Casal de índios guaranis (carijós). O arco e o cesto designam suas funções sociais e evocam a
guerra e a abundância. Gravura extraída da crônica de Ulrich Schmidl (1599).
A sociedade indígena [...] é uma sociedade de guerreiros. [...]
Nenhuma sociedade sobrevive sem gastar algum tempo do dia na obtenção de alimentos e outros bens necessários à preservação da vida. Os indígenas, obviamente, não eram uma exceção.
Porém, devemos fazer uma distinção básica: podem-se obter meios de subsistência coletando-os ou produzindo-os. Os indígenas eram, no essencial, coletores de alimentos. A diferença entre uma economia coletora e uma produtora está em que, no segundo caso, o trabalho se torna uma condição de existência do homem. Naturalmente, a atividade coletora, como a pesca e a caça, é, num certo sentido, "trabalho". Contudo, não seria correto colocar no mesmo plano a coleta e a produção de alimentos.
A agricultura é o exemplo típico de uma economia produtora. No Brasil, o mais antigo vestígio dessa atividade data de 1400 a.C., aproximadamente. Ela era praticada pelos índios na época da chegada dos portugueses, mas essa era uma tarefa essencialmente feminina. Os homens limitavam-se à derrubada de árvores e à preparação do terreno, enquanto às mulheres cabia semear, conservar e colher.
Comparativamente aos homens, as mulheres nas sociedades indígenas suportavam "uma carga extremamente pesada no sistema de ocupação", afirma Florestan Fernandes. Além da agricultura, elas se dedicavam à coleta de frutos silvestres, colaboravam na pesca, transportavam produtos da caça, fabricavam farinha, cauim, azeite de coco, fiavam o algodão, teciam as redes e cestos, fabricavam utensílios de cerâmica, cuidavam dos animais, dos filhos, preparavam os alimentos para as refeições, etc. Era tarefa masculina, além da preparação ocasional do terreno para o cultivo, a caça, a pesca, a fabricação de canoas, a construção de moradias (malocas) e, principalmente, a atividade guerreira.
Como se pode observar, os indígenas se ocupavam, portanto, de inúmeros afazeres para assegurar o próprio sustento. Mas notemos que a divisão sexual do trabalho era feita de tal modo que as atividades que cabiam às mulheres estavam mais próximas daquilo que comumente concebemos como "trabalho" propriamente dito, em sua rotina diária.
Porém, considerando-se a sociedade indígena em seu todo, não seria correto caracterizá-la como pertencente à categoria da economia produtora.
De fato, a agricultura tivera um papel subordinado à coleta e, desse modo, complementar. Numa economia produtora, ao contrário, a coleta - a caça, a pesca, etc. - é que tem uma função complementar e subordinada. De modo que a caracterização de uma economia como "coletora" ou "produtora" depende de qual das atividades é predominante: a coleta ou a produção de alimentos. [...]
Um ponto sobre o qual gostaríamos de chamar a atenção é a natureza das tarefas femininas [...]. Os arqueólogos descobriram inúmeras evidências de que aquelas eram também as tarefas femininas na pré-história e, por isso, atribuíram à mulher várias e importantes descobertas e invenções que prepararam o caminho para a grande revolução econômica que deu origem à economia produtora. Um arqueólogo australiano, Gordon Childe, deu a esse acontecimento o nome de "Revolução Neolítica", que teria ocorrido por volta de 9 mil anos a.C. na região atual da Palestina, no Oriente Médio. Data desse período a constituição das primeiras sociedades produtoras de alimentos que fizeram do trabalho [...] a condição permanente da existência do homem.
Essa relação íntima entre a mulher e o trabalho nos leva à suposição plausível de que, nas sociedades indígenas, a oposição entre masculino e feminino ganhava também a forma de oposição entre guerra e trabalho. Os homens eram, por definição, guerreiros e as mulheres eram, por assim dizer, as "trabalhadoras".
Num belo ensaio em que estudou a oposição entre o masculino e o feminino entre os índios, Pierre Clastres identificou esses dois mundos através de objetos-símbolos - o arco, que simbolizava o homem, e o cesto, que simbolizava a mulher. Nessa oposição está implícita a referência à guerra (arco e flecha) e ao trabalho (o cesto). É verdade que o "arco" pode ser entendido como um símbolo da caça e, portanto, tal como o "cesto", pertenceria à esfera do trabalho. Contudo, essa arma útil para a caça pode ser voltada contra outro homem - um inimigo -, transformando-se em arma de guerra, ao passo que um utensílio doméstico como o cesto não tem essa propriedade. De modo que é em sua função guerreira que o arco simboliza o masculino, e não como instrumento de trabalho, reafirmando, assim, a nossa hipótese.
Assim sendo, a simbolização do masculino pela guerra e do feminino pelo trabalho dá às diferenças entre os sexos um significado preciso. Nas sociedades indígenas, há entre homem e mulher não apenas uma diferença, mas também uma hierarquia, na qual se torna patente a superioridade masculina, obtida pela inferiorização da mulher. [...]
Mas resta observar que as atividades domésticas das mulheres - a criação dos filhos, o cultivo e o preparo dos alimentos - estão, sem dúvida, ligadas estreitamente à vida. Em contrapartida, se os homens se caracterizam socialmente como guerreiros - a sua atividade típica -, encontram-se obviamente relacionados à morte e à destruição.
[...]
KOSHIBA, Luiz. O índio e a conquista portuguesa. São Paulo: Atual, 2012. p. 30-33
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