Campo de mortos, Albin Egger-Lienz
"Nós, as civilizações, sabemos agora que somos
mortais...”
(Valery)
A guerra teve sobre a ordem
social e as relações entre grupos sociais conseqüências incalculáveis, que não
se terão exaurido em 1939.
Em primeiro lugar, a guerra criou
um tipo social novo: o do ex-combatente. Dezenas de milhões de homens voltam
aos lares, marcados por quatro anos de guerra; e, entre eles, estabelece-se uma
solidariedade de sentimentos e interesses. Há, doravante, uma mentalidade de
“ex-combatente”, feita de altivez, fidelidade à lembrança dos mortos, apego à
unidade (unidos como no front) e
hostilidade instintiva às divisões partidárias, aos políticos e às instituições
parlamentares. É também um poderoso grupo de pressão e até mesmo, em certos
casos, uma força política, quando o mal-entendido entre o regime e os antigos
combatentes atinge certo grau de gravidade.
Do social passamos então ao
político. Na França, várias ligas recrutam partidários entre os ex-combatentes:
é o caso, por exemplo, das Cruzes-de-Fogo (Croix-de-feu).
Na Alemanha, o Capacete de Aço, os ex-combatentes das tropas irregulares, que
depois de 1919 prosseguiram numa luta sem esperanças contra os poloneses ou nos
países bálticos, e o partido nacional-socialista jogam com a solidariedade dos
ex-combatentes. Na Itália, o fascismo também buscará inúmeros adeptos entre os
antigos combatentes.
Ao lado dessa conseqüência
direta, a guerra e a inflação conjugadas precipitaram evoluções, acentuaram
desigualdades ou disparidades na escala social, beneficiaram grupos,
prejudicaram outros, acusaram discordâncias e envenenaram relações.
A guerra enriqueceu produtores e
intermediários, fabricantes de guerra, comerciantes. É o fenômeno dos
novos-ricos, que ocupa um lugar tão proeminente na imprensa e na literatura do
após-guerra; toda uma fauna de aproveitadores, muitas vezes improvisados
fornecedores de guerra, embora nada os tivesse preparado para fabricar granadas
ou sapatões para o exército, e que são os descendentes dos municionários de
antanho. Não tem melhor reputação do que seus antepassados: toda a gente
embirrava com eles por haverem ganho dinheiro em detrimento dos que se deixavam
matar. O sucesso material dessa categoria de industriais de guerra, mercadores
que especularam e traficaram, obriga ao reexame das crenças tradicionais na
superioridade do trabalho, na virtude da poupança, e abala a estabilidade dos
valores que constituíam o decálogo da moral liberal e burguesa do século XIX.
No outro campo, no campo dos
empobrecidos, das vítimas da guerra e da inflação, figuram todos os que, tendo
rendas fixas, não as puderam reavaliar e sofreram o contragolpe da depreciação
monetária. É o caso dos rendeiros, tão numerosos na França, na Bélgica e na
Inglaterra no século XIX: muitas pessoas viviam apenas do que lhes rendiam suas
parcas propriedades. A mobilização da poupança pelo mecanismo da obrigação
bolsista e dos fundos do Estado multiplicara os rendeiros. Atingidos pelos
efeitos da depreciação monetária, são vítimas também da bancarrota dos Estados
em que tinham confiado e aos quais haviam emprestado suas economias. A
Revolução Russa engole os bilhões que a França entregou à Rússia desde 1890 e
que eram a contrapartida da aliança militar franco-russa. A caixa otomana já
não está em condições de garantir os pagamentos. Na Hungria, na Bulgária, o
desmembramento dos Estados e a queda dos regimes arruínam milhões de pequenos
poupadores. Calcula-se que há na França cerca de dois milhões de portadores de
fundos estrangeiros. Os que, no princípio da guerra, num rasgo de patriotismo,
também haviam levado seu ouro ao Estado para garantir os empréstimos e tinham
recebido, em troca, simples pedaços de papel, estão agora sem recursos.
Nos países vencidos, a situação
dessas categorias sociais é ainda agravada pela revolução política: o caso
extremo é o da Rússia, em que elas se acham juridicamente despojadas do seu
emprego e das suas rendas. Grande número delas vê-se reduzido a emigrar: o
fenômeno da emigração social e política assume certa amplitude. Os russos
brancos, às dezenas de milhares, vêm fixar-se nos países da Europa ocidental,
que acolhe uma população flutuante de apátridas, desapossados de sua
nacionalidade, que não têm nem solicitam a do país que os acolheu, e para os
quais é preciso imaginar uma fórmula jurídica nova: a do passaporte Nansen, que
lhes dá um estado civil.
Tampouco se poupou o mundo rural:
em conjunto, a agricultura foi uma das vítimas da guerra e da inflação. Ao
contrário do que acontecerá na Segunda Guerra Mundial, caracterizada pela
penúria e pelo mercado negro, os preços dos produtos agrícolas não seguem o
ritmo da inflação; os preços dos cereais e dos outros produtos da terra
permanecem bem aquém dos preços dos produtos industriais. A guerra acelerou o
êxodo rural. As necessidades da indústria de guerra, das manufaturas de
armamentos, criaram uma convocação de mão-de-obra; toda uma população
desarraigada, arrancada ao seu gênero de vida habitual, à sua aldeia, procura
trabalho e alojamento.
A Europa do após-guerra conhece
uma grave crise de habitação, mormente nos países em que a derrota acentua o
fenômeno; o caso mais típico é o da Áustria, cuja capital, Viena, abriga,
sozinha, uma quarta parte da população total do país.
A guerra dissociou as estruturas
tradicionais. Acarretou a extensão do trabalho das mulheres, ou melhor, já que
a proporção não mudou tanto, a modificação dos setores: a mão-de-obra feminina,
até então empregada nas tarefas domésticas, começa a trabalhar nas fábricas.
Todas essas subversões explicam
que o fim da guerra tenha dado novo impulso a uma intensa pressão de agitação
social. Os anos de 1919 a
1921, ou 1922, conforme os países, são marcados, até entre os vencedores, por
uma efervescência de caráter revolucionário. O descontentamento social é
atiçado pelo exemplo da revolução russa, revezada, por sua vez, pelas
revoluções que afetam a Europa Central, a Hungria, a investida espartacista na
Alemanha, as jornadas de insurreição de Berlim e de Munique. A onda de greves que
avassala a Europa não poupa país algum; a França vive em 1920 uma situação de
greve quase geral, que paralisa os transportes e os grandes setores
industriais; a Itália conhece, além disso, uma agitação agrária.
Mercê dessa agitação, a classe
operária obtém, de início, algumas conquistas sociais, como o dia de oito horas
na França (1919). Mas o movimento, que provoca a profunda inquietação dos ricos
e das classes médias, temerosos da bolchevização da Europa, não tarda a
abortar. Em toda a parte se teme que os países venham a cair nas mãos do
comunismo. Por isso mesmo, a agitação acaba deflagrando um fenômeno de reação
contrária.
RÉMOND,
René. O Século XX. De 1914 aos nossos
dias. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 37-40. (Introdução à história de nosso
tempo 3).