Uma senhora indo à missa numa cadeirinha,
Jean-Baptiste Debret.
[As mulheres eram mantidas sob intensa vigilância social, que
exigia recato sempre que estivessem em público.]
Assim como a água cedo ou tarde encontra um caminho por onde
escoar, o ser humano, movido pelo desejo, descobre formas de satisfazê-lo.
Seria exagero dizer que, quanto mais intensa a proibição, maior a motivação
para alcançar esse objetivo? Se o cerne do desejo é o impulso sexual, parece
que a criatividade não tem limites. Sob a vigilância permanente de uma
sociedade guiada por rígidos códigos de conduta impostos pela Igreja, que
tornavam o templo um dos poucos lugares em que o contato social era permitido,
a repressão acabou por dar lugar à permissividade em solo consagrado.
Os séculos ditos “modernos”, do Renascimento, por exemplo,
não foram tão modernos, assim. Um fosso era então cavado: de um lado os
sentimentos e, do outro, a sexualidade. A concepção do sexo como pecado,
característica do cristianismo, implicava a proibição de tudo o que propiciasse
prazer. Desde as carícias que faziam parte dos preparativos do encontro sexual
aos mais singelos galanteios. Na verdade, os casamentos contratados pelas
famílias deixavam pouco espaço para as práticas galantes, uma vez que os noivos
eram submetidos a constante vigilância. Apesar de, para a realização desses
casamentos, ser irrelevante a existência ou não de atração entre os noivos, a
repressão social tornava imperativo adaptar os jogos de sedução às regras
impostas. Mensagens e gestos amorosos esgueiravam-se pelas frinchas das janelas
ou sobrevoavam o abanar dos leques.
Uma História, Henry Chamberlain.
[A repressão social tornava obrigatório adaptar os jogos de
sedução. Mensagens e gestos de amor passavam furtivamente pelas janelas ou
sobre o abanar de leques.]
Tanto controle transformava as cerimônias religiosas (uma
das únicas ocasiões em que os jovens podiam se encontrar sem despertar
suspeitas e reprimendas dos pais ou confessores) em palco privilegiado para o
namoro. Não foram poucos os amores que começaram num dia de festa do padroeiro
ou de procissão, havendo até os que esperavam a Quinta-Feira Santa e o momento
em que se apagavam as velas, dentro da Igreja, em respeito à Paixão de Cristo,
para aproximar-se um do outro. E no escurinho choviam beliscões, pisadelas e
gestos eróticos. O intuito não era levar os amantes para a alcova, mas marcar
encontros nas soturnas capelas.
As igrejas paroquiais foram convertidas, nesse tempo, em
espaço para namoricos, marcação de encontros proibidos e traições conjugais.
Moleques corriam de um lado ao outro da nave levando recados. Não foram poucas
as ordens dadas por bispos setecentistas exigindo a separação de homens e
mulheres no interior das capelas. O clero temia os encontros e suas
consequências. Compreende-se, assim, o porquê de uma carta pastoral como a de
Dom Alexandre Marques, de 1732, proibindo a entrada nas igrejas de “pessoas
casadas que estiverem ausentes de seus consortes”. Nas igrejas, brotavam
romances sem limites. Não por acaso, um manual português de 1681, escrito por
Dom Cristóvão de Aguirre, continha as seguintes perguntas: “Se a cópula tida
entre os casais na Igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça
ocultamente?”. Lugar de culto, lugar público, a Igreja seria também um lugar
de sedução e de prazer. Onde, vez por outra, Deus dava licença ao diabo...
Missa na igreja de Nossa Senhora da Candelária
em Pernambuco, Rugendas.
[As cerimônias religiosas eram raras ocasiões em que os
jovens podiam se encontrar sem despertar suspeitas nem reprimendas, tornando-se
palco privilegiado para o namoro.]
No Brasil, as missas do século XVIII eram animadas por toda
sorte de risos, acenos e olhares furtivos, transformando as igrejas, para
desgosto dos bispos, em concorridos templos de perdição. Mal iluminadas, suas
arcadas e colunas e os múltiplos altares laterais ofereciam recantos,
resguardados da curiosidade alheia, onde se podia até mesmo tentar gestos
ousados: do beijo ao ato sexual propriamente dito. A costumeira reclusão das
donzelas de família e a permanente vigilância a que estavam expostos todos os
seus passos tornavam missas, procissões, ladainhas e novenas ocasiões
sedutoras, para as quais contribuíam os moleques de recado e as alcoviteiras,
ajudando a tramar encontros. Abrigo de amantes, a Igreja logrou converter-se,
em certas circunstâncias, num dos raros espaços privados de conversações
amorosas e jogos eróticos, nos quais se envolviam nada menos que os próprios
confessores.
Tais jogos eram perpetrados até mesmo no refúgio dos
confessionários. Tal foi o sucedido com Marciana Evangelha, moça solteira de 29
anos que, no Maranhão, denunciara o jesuíta José Cardoso ao comissário do Santo
Ofício em outubro de 1753. Ela o acusara de pedir-lhe “seu sêmen”, de dizer que
“a desejava ver nua” ou ainda de lhe pegar “nos peitos no confessionário”.
Sobre as relações do padre e a moça, sabia-se, por exemplo – e é o comissário
quem anota –, que esta “o trazia doido e fora de si e que por ela perdia muitas
vezes o sono da noite, o que nunca lhe sucedera com outra mulher alguma” e,
ainda, que “por amor dela havia de sair fora da religião”. Seduzida por
declarações ardentes e promessas, a moça se atrapalhava nos depoimentos. Tanto
que, passados mais dois dias, voltou novamente à presença do comissário para
declarar que o padre lhe garantira que, “se consentisse com ele lhe daria
remédio para que ficando corrupta parecesse virgem e que para não conceber lhe
daria também remédio”.
Pior sorte teve certa Luzia de Souza Vieira, casada com um
pedreiro na Paraíba. Doente, de cama, mandou chamar para confessá-la um
franciscano, frei Raimundo de Santo Antonio, que a solicitou para atos torpes,
além de forçar e ter cópula carnal com a pobre doentinha. Muitas tiveram o
atestado de confissão recusado por padres, pois não consentiam em pecar com
eles. Ou, conhecedoras da malícia de certos confessores, negavam-lhes a
informação correta sobre pecados que cometessem. Caso, por exemplo, de certa
Maria da Silva, viúva sergipana, amancebada havia anos com um baiano useiro e
vezeiro na “prática do pecado nefando de sodomia”, que declarava não admiti-lo
ao confessor. Temia dar-lhe ideias.
Românticos não eram raros. E havia alguns como o padre
Francisco Xavier Tavares, capaz de uma súplica cavalheiresca a Maria Joaquina
da Assunção, mulher casada: “se queria ter com ele uns amores e se consentia
que ele fosse a sua casa”. Outros confessores chegavam a requintes galantes,
ofertando flores às suas escolhidas em pleno confessionário ou fazendo como
padre Custódio Bernardo Fernandes, que, no Recolhimento das Macaúbas, em Minas
Gerais, dissera a Catarina Vitória de Jesus que lhe queria bem. Mais,
perguntando se ela era sua, meteu na boca um raminho, pedindo a ela que o
puxasse com seus dentes.
Mas havia também o avesso da história. O confessionário era
tido como espaço ideal para abordagem de mulheres diabolicamente sedutoras. Na
Bahia, ao receber “um escrito” amoroso da parda Violante Maria, o pároco João
Ferreira Ribeiro mandou-lhe um recado “por um mulato seu confidente” para que
fosse à igreja de Santo Antônio e, acabada a missa, ter com ele no
confessionário. Marcaram então um encontro no caminho que ia para o lago e “lá
entraram ambos no mato e teve ele acesso carnal a ela”. É dela que parte a
iniciativa da conquista. Não à toa, o pregador frei Antônio das Chagas, renomado
franciscano, costumava admoestar: “Confessar e conversar com mulheres me
custa... pois ainda que sejam santas, é mais seguro fugir delas”!
Essas atitudes parecem surpreendentes, sobretudo por virem
de indivíduos que deveriam atuar como agentes de reforma católica dos costumes.
Chocante? Não. As pesquisas têm demonstrado que as ideias reformadoras de
católicos e protestantes só lentamente se traduziram em efetivas mudanças de
comportamento por parte da população cristã. O processo variou em seu ritmo
conforme as regiões atingidas, mesmo se considerarmos apenas o continente
europeu. A exportação da Reforma Católica para o além-mar multiplicou as
dificuldades normalmente impostas a uma tarefa dessa natureza.
Basta lembrar fatores como as grandes distâncias, a falta de
clérigos, a precária estrutura paroquial frente a um imenso território de
ocupação populacional dispersa; as peculiaridades culturais de uma sociedade
híbrida, na qual se despejavam continuamente, por meio do degredo, indivíduos
desviantes da metrópole; os vícios inerentes à escravidão e ao desmedido poder
local concedido aos senhores. Isso tudo atrasou a efetivação da Reforma –
entendida como projeto da aculturação – na colônia. E retardou a possibilidade
de os padres serem homens acima de qualquer suspeita. Como todos os outros,
eram feitos de carne e osso.
Mary Del Priori é pós-doutora em História e tem pesquisas
nas áreas de história colonial, história da cultura e história de gênero. In: Revista História Viva.
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