"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Economia e sociedade no Egito faraônico

Cena de prensa da uva. Tumba do escriba Userhêt, 1448-1422 a.C.

As atividades agrícolas eram o setor fundamental da economia agrícola antiga. Nós as conhecemos bem, do ponto de vista da descrição, em virtude das copiosas cenas representadas nas pinturas e relevos murais em tumbas. A vida agrária se desenvolvia segundo um ciclo bastante curto, se considerarmos as produções básicas - cereais (trigo duro e cevada em especial) e linho -, em função das três estações do ano que eram típicas do país: a inundação (julho-outubro), a "saída" ou reaparecimento da terra cultivável do seio das águas, época da semeadura (novembro-fevereiro), e a colheita (março-junho). Com a paralisação das atividades agrícolas durante a inundação, e considerando-se que a colheita, realizada em abril e maio, terminava bem antes que ocorresse a nova cheia do rio, vemos que o ciclo da agricultura básica durava pouco mais de meio ano apenas. Isto quer dizer que era possível dispor de abundante mão-de-obra para as atividades artesanais da aldeia, para trabalhar nas instalações de irrigação, e para as grandes obras estatais (templos, palácios, sepulcros reais, monumentos diversos).

Em certos casos, a semeadura era realizada antes que as águas se retirassem totalmente, no barro semilíquido, fazendo-se que o gado menor (ovelhas, cabras, porcos) passasse sobre o campo para enterrar as sementes. Se quando se semeava a terra já estava seca, o arado e a enxada serviam para recobrir o grão. A enxada também servia para quebrar os torrões de terra [...]. Tanto o arado quanto a enxada egípcios eram instrumentos muito simples e leves de madeira. Como entre a semeadura e a colheita se passavam de quatro a cinco meses, durante os quais os campos dispensavam maiores cuidados [...], os camponeses podiam se dedicar a cultivos mais intensivos, que exigiam irrigação permanente [...]. Assim era praticada a horticultura, sendo produzidos alho, cebola, pepino, alface e outras verduras e legumes; também eram plantadas árvores frutíferas, e videiras. [...] o azeite de oliva era importado.

Chegando a época da colheita, os talos do trigo e da cevada eram cortados pelo meio com uma foice de madeira com dentes de sílex, enquanto o linho era arrancado. Depois o cereal era pisoteado pelo gado maior para separar o grão da palha, peneirado e guardado em celeiros de forma grosseiramente cônica [...].

Os egípcios foram muito ativos nas suas tentativas de domesticação de animais até o Reino Antigo. Chegaram a experimentar domesticar hienas, antílopes, gruas e pelicanos! O gado maior - bois, asnos; o cavalo só se difundiu sob o Reino Novo - servia em primeiro lugar para puxar o arado, para separar os grãos da palha e para o transporte. O cavalo era usado para puxar carros, e não montado. Vacas e bois eram usados também para a alimentação (carne, leite) e sacrificados aos deuses. Os pastos se localizavam com frequência nos pântanos ou seus arredores, sendo particularmente extensos no Delta. [...] Tanto a criação de gado quanto a de aves (gansos, patos, pombos) eram feitas em duas etapas. Numa primeira fase, os animais viviam em liberdade; em seguida, alguns deles eram selecionados para a fase de engorda, durante a qual eram cevados, às vezes à força. [...]

A agricultura e a criação eram complementadas pela pesca - importante apesar de certas limitações religiosas ao consumo de peixe -, praticada no Nilo, nos pântanos e nos canais com rede, anzol, nassa e arpão. Boa parte dos peixes era secada ao sol. Também a caça era praticada no deserto e nos pântanos, usando-se para tal o cão, o arco e o laço, e capturando-se aves selvagens com redes. Finalmente, as terras pantanosas eram zonas de coleta de papiro - para a alimentação e para produção de fibras de múltiplas utilidades. A coleta compreendia também a madeira de qualidade má ou média disponível no país (sicômoros, acácias, palmeiras etc.).

[...] O Egito era um dos "formigueiros humanos" do mundo antigo, em virtude da sua extraordinária fertilidade renovada anualmente pelos aluviões do Nilo. [...]

A atividade artesanal se desenvolvia, em primeiro lugar, em função das matérias-primas fornecidas pelo rio e pelas atividades agrícolas e de coleta: fabricação de tijolos e de vasilhame com argila úmida do Nilo [...]; fabricação do pão e da cerveja de cereais; produção de vinho de uva e de tâmara; fiação e tecelagem do linho; indústrias de couro; utilização de papiro e da madeira para produções diversas (material para escrever, cordas, redes, embarcações, móveis, portas etc.). [...] o Egito dispunha, em terras submetidas à sua jurisdição direta - as colinas que bordam o vale do Nilo, o Sinai, o deserto oriental, a Núbia -, de rica provisão de pedras duras, usadas para vasos, estátuas, construções religiosas e funerárias, de pedras semipreciosas (turquesas) e de metais (ouro, cobre, chumbo). A madeira de boa qualidade para construção naval e para uso nos palácios e templos era, porém, importada (cedros da Fenícia, obtidos no porto de Biblos), como também a prata, o estanho necessário para o bronze, a cerâmica de luxo, o lápis-lázuli e outros artigos. [...] o artesanato de luxo, de alta especialização e qualidade excepcional - ourivesaria, metalurgia, fabricação de vasos de pedra dura ou de alabastro, faiança, móveis, tecidos finos, barcos, pintura e escultura etc. -, concentrava-se em oficinas mais importantes, pertencentes ao rei e aos templos. [...]

As tumbas do Reino Antigo mostram o pequeno comércio local pela troca de produto por produto, e o pagamento in natura de vários serviços. Em transações maiores e para o cálculo dos impostos (que eram pagos em espécie), o padrão pré-monetário de referência eram pesos de metal (shat, deben). Embora existisse alguma especialização produtiva regional (a cidade de Mênfis concentrava a melhor metalurgia, o Delta era o principal centro pecuário e vinícola etc.), e o Nilo permitisse um tráfego intenso de embarcações, a circulação de produtos entre as diversas regiões do país fazia-se administrativamente, segundo parece, sob o controle de funcionários reais. Quanto ao grande comércio exterior, por terra e sobretudo por mar - com as ilhas de Creta e de Chipre, com a Fenícia, com o país de Punt [...] -, para importação de matérias-primas e artigos de luxo, tinha as mesmas características da mineração e das pedreiras: organizava-se sob a forma de grandes expedições ocasionais ordenadas pelo rei. [...] comerciantes - localizados nos portos de Tebas, Akhetaton, Mênfis, Tânis - eram agentes estrangeiros (sírios) a serviço do monopólio comercial do Estado.

[...] As atividades produtivas e comerciais, mesmo quando não integravam os numerosos monopólios estatais, eram estritamente controladas, regulamentadas e taxadas pela burocracia governamental. [...]

[...]

A base da mão-de-obra do antigo Egito eram os camponeses, maioria absoluta da população. Viviam em aldeias, pagavam impostos ao Estado [...].

Além da mão-de-obra ocasional fornecida pelos camponeses na época da inundação, quando os trabalhadores agrícolas se paralisavam, as obras públicas empregavam também trabalhadores permanentes, remunerados em espécie. A Arqueologia revelou verdadeiras "cidades operárias" (por exemplo, na necrópole tebana e em Tell el-Amarna). A escravidão teve certa importância econômica nas minas e pedreiras estatais e, no Reino Novo, também nas terras reais e dos templos. Houve igualmente tropas militares auxiliares constituídas de escravos, e existiram escravos domésticos, às vezes numerosos. A economia egípcia, no entanto, nunca foi "escravista" no sentido em que foi a da Grécia clássica e helenística e a de Roma de fins da República e do Alto Império.

A sociedade do Egito antigo tinha, no vértice da hierarquia social, o rei, considerado um deus, o intermediário necessário entre seu povo e os outros deuses. Ao contrário dos demais egípcios, o monarca podia ter diversas esposas legítimas, além de numerosas concubinas. A família real (normalmente numerosa), os sacerdotes e funcionários de alta hierarquia, as grandes famílias provinciais, formavam uma aristocracia tendente à hereditariedade. Esta situação ainda estava em gestação no Reino Antigo quando, num Egito unificado surgido em virtude da conquista, as funções públicas [...] eram a fonte direta e única do prestígio e da riqueza e o sacerdócio ainda não se constituíra em casta [...]. No Reino Novo, uma verdadeira aristocracia hereditária de funcionários, sacerdotes e altos chefes militares cercava o rei e às vezes ameaçava seu poder. Há casos comprovados, embora esporádicos, de renovação dos quadros aristocráticos com pessoas de origem humilde, podendo em especial a carreira de escriba ou a militar abrir caminho à ascensão social [...].

Numa situação social intermediária encontramos os numerosos escribas e outros funcionários inferiores, e os sacerdotes de menor hierarquia, além dos artesãos e artistas altamente especializados que estavam a serviço do rei, dos templos e da corte.

Na larga base da pirâmide social, formando a maioria absoluta da população, estavam os trabalhadores braçais, camponeses majoritariamente analfabetos, submetidos a tributos e trabalhos forçados, à arbitrariedade e corrupção dos funcionários e mesmo a castigos físicos. [...] Em certas ocasiões, porém, explodiram terríveis sublevações. A mais célebre se deu no Primeiro Período Intermediário, e segundo A. Moret teve forte influência na evolução subsequente da situação das classes populares. Por outro lado, conhecemos um caso de greve dos operários da necrópole real em fins do Reino Novo, em virtude do atraso na entrega de suas rações de alimentos.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 2010. p. 28-29, 32-36, 39-43.

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