Clio, Giovanne Baglione
* As raízes do presente. A história faz-nos conhecer a nossa própria origem, revelando-nos assim uma parte considerável da nossa existência no tempo. O homem quer compreender-se a si mesmo: é o esforço constante do espírito humano. Quer saber, quem é, de onde vem, e para onde vai. Ninguém pode escapar por completo a perguntas dessa natureza. Mas o homem culto tem a obrigação de aprofundar-lhes o conteúdo e de estudá-las metodicamente. Ora, a filosofia, guiada ou não pela teologia, dá a esse respeito a última resposta ao alcance do homem. A história, porém, encara o homem na sua situação concreta no tempo, num plano inferior, ainda que muito real, mostrando-nos as numerosas raízes que nos prendem ao passado, deixando-nos entrever o caráter próprio da nossa situação atual. Com efeito, o mundo em que vivemos, é o resultado de vários fatores históricos. Pois não morreu o passado junto com os momentos fugidios que o constituíam, mas continua a viver em nós, quer o aceitemos e veneremos, quer o combatamos e rejeitemos. É uma força que não se deixa eliminar da nossa existência. Compreendeu-o muito bem a escola de todos os tempos: para formar cidadãos, para iniciar as crescentes gerações na tradição pátria, para integrá-las no conjunto social, político e religioso, tem-se valido, não só da literatura nacional, como também da história. [...] Evidentemente, são bem diferentes as preocupações das crianças e dos adultos, dos leigos e dos especialistas, ao se dirigirem à história: mas todos procuram nela melhor compreensão do presente, cada um de acordo com o seu grau de desenvolvimento. Talvez não haja outra ciência tão apropriada a popularizar, no sentido bom da palavra, os seus resultados.
* O passado por causa do passado. Não estudamos a história com o fim exclusivo de melhor compreendermos o presente: dedicamo-nos ao passado também por causa do próprio passado. Interessa-nos aí, principalmente a nós, os adultos, não só o factum, mas igualmente o fieri. Os conhecimentos históricos possuem valor intrínseco, podendo-nos livrar, até certo ponto, de uma mentalidade egocêntrica. O homem "a-histórico", encarcerado que está na atualidade, tende a tornar absolutas as normas que encontra no seu ambiente. É homem pouco "experimentado". Os melhores entre nós tentam, porém, escapar às limitações que lhes são impostas pelo espaço e pelo tempo. Já o sabia Homero: elogiava a Ulisses, porque este visitara muitas gentes, chegando a conhecer-lhes a mentalidade. A "esperteza" do herói homérico baseia-se na sua "experiência". Uma viagem por terras desconhecidas pode livrar-nos de certas preverções e alargar-nos o horizonte intelectual, contanto que sejamos abertos e sinceros. O estudo da história é, por assim dizer, uma viagem não pelo espaço, não "horizontal", mas pelo tempo, "vertical", - uma viagem interessante, instrutiva e esclarecedora. [...] Com efeito, pelo fato de nos descortinar a vida humana em tempos remotos, a história nos pode curar de certas tendências egocêntricas, proporcionando-nos um certo relativismo salutar, um bom antídoto contra os dogmas e os preconceitos da atualidade.
* E o futuro? A história esclarece, pois, as raízes do presente no passado. Mas, conhecendo-se bem o presente, que contém os germes do futuro, não será possível predizer-se o futuro, pelo menos nas linhas gerais? Assim a história, vindo a abranger as três partes do tempo, ganharia importância superior a todas as outras ciências. Mas exortam-nos à modéstia as palavras do Padre Vieira, apesar de ser ele autor de um livro que traz o título paradoxal: "História do Futuro", em que diz: "O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância: do presente sabe pouco, do passado menos, e do futuro nada". É uma verdade óbvia, entretanto, muitas vezes esquecida por aqueles historiadores e filósofos que sobrecarregam Clio com um ônus que lhe ultrapassa as forças. O político Bismarck, homem pragmático, motejava com as lucubrações dos historiadores-advinhos, dizendo: "Querendo saber com certeza o que não acontecerá, faço-me informar pelo sr. Mommsen do que deve acontecer." O historiador não pode predizer o que há de acontecer daqui a cinco minutos: não é profeta. Quando muito, está mais capacitado do que outros, - celeris paribus, - para fazer um prognóstico, não categórico, mas hipotético. Conhece bem, suponhamos, as tendências vivas do tempo atual em busca de efetividade; conhece muito bem numerosas analogias históricas que lhe mostram soluções possíveis de problemas semelhantes; em suma, entende bem o rumo geral do tempo. Mas aí pára irrevogavelmente a sua ciência do futuro. Pois das tendências atuais conhece forçosamente só uma parte mínima, sempre exposto a enganar-se na avaliação da sua força "existencial". Outrossim, o acaso e as livres decisões humanas, imprevistas e incalculáveis, podem sempre frustrar as tendências mais promissoras e fazer vencedoras as que neste momento se subtraem aos nossos olhos. A história é contrária a cálculos exatos sobre o futuro, porque não admite repetições mecânicas de casos idênticos, mas apenas conhece situações análogas, sempre suscetíveis de desfechos diferentes.
* A historiografia pragmática. Os laços, que prendem o historiador à moral, já datam da Antiguidade: lembremo-nos das palavras ciceronianas: magistra vitae. A historiografia "pragmática", inaugurada por Tucídides e prosseguida até nos tempos modernos, pretendia extrair dos fatos históricos exemplos concretos, inspiradores ou horrendos, para uso de príncipes, estadistas, governadores e militares.
Os modernos já não acreditam, como os antigos, no caráter imperioso dos exemplos tirados da história, porque ela, como diz muito bem Paul Valéry, nos ensina de tudo; estão mesmo compenetrados de que a história, por relatar acontecimentos únicos do passado, é incapaz de nos proporcionar regras de conduta, diretamente aplicáveis às circunstâncias concretas do momento atual.
Mas a história faz muito melhor. Não nos torna prudentes para certa ocasião determinada, ensinando-nos a repetir um ato prudente do passado: torna-nos sábios para sempre. A história é a experiência coletiva da humanidade: alarga-nos o terreno forçosamente limitado das experiências pessoais da vida e do homem. É uma escola de humanismo; nada mais interessante para o homem do que o homem. E a história, no fundo, não fala senão das formas variadas de que se tem revestido o Homem Eterno através dos tempos. Faz-nos assistir às peripécias dramáticas do homem que luta e sofre, vence e sucumbe, mas que, apesar das suas derrotas e decepções, sempre se obstina em nutrir esperanças e construir seu futuro. Na história desenrola-se o drama do eterno Lutador e eterno Sofredor, ao qual não podemos assistir sem experimentar em nós sentimentos e emoções semelhantes aqueles que Aristóteles designou com a palavra "catarse", isto é, "purificação". O júbilo e a miséria de outrora, as esperanças e os temores dos antepassados, as vitórias e as derrotas de gerações há muito falecidas, transformaram-se para nós, observadores das vicissitudes humanas, em conhecimentos e reflexão. Reflexão sobre o que? Sobre a riqueza e a pobreza da condição humana. [...]
Se já não podemos aceitar a história como a pedante, tal como a imaginavam nossos antepassados, ela continua para nós "a mestra da vida", num sentido talvez mais sublime ainda; alarga as nossas experiências e ocasiona nossa reflexão sobre a condição humana. Mas, infelizmente, a magistra vitae, também na sua forma moderna, nem sempre tem alunos dóceis.
BESSELAAR, José van den. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: EPU, 1973. p. 106-9.