Rua Direita, Rio de Janeiro, Rugendas
[...]
Em um livro delicioso, o historiador Emanuel Araújo, já
revelou que, no Brasil, "a sujeira é um hábito". Na época colonial,
as Câmaras ordenavam que os moradores calçassem a testada de suas casas numa
largura de cinco palmos para atenuar o efeito das chuvas tropicais que corriam
dos beirais dos telhados. Os cuidados contra as copiosas "águas"
esbarravam, entretanto, no fato de que o lixo já era atirado, sem cerimônia, à
rua por onde andavam, pachorrentamente, os animais domésticos.
Alexandre Ferreira, naturalista e viajante do século XVIII,
chegou a registrar que, em algumas cidades da Colônia, as ruas não eram
capinadas para "não privar o gado da erva de que se sustentavam". Uma
série de determinações aplicadas, então, pelos vereadores, tentava dar conta da
relação pouco respeitosa que os moradores tinham com sua cidade.
Em 1625, ordenava-se, em Salvador, que toda a pessoa que
tivesse casa nesta cidade, onde se fizessem esterqueiras, as mandasse limpar
com pena de 16 mil réis e de se lhe taparem às suas custas, e que toda a pessoa
que tivesse casa que botasse cano na rua pública, o tivesse sempre limpo, com a
mesma pena; e assim mais varresse suas ruas e as tivesse limpas, com pena de 2
mil réis.
As determinações, segundo Araújo, eram pouco obedecidas ou
em definitivo não o eram, pois, em julho de 1692, os vereadores voltavam a
reiterar as mesmas ordens de 1625. Chegava-se a pensar que "a malignidade
dos ares corruptos" de Salvador devia-se "às imundícies que de noite
e de dia" se lançavam nas ruas. Padre Manoel da Nóbrega queixava-se do
desprezo dos habitantes, anotando, sisudo: "Não querem bem à terra".
Já o marquês de Lavradio notava em relatório, alguns anos
depois, que os pobres escravos desembarcados no Rio de Janeiro andavam pelas
ruas "cheios de moléstias e nus [...] e ali mesmo faziam tudo que a
natureza lhes lembrava, não só causando o maior fétido [...] mas até sendo o
espetáculo mais horroroso que se podia apresentar aos olhos".
Andando pelas ruas de Salvador, entre 1802 e 1803, Thomas
Lindley registrava em seu diário que "as ruas são apertadas, estreitas,
miseravelmente pavimentadas, nunca estão limpas, apresentando-se sempre
repugnantemente imundas". Dez anos depois, outro inglês queixava-se,
fleumático, "do aroma penetrante que emana de todas as fendas das
ruas" ironizando que, ali, a cloaca se transformara em divindade "e
seus devotos mostram-se tão sinceramente seus admiradores que as oferendas
nunca são retiradas, exceto sob a influência combinada do sol, do vento e da
chuva".
Diferentemente da colonização portuguesa, os holandeses
enquanto estiveram em Pernambuco exigiram um comportamento bem diferente dos
cidadãos: proibiram desde logo que se jogasse lixo nas ruas, que os animais
circulassem à solta, obrigando a varredura das ruas e o aterro destas em caso
de alagamento. Algumas ruas de Recife foram pavimentadas com tijolos holandeses
e, para não estragar a pavimentação, proibiu-se o tráfego de carros de boi.
Vistas pelo olhar desses argutos observadores, as cidades
brasileiras pareciam não ter aprendido as lições que, segundo Gilberto Freyre,
teriam sido transmitidas por nossos ancestrais indígenas: o banho frequente que
escandilizava o mal-asseado europeu e toda uma liturgia sanitária e profilática
que ia do uso higiênico da folha de bananeira à lavagem da rede de algodão no
rio.
[...]
PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo:
Contexto, 2001. p. 57-59.
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