"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Aborígenes

Figuras sobrepostas sobre um canguru e uma cobra. Área do príncipe regente de Kimberley. Desenho de Joseph Bradshaw

O povo que povoou a Austrália, 40 mil anos atrás permaneceu isolado do resto do mundo até a chegada dis europeus no século XVIII. Praticavam um estilo de vida caçador e coletor praticamente inalterado, adaptado aos diversos climas e condições ambientais de cada região da Austrália. Cada tribo aborígene recebeu o seu território dos "ancestrais", criadores míticos do povo, e a terra não podia ser vendida, trocada nem doada. As tribos aborígenes eram formadas por clãs encabeçadas por anciãos. O Tempo dos Sonhos, a sua mitologia sobre os ancestrais, era transmitida boca a boca. Cada tribo tinha histórias próprias do Tempo dos Sonhos.

WOOLF, Alex. Uma Nova História do Mundo. São Paulo: M.Books do Brasil, 2014. p. 91.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Persépolis, a capital do Império Aquemênida

A capital real do Império Aquemênida era Persépolis, fundada por Dario I em cerca de 518 a.C. e ligada a uma eficiente rede de estradas reais. Embora o imperador geralmente governasse do palácio de Susa, a oeste, Persépolis era o centro político dos aquemênidas.

Reconstrução do telhado do Apadana, Charles Chipiez

Dario fundou sua nova capital em um planalto cerca de 80 km a sudoeste do antigo centro persa de Pasárgada. Os construtores fizeram um terraço artificial de 135 mil metros quadrados para nele erigirem uma série de palácios e salas de audiência. O maior de todos os prédios era o apadana, um salão de recepções que devia comportar 10 mil pessoas. Na escadaria do apadana, uma série de relevos representava pagadores de impostos das 20 províncias do império levando oferendas para o governante persa, pois Persépolis pode também ter sido a sede do Tesouro.

Vista panorâmica dos jardins do Palácio de Dario I, Charles Chipiez

Dario I ordenou a construção de uma enorme Sala do Trono, e acréscimos ao complexo estavam sendo feitos ainda no reinado de Artaxerxes III (gov. 358-338 a.C.). Em 331 a.C., Alexandre, o Grande, dominou Persépolis, e no ano seguinte um incêndio a arrasou.

PARKER, Philip. Guia ilustrado Zahar: história mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A história da História Antiga 5: História, Antropologia, Economia e Sociologia

Portão Herculano em Pompeia, Jakob Philipp Hackert

Um dos marcos da nova forma de pensar a História Antiga foi o livro A cidade antiga, do francês Fustel de Coulanges, publicado em 1864. A ideia central desse autor era de que a cidade greco-romana se originara da comunidade religiosa indo-europeia, centrada no culto ao fogo doméstico e aos ancestrais. Ela seria uma família progressivamente ampliada e transformada pela evolução das ideias religiosas.

De Coulanges, na verdade, dividiu seu livro em duas partes. Na primeira parte, apresentou uma espécie de pré-história da cidade antiga, que remontava às origens dos tempos e na qual a cidade era tratada como uma comunidade de culto oriunda da junção de famílias (gentes), destas em tribos, e por fim em cidades, cada qual exclusiva, pois compartilhava deuses e rituais únicos. A cidade religiosa seria, assim, a unidade básica da História Antiga, vista como uma etapa no desenvolvimento da inteligência dos indo-europeus. Cada cidade seria uma igreja específica, embora os fundamentos da comunidade religiosa fossem comuns a todas elas. Seu particularismo era, portanto, seu traço de união, assegurado pela unidade da raça ariana.

Na segunda parte da obra, a que trata da cidade histórica propriamente, esta já aparecia em pleno processo de sua dissolução. Os vínculos comunitários teriam se enfraquecido progressivamente e as cidades assumido as características de sociedades em conflito, pelo poder e por bens materiais, o que prenunciava seu desaparecimento sob a conquista romana.

Dois autores, que não eram historiadores da Antiguidade, merecem uma menção especial, pois influenciaram muito a História Antiga na segunda metade do século XIX: Karl Marx e Max Weber. Os escritos de Marx sobre a Antiguidade são esparsos e muitas vezes contraditórios. Há duas linhas de pensamento principais, que influenciaram a historiografia do século XX. A mais conhecida delas é claramente evolucionista. Marx definiu etapas do desenvolvimento histórico que denominou modos de produção, caracterizados pelas diferentes relações de exploração entre proprietários e trabalhadores. Esses modos seriam universais e apareceriam na História como uma sequência: a comuna primitiva, o modo de produção asiático, o escravista, o feudal e o capitalista.

Mas foi em um rascunho escrito em 1857, intitulado Formas que precedem a exploração capitalista, que Marx apresentou sua mais bem elaborada visão da Antiguidade. Nesse texto [...] Marx contrapunha a forma da cidade greco-romana, que chamava de cidade antiga, com o que denominava de forma asiática e de forma germânica. Ao contrário do mundo contemporâneo, essas formas se caracterizariam por um forte vínculo comunitário, entendido como condição para a apropriação produtiva da terra. Na forma antiga [...] a comunidade também era a condição prévia da apropriação da terra, mas não aparecia na forma de uma comunidade superior - como no mundo asiático, que englobava as comunidades menores -, mas sim como uma associação única, a cidade. O trabalho da terra não era difícil, não sendo necessários esforços coletivos. [...] A guerra (e não as obras públicas) era a grande tarefa comunal.

A comunidade/cidade seria assim uma força militar. A concentração de moradias na cidade seria a base de uma organização bélica. A guerra, por sua vez, e a própria natureza da estrutura tribal anterior levariam à diferenciação entre os membros da comunidade (inferiores e superiores, conquistadores e conquistados, livres e escravos).

Seria dessa forma, segundo Marx, que a propriedade comunal teria se separado da propriedade privada. [...]

Para ser proprietário privado, a condição prévia era ser membro da comunidade, era ser cidadão. [...] O fato de possuir terra dependia da existência do próprio Estado. Mas a cidade só se mantinha se as diferenças entre os cidadãos não fossem muito acentuadas. O crescimento da desigualdade entre os proprietários livres levava à guerra civil e à dissolução da comunidade.

[...]

Max Weber, que conhecia bem as fontes da História Antiga, também centrou suas interpretações em torno da cidade antiga, sem se importar com as divisões tradicionais entre as Histórias da Grécia ou de Roma. Max Weber escreveu três textos fundamentais para o historiador da Antiguidade: As causas do declínio da cultura antiga, de 1896, Relações agrárias na Antiguidade, de 1898, e um texto denso e complexo, publicado postumamente em 1924 e que não diz respeito apenas à Antiguidade, A cidade. [...]

[...] a ideia essencial de Weber é a de que existiu uma cidade "ocidental", diferente daquela "oriental". A cidade ocidental caracterizava-se por uma comuna de agricultores, cidades independentes e proprietários privados. Já a cidade oriental era dominada por uma burocracia e dependia de um poder centralizado, que podia ser um palácio monárquico e guerreiro ou um grande templo.

Na cidade ocidental, que primeiro fora aristocrata, os pobres haviam ganhado, com sua cidadania e sua liberdade política, o direito de não serem explorados pelos mais ricos. Estes últimos dependiam da exploração racional do trabalho escravo, tanto no campo, como na cidade. [...]

Para Weber, tanto a cidade antiga como a medieval eram burguesas, no sentido de que se sobrepunham às grandes famílias, suprimiam as relações entre gentes aristocráticas e instituíam uma forma de poder público, e não familiar ou hereditário. Para Weber, a cidade antiga era, acima de tudo, a sede dos proprietários rurais, que viviam das rendas obtidas no campo. [...]

[...] A riqueza urbana do mundo antigo conduziu as elites a um estilo de vida ocioso, voltado para o luxo e a produção cultural: essa foi uma de suas fraquezas, mas também uma das causas do brilho da cultura antiga. O declínio do abastecimento de escravos, provocado pelo fim das conquistas do Império Romano, levou à queda da produção mercantil e racional, marcando a decadência da cidade antiga e a perda de brilho de sua cultura erudita.

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Conexto, 2013. p. 23-6.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

A história da História Antiga 4: Um novo olhar para o passado

Escavação do Templo de Ísis em Pompeia, Pietro Fabris

Na segunda metade do século XIX, a História Antiga recebeu um novo impulso, proveniente da História Natural e do surgimento da Antropologia, da Sociologia e da Arqueologia. Abriram-se novos campos para o conhecimento das Ciências Humanas: a sociedade, a família, a comunidade, a economia, a cultura e a religião. O grande marco dessas concepções foi, sem dúvida, o livro de Charles Darwin, A origem das espécies, publicado em 1859. Mas Darwin era apenas parte de um movimento mais amplo.

A partir dos anos de 1860, a própria noção de tempo sofreu uma mudanã drástica. Para fornecer um contraponto, em 1654, o bispo anglicano Ussher havia calculado a criação da terra no dia 4 de outubro de 4004 a.C. Foi essa noção de um tempo curto que as ciências, no final do século XIX, aniquilaram. Séculos e milênios se abriram. Não apenas para a evolução da vida, mas também para a transformação do próprio homem e da sociedade humana. O homem primitivo, que antes era visto apenas como um contemporâneo atrasado, passou a fazer parte da História de todos os homens. Toda a História passou a ser vista pelo ângulo da evolução, pelas etapas da evolução, pela noção de mudança e de progresso.

A própria ideia de evolução não era nova. Em 1774, o alemão Johann Winckelmann havia publicado sua História da arte da Antiguidade, influente até hoje, na qual organizava a arte grega em períodos e descrevia seu desenvolvimento até o que considerava seu ápice: a arte ateniense do período clássico (século V a.C.). Em 1825, um arqueólogo dinamarquês, Christian Thomsen, havia organizado as coleções de objetos do Museu Nacional da Dinamarca, recolhidas de sepulturas, segundo o que acreditava serem três períodos do desenvolvimento da tecnologia do homem pré-histórico: a Idade da Pedra, a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. O catálogo de Thomsen foi extremamente influente, tendo sido traduzido para várias línguas. Criou uma forma de organizar o passado que [...] ainda é importante.

Essas ideias, no entanto, só se tornaram hegemônicas entre o final do século XIX e o início do XX. As mais importantes foram: a ideia de evolução, a de civilização, a de progresso e a da superioridade da Europa sobre o resto do mundo. Elas estão intimamente ligadas ao desenvolvimento tecnológico e à expansão imperialista das potências europeias sobre o planeta. Foi no bojo delas que se desenvolveu outra ideia, que teria consequências dramáticas: a da superioridade racial dos europeus.

Foi nesse período que a História Antiga se tornou o início de uma linha progressiva de civilização. Graças às descobertas arqueológicas no Egito e na Mesopotâmia e à decifração dos hieróglifos e da escrita cuneiforme, alguns estudiosos colocavam o início dessa linha no Oriente Próximo, como o grande historiador alemão Eduard Meyer. Sua História universal foi a última a conseguir reunir, num todo, as Histórias do Egito, da Mesopotâmia, da Grécia e de Roma. Outros historiadores, a maioria, preferiam iniciá-la com o "milagre" grego. Foi então que se consolidou a ideia de que a História do Ocidente era o centro da História Universal e que a Europa capitalista representava o ápice da História mundial, a verdadeira civilização, cujo destino era o de expandir sua cultura superior para o restante do planeta. O Império Romano foi também repensado como instrumento de civilização ocidental. Com suas conquistas, o Império romanizara antigas regiões bárbaras, levando a elas a possibilidade de receberem e aceitarem a civilização greco-romana.

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. p. 21-3.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A história da História Antiga 3: O nascimento da História científica

O Panteão em Roma, Hans Ruzicka-Lautenschläger


O nascimento da História científica coincidiu com o nascimento da História Antiga. Representou a junção das teorias sociais e políticas da época com a leitura crítica das fontes escritas antigas e a sistematização dos repertórios de fontes recolhidas pelos antiquários. A primeira grande obra sobre a História Antiga foi O declínio e queda do Império Romano, do escocês Edward Gibbon, escrita entre 1776 e 1788, que encarava o século II d.C. como a época áurea da humanidade e atribuía o declínio do Império, ao menos em parte, à influência nociva do cristianismo.

Várias ideias novas confluíram na construção da História Antiga como disciplina científica e muitas delas afetam seu ensino até os dias de hoje. A exclusão do Oriente foi uma delas. Em muitas universidades, o estudo da Bíblia, do Egito, da Mesopotâmia e do cristianismo tornaram-se especialidades à parte. A História Antiga passou a ser obra de especialistas, quase sem comunicação entre si. E permanece assim até hoje. Além disso, impulsionada pelo romantismo, a História Antiga tornou-se uma História das nações. Uma nação era concebida como sendo formada por um mesmo povo, com uma mesma língua, uma só ancestralidade, uma cultura comum, um só Estado. Para a maioria dos estudiosos, a História das nações europeias começava na História da nação grega.

Ao mesmo tempo que os modernos Estados nacionais surgiam na Europa, os historiadores da Antiguidade buscavam Estados e nações na Grécia e em Roma. Era inevitável que assim fizessem, pois era assim que concebiam que toda sociedade devia ter se organizado. Mas, dessa necessidade, surgiram dois dilemas, que ainda se refletem no ensino. Nunca houve um Estado grego, uma Grécia na Antiguidade, cuja História pudesse ser narrada de modo contínuo. Os gregos podiam ser considerados como nação, mas sem um Estado único. E Roma era apenas uma cidade, em meio a tantas outras. E no período imperial, quando constituía realmente um único Estado, englobava muitas nações. A História do Império Romano tornava-se, assim, quase impossível, a não ser como a História da sucessão de imperadores individuais.

Essas questões conceituais apareceram nas primeiras Histórias da Grécia, como a escrita por George Grote (1846-1856), ou nas famosas Histórias de Roma, dos alemães Barthold Niebuhr, publicada entre 1812 e 1828, e de Theodor Mommsen (1854-1856). Ambos enfatizavam a História do Estado, dos grandes personagens e das grandes guerras. Não devemos considerá-las crônicas. Representam o conhecimento que se podia ter à época e foram verdadeiros marcos da História científica. Pela primeira vez, historiadores contemporâneos conseguiam interpretar fatos e acontecimentos de mais de dois milênios atrás com mais rigor e precisão que os historiadores antigos.

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. p. 20-1.

sábado, 21 de janeiro de 2017

A história da História Antiga 2: A criação do Antigo

Templo de Vesta, Heinrich Bürkel

A partir do século XII, esses textos passaram a ser cada vez mais procurados e difundiu-se, a partir da Itália, a ideia de que eles representavam algo dferente da cultura contemporânea: eram a herança escrita dos antigos. Muitos pensadores, poetas, artistas e curiosos da natureza começaram a debruçar-se sobre esses textos, extraindo os livros originais das grandes compilações manuscritas. A ideia de que tinha havido um mundo "antigo", anterior ao cristianismo, com uma cultura rica e singular, difundiu-se, aos poucos, pelas cortes europeias e pelos literatos. Essa cultura laica, livre do domínio da Igreja, parecia muito adequada aos novos tempos.

Fornecia novos padrões estéticos, novas formas de pensar as relações entre sociedade e Estado, de valorizar a riqueza e o comércio, de projetar novos futuros. Com a divulgação da imprensa, no século XIV, os grandes livros do "mundo antigo" foram reeditados e voltaram à vida. Autores como Homero, Virgílio, Aristóteles, Plutarco, Tito Lívio, Tácito e muitos outros passaram a fazer parte da cultura erudita por quase todo o oeste da Europa. A queda de Constantinopla para os turcos, no século XV, acentuou a redescoberta de textos gregos, ao mesmo tempo que colocou, de forma dramática, a oposição entre a Europa cristã e clássica e o mundo islâmico.

As antigas ruínas, às quais não se prestava atenção, passaram a ser consideradas testemunhos desse mundo "antigo". Edifícios  foram descritos ou desenhados, estátuas e pinturas foram resgatadas, inscrições foram copiadas, moedas foram colecionadas e formaram-se as primeiras coleções de objetos "antigos". O impacto da cultura erudita, dos sábios e das cortes europeias, foi imenso. É a esse processo que se dá o nome equivocado de Renascimento. Não foi um renascer passivo, mas uma reconstrução profunda da memória, com objetivos bem presentes: rejeitar uma parte do passado mais recente, definindo-o como "Idade Média" ou "Idade das Trevas", para construir uma nova identidade, voltada para o presente e para o futuro.

Todos os grandes cientistas e artistas da Europa moderna viveram intensamente esse processo e contribuíram para ele: Copernico, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Cristóvão Colombo, Newton, Galileu, Thomas Hobbes, Camões, Shakespeare seriam impensáveis sem os "antigos". E a lista é infindável. A opção de reconstruir essa memória deixou uma marca profunda no que viria a ser a moderna concepção de Ocidente. A criação do "antigo" foi uma verdadeira revolução cultural que, aos poucos, atingiu todas as camadas da população. O "mundo antigo" tornou-se, assim, um participante ativo e necessário de outras revoluções: políticas, sociais e econômicas, cujas consequências sentimos até hoje.

A redescoberta do mundo dos antigos não conduziu, de imediato, à produção de uma História Antiga como a entendemos hoje. Um respeito profundo pelos textos em grego e latim, assim como pela Bíblia, impedia a leitura crítica dos textos antigos. Os famosos Discursos sobre a História Universal, escritos pelo francês Jacques Bossuet no século XVII, começavam com Adão e terminavam com Carlos Magno, com o qual findava a História Antiga. Não havia, ainda, uma História científica. Essa começou a se firmar entre os séculos XVII e XVIII. Primeiramente com uma batalha cultural: a dos modernos contra os antigos. Esta se deu em todos os campos do conhecimento, das ciências e das artes. Foi o período da cultura europeia que se costuma chamar de Iluminismo.

GUARINELLO, Luiz Norberto. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. p. 18-20.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A história da História Antiga 1: Introdução

Pompeia, Robert S. Duncasnon

O que hoje denominamos de História Antiga foi, no princípio, um movimento cultural e literário de produção de memória a partir de textos e objetos. Após a dissolução do Império Romano ocidental, a lembrança de um passado pré-cristão foi aos poucos se dissolvendo. Os vestígios materiais do Império eram como ruínas nas paisagens, espaços da vida cotidiana, mas não lugares da memória. Na própria Roma, que fora capital do Império, o fórum era um lugar para o pastoreio de animais e as antigas construções e estátuas eram dissolvidas em grandes fornos para produzir cal. O passado, mesmo o bíblico, parecia comprimido num eterno presente, sem profundidade ou mudança.

Testemunhos dessa visão do passado como imutável são as ilustrações de manuscritos medievais que mostram antigos personagens e feitos com a roupagem e os costumes de sua própria época. Mas o passado não fora simplesmente anulado. Por um lado, ele sobrevivia como trabalho morto, ou seja, como uma série de conhecimentos acumulados que nunca se dissolveram: na arte de forjar o ferro, na agricultura, na arquitetura, nos objetos artesanais da vida cotidiana, nos costumes. E isso, não apenas no que viria a ser a Europa Ocidental, mas por todo o espaço que fora ocupado pelo antigo Império Romano: tanto nas terras do Islã, quanto naquelas do Império de Bizâncio. Por outro lado, esse trabalho morto sobrevivia também como textos escritos, reproduzidos nos códices medievais e mantidos em diversas bibliotecas de particulares, de monastérios, ou mantidos na corte de Constantinopla, em grego, ou ainda preservados em árabe, circulando, sobretudo, no Mediterrâneo.

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. p. 7-8.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Morte de um europeu do século VIII

Batalha de Roncenvaux: morte de Rolando, Jean Fouquet

A célebre canção de gesta, uma epopéia, A Canção de Rolando, narra a morte de Rolando, sobrinho de Carlos Magno, morto nos Pirineus, em Roncenvaux, em 778, quando voltava de uma campanha de Carlos Magno contra os muçulmanos no norte da Espanha. Entre os mortos dessa batalha, há também um importante personagem da corte, Egginhard. A inscrição gravada em seu túmulo diz: "O italiano chora por ele, o franco tem o coração torturado, a Aquitânia e a Germânia estão de luto". [...]

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 65.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Ex-escravos que tinham escravos

Barraca de negra livre no Rio de Janeiro, Henry Chamberlain

O sistema escravista permeava toda a vida colonial, ou seja, o costume de ter escravos era adotado em todo o Brasil por quem pudesse comprá-los. Claro que havia pessoas que se revoltavam contra a escravidão de seres humanos, mas eram exceções em uma sociedade em que a escravidão fazia parte da ideologia dominante.

Os negros escravizados aproveitavam todas as oportunidades de utilizar seus talentos inatos e suas habilidades adquiridas para melhorar sua sorte. Observando as oportunidades (não muitas) e as condições dos costumes coloniais, procuravam acumular um pecúlio para comprar a própria liberdade e a de sua família (membros com os quais tinham contato). Uma vez estabilizados em algum ofício ou comércio, percebiam a necessidade de possuir mão de obra para obter maiores ganhos. Dadas as condições sociais, a única solução parecia ser a posse e o uso de escravos, o que explica o fenômeno de ex-escravos que possuíam escravos.


MESGRAVIS, Laima. História do Brasil colônia. São Paulo: Contexto, 2015. p. 90.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Quem foram os bandeirantes? (Ou como eles foram vistos historicamente)

A morte do bandeirante, Antônio Parreiras

O imaginário social a respeito dos bandeirantes variou conforme o momento histórico. Nos primeiros tempos do século XVI, eles inspiraram um misto de respeito pela sua coragem, frugalidade e disposição de defender a sua vida contra ataques de índios e piratas. Por um lado, eram famosos pela sua dureza contra os índios que capturavam. Por outro, devido à sua ascendência, revelavam uma boa compreensão dos costumes indígenas e capacidade de se comunicar com índios. Quando foram necessários para as Guerras dos Bárbaros, foram bajulados pelos nordestinos e as autoridades portuguesas.

Bandeirante, Rodolfo Amoedo

A descoberta do ouro no fim do século XVII valorizou ainda mais sua imagem. Porém, esse prestígio logo se enfraqueceu em razão de inveja e competição pelas riquezas minerais. Os testemunhos oficiais do século XVIII os descrevem como “indomáveis”, “arrogantes” e “desobedientes perante a Coroa”.

O século XX reforçou a imagem heroica depois substituída pela de “cruéis destruidores de índios”. A ideia de heroísmo foi alimentada pelos paulistas, que, desde a virada do século XIX para o XX, ascendiam economicamente no Brasil com as lavouras de café e a industrialização; para coroar seu sucesso, resgataram a figura dos bandeirantes como “grandes desbravadores”, “homens corajosos e empreendedores” que, com suas expedições, ampliaram o território brasileiro.

Chefe bandeirante, Henrique Bernardelli

O desgaste da imagem dos bandeirantes no século XX decorreu da valorização dos grupos indígenas e de sua cultura nos meios acadêmicos e em certos órgãos governamentais.

Em termos históricos, o mais adequado é compreendê-los situados em seu tempo [...].


MESGRAVIS, Laima. História do Brasil colônia. São Paulo: Contexto, 2015. p. 34-5.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Jesuítas: aliados ou inimigos da Coroa e dos colonos?

As relações entre as autoridades portuguesas, os colonos e os jesuítas sempre foram complexas e ambíguas, variando também conforme as situações criadas pela atuação do quarto elemento: os índios.

Aldeia de índios tapuios cristianizados, Rugendas


A Coroa queria uma colônia pacífica, povoada e produtora de riquezas. Os colonos queriam escravos e mulheres que pudessem servi-los e satisfazer seus desejos sexuais. Os jesuítas queriam salvar a Europa dos protestantes heréticos e converter os pagãos da América, África e Ásia para aumentar a quantidade de católicos seguidores de seu modo de pensar. Os índios queriam viver em paz e a saída de todos os forasteiros.

Portanto, com relação aos índios, a Coroa não queria sua extinção, pois contava com eles para garantir a ocupação da colônia, mas não se importava muito com a maneira como eram usados para gerar riquezas. Os colonos, antes da importação maciça de africanos, queriam usar os índios como mão de obra escrava (e as índias como objeto sexual). Quando temiam os confrontos ou precisavam de ajuda para se adaptar, procuravam conviver pacificamente com os índios; quando pensavam que podiam submetê-los ou quando já contavam com os escravos africanos, passaram a desprezá-los.

Último Tamoio, Rodolfo Amoedo

Os jesuítas, por sua vez, procuravam conciliar os objetivos da Coroa e dos colonos com sua utopia de, com a conversão e a doutrinação dos índios, criar e liderar um povo de “cristãos puros e tementes a Deus”. Quando ajudavam a pacificar os nativos ou administrar a colônia, colaboravam com os interesses da Coroa e dos colonos. Quando se colocavam totalmente contra a escravidão indígena ou agiam com muita independência, entravam em atrito com eles.


MESGRAVIS, Laima. História do Brasil colônia. São Paulo: Contexto, 2015. p. 29.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Anúncios nos jornais uruguaios de 1840



Vende-se:

- Uma negra meio boçal, da nação cabinda, pela quantidade de 430 pesos. Tem rudimentos de costurar e passar.

- Sanguessugas recém-chegadas da Europa, da melhor qualidade, por quatro, cinco e seis vinténs uma.

- Um carro, por quinhentos patacões, ou troca-se por negra.

- Uma negram de idade de treze a catorze anos, sem vícios, de nação bangala.

- Um mulatinho de idade de onze anos, com rudimentos de alfaiate.

- Essência de salsaparrilha, a dois pesos o frasquinho.

- Uma primeiriça com poucos dias de parida. Não tem cria, mas tem abundante leite bom.

- Um leão, manso feito um cão, que come de tudo, e também uma cômoda e uma caixa de embuia.

- Uma criada sem vícios nem doenças, de nação conga, de idade de uns dezoito anos, e além disso um piano e outros móveis a preços cômodos.

(Dos jornais uruguaios de 1840, vinte e sete anos depois da abolição da escravatura)

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 77.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Arquitetura monumental: as pirâmides de Gizé

A Grande Esfinge e as pirâmides de Gizé, David Roberts

Para garantir sua imortalidade, alguns faraós mandaram erigir gigantescas construções que lhes serviam de última morada. Nelas era depositada a múmia do soberano, que acreditava estar, assim, desfrutando da mesma grandiosidade que havia conhecido em vida. A Quarta Dinastia foi a idade das grandes pirâmides. Dessa época é o conjunto construído nos arredores de Gizé, do qual fazem parte as pirâmides de Queóps, Quéfren e Miquerinos, e a monumental esfinge esculpida num único bloco de calcário, com o corpo de leão e a cabeça do rei Quéfren. 

História das Civilizações. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 4. V. 1.

domingo, 8 de janeiro de 2017

A agricultura nas sociedades indígenas do Brasil

A maioria dos grupos indígenas do Brasil pratica a agricultura de coivara. Trata-se de uma forma de cultivo presente não apenas entre os aborígines brasileiros, mas também em outros continentes em toda a região tropical. Tal agricultura se realiza somente em terras florestais. Para limpar o terreno necessário a uma lavoura, é preciso derrubar uma porção da floresta, o que se faz na estiagem. Algum tempo depois, estando os troncos e galhos caídos suficientemente secos, lança-lhes fogo. As chamas não consomem totalmente as árvores caídas; os grossos troncos ficam enegrecidos e o terreno continua ainda cheio de garranchos que não se queimaram de modo total. Então os agricultores cortam esses garranchos, juntam-nos em vários montes, o que constitui a coivara, deles fazendo outras tantas fogueiras. Assim o terreno fica pronto para ser semeado. O aspecto do terreno preparado desse modo é bem chocante para aqueles que, não estando familiarizados com esta modalidade agrícola, imaginam o campo a ser semeado como uma área retangular, com a terra toda homogeneamente revolvida, como nas regiões temperadas. Mas não é nada disso: o terreno tem uma forma irregular e nem sempre está todo no mesmo nível; está inteiramente recoberto de cinzas, contrastando com a floresta verdejante que o envolve; o chão aparece por uma intrincada rede de troncos enegrecidos que o fogo não queimou totalmente; a cinza mal esconde as pontas negras que emergem do chão, restos dos caules de vegetais de pequeno porte cortados pelos agricultores, aqui e ali alteia um grande tronco que, tendo oferecido alguma resistência aos trabalhadores, não foi derrubado.

Índio Tapuia, Albert Eckhout


É justamente no espaço disponível entre os troncos caídos que se faz o plantio. Essa tarefa se inicia com as primeiras chuvas. Não há faixas de terra nitidamente demarcadas para cada gênero de planta. Eles crescem mais ou menos misturados, embora não tenham sido plantados na mesma ocasião. Os produtos agrícolas, ao invés de estarem separados em áreas justapostas, mais parecem estar, ao contrário, em camadas superpostas: olhando-se uma dessas roças, destacam-se dos demais vegetais os frutos das bananeiras e dos mamoeiros, que ocupam o estrato superior; numa camada mais baixa estão as espigas de milho; ao rés do chão, as abóboras; na camada mais inferior, dentro da terra, as batatas-doces, os inhames, as raízes de mandioca.

Um pouco mais de atenção sobre as roças indígenas faz perceber uma ordem no seu aspecto inicialmente confuso ao observador estranho. Os caiapós derrubam as árvores de modo que caiam umas sobre as outras em pilhas que deixam entre si espaços vazios. Nesses espaços são plantados os tubérculos antes que se faça a queimada. Isso permite que seu sistema de raízes se forme de modo a aproveitar os nutrientes que se infiltrarão com as primeiras chuvas. A queimada, realizada antes das chuvas, é feita em separado para cada pilha de modo a evitar o calor excessivo, que prejudicaria as raízes em formação. As roças marubos, quanto vistas do alto, de um avião, mostram duas tonalidades de verde: uma da macaxeira, plantada em duas faixas paralelas, uma de cada lado dos caminhos traçados pelo cimo das colinas; outra do milho, plantado nas encostas dessas colinas. Nos corredores de macaxeira se plantam também mamoeiros e pupunheiras. A macaxeira se conserva no solo e vai sendo colhida conforme a necessidade; os mamoeiros produzem por uns poucos anos; e as pupunheiras por muito mais tempo, aí ficando, mesmo depois que a maloca se tenha transferido. Entremeadas ao milho, plantam-se as bananeiras, que se desenvolvem após a colheita do primeiro.

Índia Tupi, Albert Eckhout


[...] Depois de um, dois ou mais anos, o terreno cultivado já não produz satisfatoriamente, o que obriga os agricultores a derrubarem uma outra porção da floresta. Após algum tempo, tendo os agricultores esgotado os terrenos que estão a sua volta, devem migrar para mais longe, a fim de derrubarem outras porções de floresta.

Atualmente, a maior parte dos índios do Brasil se utiliza de facões, machados e enxadas de ferro. Mesmo aqueles grupos indígenas ainda isolados dos brancos recebem esses instrumentos dos postos de atração mantidos pela Funai ou por intermédio de outros indígenas ligados aos brancos. Porém, antes da introdução dos instrumentos de ferro, utilizavam-se de machados de pedra para cortar os troncos vegetais, sendo que as árvores mais grossas eram derrubadas fazendo-se fogueiras em torno delas. O solo era perfurado, para a semeadura, ou para o arrancamento de raízes comestíveis, com ajuda de paus pontudos, que se costuma chamar de “bastões de cavar”. Esses bastões, em certas atividades, resistem à concorrência das ferramentas de metal: os marubos continuam a usar seus cavadores de madeira de tronco de pupunheira para plantar as mudas de bananeira.

Embora as técnicas agrícolas sejam mais ou menos as mesmas entre os vários grupos tribais brasileiros, mesmo assim as sociedades indígenas diferem no que toca à agricultura. Em primeiro lugar, nem todas dão a mesma importância às atividades agrícolas, algumas possuindo roças razoavelmente grandes, como sói ocorrer com os índios do tronco tupi, e outras, plantações bem pequenas, tal como se vê entre os timbiras ou os xavantes. Em segundo lugar, diferem na ênfase que dão a certas espécies cultivadas. Assim, enquanto a agricultura dos tupis dá mais importância ao plantio do milho e da mandioca, os jês setentrionais e centrais cuidaram mais do plantio da batata-doce e do inhame, pelo menos no passado. Os timbiras e os xerentes, para dar mais um exemplo, plantam um vegetal completamente desconhecido aos outros índios: trata-se do cipó comestível denominado kupá. A agricultura dos xavantes anterior à chegada dos brancos só consistia no plantio de três vegetais, a mandioca, tanto a brava quanto a mansa (aipim ou macaxeira), a batata-doce, o milho, a fava, a abóbora, o cará, o ananás, a pimenta; aprenderam também o cultivo da banana, do arroz, da batata-inglesa, da cana-de-açúcar, do algodão.

MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 100-103.

sábado, 7 de janeiro de 2017

A coleta nas sociedades indígenas do Brasil

[...] Para os poucos grupos indígenas que não praticavam a agricultura, a coleta era o único meio de obter alimento vegetal. Não há propriamente exemplos de índios sem agricultura no Brasil recente; houve o abandono da agricultura por alguns deles, antes do contato como os brancos, por um certo período, para mais facilmente escapar a ataques ou por julgá-la dispensável diante do que o meio então oferecia; foi o caso dos guajás do Maranhão, dos xoclengues de Santa Catarina e de parte dos paracanãs do Pará. Nas atividades de coleta também se pode incluir a procura de animais minúsculos, como gafanhotos, certas larvas, determinadas espécies de formigas e de produtos de origem animal, como o mel, ovos de tartaruga etc.

Grupo de camacãs na floresta, Maximilian zu Wied-Neuwied


As atividades coletoras variam com as regiões e segundo as tradições alimentares de cada sociedade. Os xoclengues, por exemplo, por viverem no sul do Brasil, podem dar uma grande importância à coleta do pinhão, mas não têm em seu território os frutos do buriti, a cuja procura se aplicam os timbiras do Brasil Central.

A coleta não inclui apenas elementos comestíveis, mas também matéria-prima para elaboração de produtos diversos: plantas que tenham qualidades medicinais ou mágicas, canas para a fabricação de flechas, fibras para fazer cordas, timbó para entorpecer peixes, cal para pintar o corpo, cera e resinas que sirvam de adesivos, em suma, uma infinidade de elementos.

Tribo indígena, Johann Moritz Rugendas


No passado, a coleta era uma das atividades que os timbiras praticavam quando saíam de suas aldeias em longas expedições após terem plantado suas roças. Essas expedições duravam até o momento em que o milho das roças estava pronto para ser colhido. Até pouco depois de seu contato com os brancos, em meados do século XX, os xavantes passavam a maior parte do ano a fazer expedições que duravam de seis semanas até três ou quatro meses, freqüentando os locais, nas épocas adequadas, onde podiam coletar itens vegetais que constituíam matéria-prima para seus artefatos. E os matis, de sudoeste do Amazonas, após o contato, valem-se das embarcações motorizadas da Funai, para mais facilmente se transportarem até os locais onde há os vegetais necessários à confecção do curare.


MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 99-100.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A pesca nas sociedades indígenas do Brasil

A ênfase nas atividades de pesca também varia de uma sociedade para outra, e são muitas as técnicas utilizadas para a obtenção de peixes. É muito comum, entre os índios do Brasil, o uso de vegetais que têm a propriedade de matar ou atordoar os peixes, como o tingui ou timbó. A pesca com tais elementos tem de ser de caráter coletivo, visto o trabalho exigido para efetuá-la: os cipós de timbó são cortados e amarrados em feixes; esses feixes são surrados com cacetes e mergulhados continuamente na água, para que fique impregnada pelo suco do vegetal. Entre os índios do alto Xingu, uma barragem é previamente construída para fechar a saída da lagoa ou deter o curso das águas do igarapé, e os meninos batem com varas na água para afugentar os peixes na direção da barragem, onde a concentração do tóxico é maior. Do outro lado da barragem, são colocadas canoas para aparar os peixes que conseguem pulá-la; quando escapam às canoas, são abatidos a flechadas. Entre os craôs, a barragem não é construída; por isso, o ribeirão só pode ser impregnado com timbó na estação seca, quando suas águas são poucas e mansas; uma vez impregnada a água, as famílias vão descendo pelas margens do ribeirão, acompanhando o suco do timbó, que desliza juntamente com as águas. Os peixes, atordoados, imóveis, descem ao sabor da corrente. Mas dificilmente podem ser apanhados com a mão, pois, uma vez tocados, debatem-se e escorregam; são, por isso, fisgados com flechas de ponta de osso ou simplesmente de pau-roxo, pois estas se prendem no peixe. [...] A flecha, uma vez fisgado o peixe, flutua com ele e é apanhada com a presa pelo pescador. Os peixes podem ser abatidos também a golpes de facão e depois apanhados com a mão.

Família de botocudos atravessando um rio, Maximilian zu Wied-Neuwied


Quando as águas são claras e mansas, é possível fisgar os peixes com flechas, sem auxílio de entorpecentes, sendo que o pescador os espera nos lugares mais propícios, como, por exemplo, no alto de uma árvore cujos galhos estejam por sobre as águas e cujos frutos sejam apreciados pelos peixes.

Há também armadilhas que podem ser utilizadas na pesca. Os índios teneteharas, por exemplo, possuem vários tipos. Um deles é o pari; trata-se de um cesto cilíndrico, totalmente fechado numa extremidade e, na outra, há uma abertura afunilada que permite a entrada do peixe, mas não sua saída; é colocado no fundo dos igarapés, com uma isca no interior. Uma outra armadilha usada pelos mesmos índios é o mororó, também um cesto cilíndrico, mas com as duas extremidades abertas, sendo que a inferior termina em pontas aguçadas; é usado em águas rasas, sendo fincado no leito da corrente no momento em que passa um cardume, retirando-se os peixes pela abertura superior. Uma terceira armadilha, chamada igualmente pari, constitui-se de uma esteira de talos, amarrados um ao lado do outro, tendo pontas aguçadas na parte que deve tocar o fundo do igarapé. A cerca, flexível, é fincada no meio do igarapé à moda de labirinto, sendo feita uma barragem entre as margens do igarapé e o pari, para induzir os peixes a entrar no labirinto. Os índios do rio Uaupés, afluente do rio Negro, também dispõem de armadilhas para a pesca. Uma delas é o mesmo pari de boca afunilada dos índios teneteharas. Outra, o cacuri, é constituído por um cercado de varetas com uma abertura que cede quando o peixe a força. Mas torna a fechar-se pela pressão da corrente da água; Uma terceira armadilha é o cajá, isto é, um jirau construído junto às pequenas quedas de água, de tal modo que apare os peixes que tentam galgar a cachoeira ou segure os que são trazidos por ela.

Índio do rio Uaupés, Décio Villares


Em inúmeras sociedades indígenas, atualmente, é muito comum o uso de anzóis de metal introduzidos pelos civilizados. Em algumas, tais como as do Uaupés, o peixe pode ser conservado moqueado, isto é, assado e defumado em fogo lento sobre uma grelha de madeira posta cerca de um metro do fogo. Fazem também a farinha de peixe, pisando o peixe moqueado no pilão, levando-o, em seguida, ao forno, onde é esfarinhado com a mão, até ficar completamente enxuto. O peixe moqueado ou em forma de farinha conserva-se durante muito tempo. Os antigos tupinambás do litoral brasileiro faziam tanto o moquém como a farinha de peixe.


MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 97-9.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A caça nas sociedades indígenas do Brasil

Em todas as sociedades indígenas, a caça é uma atividade masculina. Pode ser realizada individual ou coletivamente. Naturalmente, nem todos os grupos indígenas dão a mesma importância à caça. Os índios do alto Xingu, por exemplo, dedicam-se muito mais à pesca. Eles não fazem caçadas coletivas; praticam a caça de aves e, ocasionalmente, de pequenos mamíferos; não se nota, no alto Xingu, o consumo de caça de pêlo (veado, porco, capivara etc.) e um grande número de tabus desestimulam o consumo de carne [...].

Outros grupos, como os timbiras, dão uma importância muito grande à carne de caça. Entre eles, nos meados do século XX, além das caçadas individuais, eram freqüentes as caçadas coletivas, não raro destinadas a obter carne a ser consumida nos ritos. Hoje provavelmente elas já não são tão produtivas, dado o aumento da população não indígena na região em que vivem. Já para os índios maués, a caça é sempre uma atividade individual.

Família de botocudos em marcha, Jean-Baptiste Debret


As técnicas utilizadas na caçada variam de sociedade para sociedade. Elas variam também segundo a espécie de animal procurada. Os xoclengues de Santa Catarina, por exemplo, por volta de 1930, caçavam a anta perseguindo-a em suas carreiras, com ou sem ajuda de cachorros; o caititu, caçavam-no esperando-o sair da toca ou obrigando-o a sair dela com ajuda de fogo. Os teneteharas costumavam construir abrigos no chão ou no alto das árvores, nos locais freqüentados por cada espécie de animal, onde o caçador os espera, sobretudo à noite; na estação chuvosa, o terreno se alaga, e a caça se refugia nas partes mais altas, onde é fácil capturá-la. [...] Uma das técnicas dos índios xavantes é atear fogo em círculo num local do cerrado, deixando uma abertura por onde os animais fogem espavoridos, sendo aí abatidos.

As atividades de caça obrigam os índios a conhecerem os hábitos dos animais para melhor poder procurá-los ou esperá-los. Desse modo, dos representantes de cada espécie, sabem se andam de dia ou de noite, de que frutas gostam, onde costumam se esconder. Também dispõem de uma série de recursos mágicos para caçar: os índios craôs, por exemplo, usam determinados vegetais para esfregar no corpo ou para fazer infusões que ingerem, segundo a espécie de animal que desejam caçar; os índios teneteharas tomam muito cuidado para não ofenderem seres sobrenaturais, a fim de não ficarem “panema”, isto é, sem sorte na caça. Alguns grupos indígenas acreditam que os sonhos possam predizer o sucesso das caçadas, como os maués e os craôs.

Tipos diferentes de flechas de indígenas brasileiros, Jean-Baptiste Debret


Após o contato com os civilizados, as técnicas indígenas de caça se alteram devido à introdução de itens importantes, como as armas de fogo, a lanterna de pilha e o cão. As armas de fogo são logo adotadas, por permitirem alcançar alvos a maior distância que as flechas lançadas pelo arco. Mas, em certas situações, uma arma indígena como a zarabatana, que lança projetis com ponta embebida em curare, de uso entre os matis do sudoeste do Amazonas, mostra-se mais adequada que a espingarda: por ser silenciosa, permite vários tiros às aves ou macacos nas árvores, sem espantá-los. A lanterna abriu a possibilidade da caçada de espera noturna. Os cães se tornaram auxiliares tão preciosos que chegam a ter até mito de origem entre os marubos, vizinhos dos matis, mito este que não alude aos brancos, talvez por não terem sido recebidos destes diretamente, mas chegado por intermédio de uma série de outras sociedades indígenas. Malgrado proporcionarem mais eficiência na atividade de caça, essas contribuições dos civilizados trazem também a desvantagem de tornar os índios dependentes de artigos que eles próprios não podem fabricar: balas, cartuchos, pólvora, chumbo, pilhas. Além disso, os vizinhos sertanejos passaram a ser concorrentes dos índios na procura da caça, não somente para sua alimentação, mas também para a obtenção de produtos comerciais, tais como couros de diversas espécies e penas de ema.

MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p. 95-7.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

As consequências da grande guerra 2: os efeitos sobre os espíritos

Soldados mortos, László Mednyánszky

A guerra, seus problemas e suas conseqüências também produziram efeitos sobre o espírito público, conseqüências de ordem intelectual, moral, psicológica e ideológica. Talvez sejam até as mais profundas e duradouras; algumas ainda se fazem sentir na véspera do segundo conflito mundial. [...]

A guerra abalou o respeito aos valores tradicionais. A Europa liberal, a Europa democrática, repousava num pequeno número de postulados fundamentais, admitidos universalmente, que foram, de repente, reexaminados. O espetáculo da matança prolongada e generalizada projeta uma sombra sobre o otimismo do século XIX, sobre a confiança das gerações precedentes na próxima instauração de uma sociedade melhor, mais livre e mais justa.

Em segundo lugar, os sacrifícios suportados, a tensão imposta e o esforço de guerra provocam uma reação de compensação, o desejo de recuperar os anos perdidos, de tomar uma desforra contra tantos sofrimentos. É o apetite de gozo que os escritores concordam em descrever como característico da década de 1920. Não nos deixemos, contudo, iludir por testemunhos parciais e não generalizemos indevidamente. Tendemos amiúde a extrapolar a partir de situações muito localizadas: o mesmo erro nos apresenta toda a França do Diretório entregue aos prazeres das “merveilleuses” e dos “muscadins”, ou a Europa depois de 1945 adotando o existencialismo de Saint-Germain-des-Prés. A descrição não se aplica às aldeias nem aos burgos. Em compensação, o apetite de gozo, a busca do prazer e do luxo, que se estadeiam nas capitais, contribuíram para a desmoralização do país.

A provação da guerra desenvolve efeitos de sentidos contrários. É o que se constata em dois exemplos: a religião e o patriotismo.

No tocante à religião, a provação despertou com freqüência o sentimento religioso ou a inquietação metafísica sobre o sentido do destino humano; a guerra provocou inúmeros retornos à prática, foi causa de uma onda de conversões. Ao mesmo tempo, porém, pelo escândalo que representa, pelo desmedido permanente da fraternidade do Evangelho e por se haverem deixado as Igrejas, em todos os países, envolver no esforço da guerra, esta divorciou da fé um sem-número de espíritos.

No tocante à ideia nacional, idêntica dualidade de conseqüências psicológicas e ideológicas. De um lado, a guerra e seus malefícios estimularam o pacifismo: parte da opinião pública consagra-lhe um horror instintivo, insuperável; a literatura do após-guerra é pacifista, numa reação contra a publicidade mentirosa e a propaganda bélica, e descreve os horrores, as atrocidades ou a monotonia das trincheiras. A guerra estimulou o internacionalismo: para impedir-lhe o retorno, todos estão prontos para todas as experiências, para todas as soluções. O exemplo dado pelos bolchevistas e o derrotismo revolucionário comunicam ao antimilitarismo, ao pacifismo e ao internacionalismo tradicional uma intensidade sem precedentes. A aspiração à paz, talvez a aspiração fundamental da Europa do após-guerra, explica as negociações para o desarmamento, a confiança nas instituições internacionais, a simpatia pela Sociedade das Nações, o Pacto Briand-Kellog, que, em 1928, colocará a guerra fora da lei, e o que o nome de Briand simbolizará para a opinião pública francesa.

Por outro lado, todavia, as lembranças de guerra, a decepção gerada pela derrota ou, entre os vencedores, por resultados considerados inferiores aos sacrifícios aceitos, exasperam o amor próprio e o orgulho nacional. É um dos componentes do espírito do “ex-combatente”: dele procederão os regimes totalitários. Uma das razões de queixa articuladas contra a democracia pelo fascismo na Itália, pelo nacionalismo na Alemanha e pelos regimes congêneres é que ela sacrificou a honra e o interesse nacionais, permitiu que se dilapidassem as conquistas do esforço de guerra ou até, no caso da Alemanha, apunhalou o exército pelas costas.

Em toda a parte, a guerra engendra reações contraditórias: aspiração à ultrapassagem dos particularismos nacionais e exasperação desses mesmos particularismos. Em 1920, nos Estados Unidos, o redespertar do isolacionismo leva os republicanos à Casa Branca. O Congresso põe em vigor uma legislação neutralista e adota leis que restringem a imigração.

RÉMOND, René. O Século XX. De 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 42-43. (Introdução à história de nosso tempo 3).

domingo, 1 de janeiro de 2017

As consequências da grande guerra 1: as subversões sociais

Campo de mortos, Albin Egger-Lienz


"Nós, as civilizações, sabemos agora que somos mortais...”
(Valery)

A guerra teve sobre a ordem social e as relações entre grupos sociais conseqüências incalculáveis, que não se terão exaurido em 1939.

Em primeiro lugar, a guerra criou um tipo social novo: o do ex-combatente. Dezenas de milhões de homens voltam aos lares, marcados por quatro anos de guerra; e, entre eles, estabelece-se uma solidariedade de sentimentos e interesses. Há, doravante, uma mentalidade de “ex-combatente”, feita de altivez, fidelidade à lembrança dos mortos, apego à unidade (unidos como no front) e hostilidade instintiva às divisões partidárias, aos políticos e às instituições parlamentares. É também um poderoso grupo de pressão e até mesmo, em certos casos, uma força política, quando o mal-entendido entre o regime e os antigos combatentes atinge certo grau de gravidade.

Do social passamos então ao político. Na França, várias ligas recrutam partidários entre os ex-combatentes: é o caso, por exemplo, das Cruzes-de-Fogo (Croix-de-feu). Na Alemanha, o Capacete de Aço, os ex-combatentes das tropas irregulares, que depois de 1919 prosseguiram numa luta sem esperanças contra os poloneses ou nos países bálticos, e o partido nacional-socialista jogam com a solidariedade dos ex-combatentes. Na Itália, o fascismo também buscará inúmeros adeptos entre os antigos combatentes.

Ao lado dessa conseqüência direta, a guerra e a inflação conjugadas precipitaram evoluções, acentuaram desigualdades ou disparidades na escala social, beneficiaram grupos, prejudicaram outros, acusaram discordâncias e envenenaram relações.

A guerra enriqueceu produtores e intermediários, fabricantes de guerra, comerciantes. É o fenômeno dos novos-ricos, que ocupa um lugar tão proeminente na imprensa e na literatura do após-guerra; toda uma fauna de aproveitadores, muitas vezes improvisados fornecedores de guerra, embora nada os tivesse preparado para fabricar granadas ou sapatões para o exército, e que são os descendentes dos municionários de antanho. Não tem melhor reputação do que seus antepassados: toda a gente embirrava com eles por haverem ganho dinheiro em detrimento dos que se deixavam matar. O sucesso material dessa categoria de industriais de guerra, mercadores que especularam e traficaram, obriga ao reexame das crenças tradicionais na superioridade do trabalho, na virtude da poupança, e abala a estabilidade dos valores que constituíam o decálogo da moral liberal e burguesa do século XIX.

No outro campo, no campo dos empobrecidos, das vítimas da guerra e da inflação, figuram todos os que, tendo rendas fixas, não as puderam reavaliar e sofreram o contragolpe da depreciação monetária. É o caso dos rendeiros, tão numerosos na França, na Bélgica e na Inglaterra no século XIX: muitas pessoas viviam apenas do que lhes rendiam suas parcas propriedades. A mobilização da poupança pelo mecanismo da obrigação bolsista e dos fundos do Estado multiplicara os rendeiros. Atingidos pelos efeitos da depreciação monetária, são vítimas também da bancarrota dos Estados em que tinham confiado e aos quais haviam emprestado suas economias. A Revolução Russa engole os bilhões que a França entregou à Rússia desde 1890 e que eram a contrapartida da aliança militar franco-russa. A caixa otomana já não está em condições de garantir os pagamentos. Na Hungria, na Bulgária, o desmembramento dos Estados e a queda dos regimes arruínam milhões de pequenos poupadores. Calcula-se que há na França cerca de dois milhões de portadores de fundos estrangeiros. Os que, no princípio da guerra, num rasgo de patriotismo, também haviam levado seu ouro ao Estado para garantir os empréstimos e tinham recebido, em troca, simples pedaços de papel, estão agora sem recursos.

Nos países vencidos, a situação dessas categorias sociais é ainda agravada pela revolução política: o caso extremo é o da Rússia, em que elas se acham juridicamente despojadas do seu emprego e das suas rendas. Grande número delas vê-se reduzido a emigrar: o fenômeno da emigração social e política assume certa amplitude. Os russos brancos, às dezenas de milhares, vêm fixar-se nos países da Europa ocidental, que acolhe uma população flutuante de apátridas, desapossados de sua nacionalidade, que não têm nem solicitam a do país que os acolheu, e para os quais é preciso imaginar uma fórmula jurídica nova: a do passaporte Nansen, que lhes dá um estado civil.

Tampouco se poupou o mundo rural: em conjunto, a agricultura foi uma das vítimas da guerra e da inflação. Ao contrário do que acontecerá na Segunda Guerra Mundial, caracterizada pela penúria e pelo mercado negro, os preços dos produtos agrícolas não seguem o ritmo da inflação; os preços dos cereais e dos outros produtos da terra permanecem bem aquém dos preços dos produtos industriais. A guerra acelerou o êxodo rural. As necessidades da indústria de guerra, das manufaturas de armamentos, criaram uma convocação de mão-de-obra; toda uma população desarraigada, arrancada ao seu gênero de vida habitual, à sua aldeia, procura trabalho e alojamento.

A Europa do após-guerra conhece uma grave crise de habitação, mormente nos países em que a derrota acentua o fenômeno; o caso mais típico é o da Áustria, cuja capital, Viena, abriga, sozinha, uma quarta parte da população total do país.

A guerra dissociou as estruturas tradicionais. Acarretou a extensão do trabalho das mulheres, ou melhor, já que a proporção não mudou tanto, a modificação dos setores: a mão-de-obra feminina, até então empregada nas tarefas domésticas, começa a trabalhar nas fábricas.

Todas essas subversões explicam que o fim da guerra tenha dado novo impulso a uma intensa pressão de agitação social. Os anos de 1919 a 1921, ou 1922, conforme os países, são marcados, até entre os vencedores, por uma efervescência de caráter revolucionário. O descontentamento social é atiçado pelo exemplo da revolução russa, revezada, por sua vez, pelas revoluções que afetam a Europa Central, a Hungria, a investida espartacista na Alemanha, as jornadas de insurreição de Berlim e de Munique. A onda de greves que avassala a Europa não poupa país algum; a França vive em 1920 uma situação de greve quase geral, que paralisa os transportes e os grandes setores industriais; a Itália conhece, além disso, uma agitação agrária.

Mercê dessa agitação, a classe operária obtém, de início, algumas conquistas sociais, como o dia de oito horas na França (1919). Mas o movimento, que provoca a profunda inquietação dos ricos e das classes médias, temerosos da bolchevização da Europa, não tarda a abortar. Em toda a parte se teme que os países venham a cair nas mãos do comunismo. Por isso mesmo, a agitação acaba deflagrando um fenômeno de reação contrária.


RÉMOND, René. O Século XX. De 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 37-40. (Introdução à história de nosso tempo 3).