"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Família brasileira no Império: a roda dos emjeitados

Recado difícil, Almeida Júnior

Expostos e enjeitados eram termos que se referiam às crianças abandonadas. Era um problema que afligia principalmente as mulheres, levadas pelas circunstâncias a abandonarem filhos recém-nascidos, tanto legítimos como ilegítimos.

Embora [...] a miséria não fosse o único motivo do abandono de crianças, o fenômeno atingia principalmente as camadas sociais populares.

Ao longo do século XVIII, houve um significativo aumento da população urbana no Brasil. Isso agravou o problema do abandono de crianças.

No campo, o abandono quase não acontecia. Se uma família ou mãe solteira, por qualquer razão, não se dispusesse a criar o filho, ele era acolhido por outra família. Por isso eram comuns os chamados "filhos de criação", que podiam ou não ser colocados em pé de igualdade com os filhos legítimos.

Os trabalhadores do campo pobres e que não possuíam escravos dependiam da mão-de-obra dos filhos. As crianças ajudavam os pais nas tarefas diárias: preparação de alimentos, trabalho na roça, transporte de água, alimentação e demais cuidados com os animais domésticos, lavagem de roupa, costura etc. Para os pequenos proprietários rurais, abandonar um recém-nascido era se privar, a curto prazo, de uma ajuda no trabalho.

Assim, o problema do abandono de crianças era urbano, manifestando-se principalmente nas cidades portuárias.

Nas cidades o trabalho infantil tinha pouco valor. O trabalho artesanal urbano exigia especialização profissional, e as atividades portuárias, força física.

[...] no meio rural dos pobres, que viviam de uma economia de subsistência, baseada na pequena lavoura, não havia a situação de miséria absoluta que levava ao abandono dos filhos, como ocorria nas cidades.

Tanto no século XVIII, com o Brasil ainda na condição de colônia, como na época imperial, depois da independência política, a cidade era um espaço de grandes desequilíbrios sociais. A falta de um mercado de trabalho para os pobres livres, agravada ainda pela depreciação do trabalho manual em uma sociedade escravista, tornava precária a vida das pessoas pertencentes às camadas populares. A cidade atraía os pobres do campo, mas não oferecia a eles condições estáveis de existência.

Por essa razão, a partir do século XVIII, o abandono de crianças se tornou endêmico. Elas eram deixadas nas calçadas, praias, terrenos baldios, portas de igrejas e residências.

O crescente abandono e a mortandade de crianças abalava a consciência católica. Causava indignação o número de inocentes que morriam sem ser batizados. Segundo a tradição religiosa, sem batismo eles não iam para o reino dos céus. Nessa tradição, a morte era uma fatalidade que se devia aceitar com resignação, mas não sem o sacramento do batismo.

As elites religiosas e civis se mobilizaram para resolver o problema. A criação da Casa dos Expostos, ou Casa da Roda, foi uma das soluções encontradas. Essa instituição surgiu no século XVIII.


Abandono de criança na roda dos expostos.
Ilustração do século XIX

Uma Carta Régia de 1693 determinava que as crianças abandonadas fossem criadas às custas dos cofres públicos. Mas essa determinação permaneceu letra morta até 1738, quando se fundou - não com dinheiro público, mas particular - um estabelecimento no Rio de Janeiro, ligado à Santa Casa de Misericórdia. O modelo acabou sendo copiado em outras cidades brasileiras.

A Casa dos Expostos era dotada de um equipamento composto por uma roda colocada na parede na posição horizontal. Metade da roda ficava do lado de fora do prédio e a outra metade do lado de dentro. Desse modo, era possível colocar a criança do lado de fora e, girando a roda, passá-la para o lado de dentro. Esse sistema permitia manter o anonimato, escondendo a identidade da pessoa que abandonava o recém-nascido. A roda dos enjeitados, ou roda dos expostos, funcionava dia e noite.

A Casa dos Expostos caracterizava bem o tipo de cuidado que as elites tinham com as populações pobres. Era um cuidado orientado pelo espírito da caridade e da solidariedade cristãs.

Era esse espírito, e também muito provavelmente o remorso cristão, que levava as pessoas a fazerem doações, muitas através de testamentos. Isso permitia que as Casas dos Enjeitados funcionassem, visto que o dinheiro destinado pelo Estado para essa finalidade era pouco e irregular.

A existência dessas casas de recolhimento de crianças tranquilizava as consciências cristãs, mas não garantia a sobrevivência delas. A mortandade das crianças nessas casas era altíssima.

Outra solução tentada para resolver o problema da criança abandonada foi o incentivo do Estado às famílias criadeiras. A família recebia uma ajuda do Estado para criar a criança abandonada. O valor pago sempre foi muito baixo, mal dando para a compra de um pouco de farinha de mandioca e de carne-seca.

Puxão de orelha, Almeida Júnior

Além de receber a ajuda do Estado, a família que tomava a seu encargo a criação de uma criança abandonada dava provas de caridade cristã. A mortandade dessas crianças entregues às famílias criadoras também era muito alta.

As Casas dos Enjeitados não eram uma solução apenas para as camadas populares que tinham dificuldades em criar os filhos. Elas serviam também para encobrir desvios morais e preservar as famílias das elites. Era um lugar para filhos ilegítimos. Livrando-se do filho indesejado, a mulher, solteira ou casada, se livrava também da condenação moral aos amores proibidos.

Consciente ou inconscientemente, as autoridades reconheciam que a roda dos enjeitados contribuía para a conservação da moralidade das elites. Tanto que essas autoridades não se preocupavam em esclarecer a origem da criança. Portanto, a roda também tinha por finalidade evitar situações embaraçosas para as "boas famílias". Salvavam-se a criança e a moral dessas famílias.

Em relação às camadas pobres e miseráveis da população, a roda significava a solução de um problema público. No que se refere à elite, era a solução para problemas privados.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 253-6.

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