Barricadas na rua Soufflot em 24 de junho de 1848, Horace
Vernet
"[...] O que vamos contar, podemos dizer: vimo-lo. Mudaremos alguns nomes porque a História conta e não denuncia; mas pintaremos coisas verdadeiras.
[...] Paris, na primavera de 1832 [...] estava havia muito preparada para uma comoção. Como já temos dito, a grande cidade assemelha-se a uma peça de artilharia; quando está carregada, basta que de qualquer parte caia uma faísca para que ela dispare. Em julho de 1832, a faísca foi a morte do general Lamarque.
A sua morte, já esperada, era temida pelo povo como uma perda e pelo governo como uma ocasião propícia. Aquela morte foi um luto. O luto, como tudo o que é amargo, pode tornar-se revolta. Foi o que sucedeu.
[...] A 5 de junho, pois, dia entremeado de chuva e de sol, atravessou Paris o cortejo fúnebre do general Lamarque, com a pompa militar oficial, um tanto aumentada por precaução. Dois batalhões [...], dez mil homens da guarda nacional e as suas baterias de artilharia escoltavam o funeral. O coche ia puxado por moços. Logo atrás, iam os oficiais [...]. Depois ia a multidão inumerável, agitada, desconhecida [...], as escolas de direito e de medicina, os refugiados de todas as nações [...], rapazes agitando ramos verdes, canteiros e carpinteiros que não tinham trabalho, impressores [...] soltando gritos, quase todos agitando paus e alguns brandindo espadas. [...] Nas janelas, em cima dos telhados, era prodigiosa a quantidade de cabeças de homens, de mulheres e de crianças, com a aflição nos olhos. Era uma multidão assustada, vendo passar uma multidão armada.
O governo pela sua parte observava tudo. [...] O poder, inquieto, tinha suspensos sobre a multidão ameaçadora vinte e quatro mil soldados na cidade e trinta mil nos arredores.
[...] Os dragões avançavam passo a passo, silenciosos com as pistolas nos coldres, as espadas nas bainhas, as carabinas nos arções e com ar de sombria expectativa. A duzentos passos da ponte pequena fizeram alto. [...] Neste momento tocavam-se os dragões e a multidão. As mulheres fugiam cheias de terror.
O que ocorreria naquele minuto fatal? Ninguém poderia dizê-lo. Era o momento tenebroso do encontro de duas nuvens. [...] Foram inesperadamente disparados três tiros. [...] E de repente viu-se um esquadrão de dragões desembocar, a galope e de espadas em punho, varrendo o que achava no caminho.
Então acabaram-se as hesitações, a tempestade desencadeia-se, chovem as pedras, sucedem-se as descargas de fuzilaria, muita gente precipita-se para a base da encosta [...]. Os carabineiros avançam, os dragões acutilam, a multidão dispersa-se em todas as direções, o rumor de guerra repercute nos quatro ângulos de Paris. Todos gritam: Às armas! Correm, caem, fogem, resistem. [...]
Não há coisa alguma mais extraordinária do que o primeiro movimento de uma revolta. Tudo explode ao mesmo tempo e em toda a parte. Era coisa prevista? Era. Estava preparada? Não. De onde saiu aquilo? Das ruas. [...]
Não tinha ainda passado um quarto de hora e repetia-se ao mesmo tempo, em vinte pontos de Paris. [...] Nas margens direita e esquerda, nos cais, nas ruas e avenidas viam-se homens, afogueados, operários, estudantes, lendo proclamações e gritando às armas, quebrando lampiões, desaparelhando os veículos, descalçando as ruas, arrombando as portas das casas, arrancando as árvores, entrando nas adegas e rolando para fora as pipas, amontoando as pedras da calçada, lajes, tábuas e fazendo barricadas."
HUGO, Victor (1802-1885). Os miseráveis. 1862. São Paulo: Edigraf, 1957. 4ª parte, livro 10º , cap. II-IV. p. 673-8.
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