialmente conhecidos. Também músicos, como o já citado Villa-Lobos. A arte brasileira, enfim, começava a adquirir características próprias, decretando sua independência (com cem anos de atraso...).
Porém, não foi só isso que a época teve de revolucionário. Algo muito importante começou a acontecer durante a década de 20: a difusão da arte popular. Já não era mais simplesmente o folclore de autores anônimos, mas o aparecimento (principalmente na música) de artistas vindos das camadas mais baixas da população urbana. Isto foi facilitado pela difusão das gravações em disco e do rádio. O samba deixou de ser "coisa de malandro" e passou a ser consumido pelas classes médias. Compositores e poetas passaram a conviver. Por outro lado, os próprios intelectuais assumiam [...] uma posição muito mais próxima daquela que os homens do povo ocupavam. Ou pelo menos tinham essa intenção.
Foi uma década fértil para a nossa cultura que iria frutificar ainda mais no decênio seguinte, entre as lutas de implantação da república getulista.
ALENCAR, Chico et alli. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 296-298.
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