"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 19 de setembro de 2015

O que aprendemos com os povos indígenas

Guerreiro cheyenne com cocar, escudo e lança, ca. 1915-1937. Monroe Tsatoke

Tomate, batata, feijão, milho, mandioca e cacau são algumas das dezenas de plantas descobertas e cultivadas pelos povos nativos da América, há milhares de anos. Hoje, a dieta básica de milhões de pessoas de todo o mundo contém espécies vegetais originadas do continente americano. Mesmo o chiclete, a goma de mascar popularizada pelos norte-americanos, foi tomado dos maias, inclusive seu nome; ainda hoje sua matéria-prima é extraída das florestas tropicais da Meso-América, onde estão os sapotis, a árvore de onde se extrai o "chicle". É igualmente grande o número de plantas empregadas na indústria que os antigos povos da América já utilizavam: borracha, palmeira, carnaúba, amendoim, castanha-do-pará, girassol, tabaco, algodão, juta e sisal são alguns exemplos. O conhecimento acumulado pelos ameríndios ao longo de muitas gerações está merecendo, atualmente, a atenção dos cientistas.


O presente, 1922. Ernest L. Blumenschein

Os grupos indígenas desenvolveram uma ciência própria. Alguns, por exemplo, classificam o solo de acordo com as plantas e a matéria inorgânica (areia e argila, por exemplo) que a compõem. Dão nomes específicos a cada tipo de solo e discriminam as plantas ideais para cultivar em cada um. Na mata virgem, identificam centenas de espécies vegetais, muitas das quais desconhecidas pelos botânicos. Além das alimentícias, os indígenas reconhecem plantas medicinais (curativas, anestésicas, antissépticas etc.), inseticidas, tóxicas, corantes, fertilizantes, lubrificantes, além daquelas usadas para cobrir casa, trançar cestos e esteiras, fabricar ferramentas e armas, conter encostas e barrancos.


Mestre de cerimônias, 1925. Gerald Cassidy

Alguns medicamentos da medicina ocidental foram feitos a partir de plantas há tempos utilizadas pelos indígenas, como o ipecacuanha (tratamento de infecções gastrintestinais), a capaíba (contra afecções das vias urinárias), a quinina (contra a malária), a coca (como anestésico local), o curare (em cirurgias cardíacas) e o peiote (em tratamentos psiquiátricos) - plantas perigosas que, entre os ameríndios, só eram manipuladas pelos curandeiros ou sacerdotes, pois o erro na dosagem podia matar o doente.

A indústria têxtil usa espécies de algodão há milênios cultivadas pelos indígenas da América e consideradas as melhores do mundo.

[...] astecas e incas, para aproveitar os espaços e ampliar as áreas de cultivo [criaram] as chinampas, os canais de irrigação e o uso de fertilizantes naturais. Muitos pesquisadores já demonstraram que essas técnicas são mais simples, baratas e tão produtivas quanto aquelas que utilizam as modernas e caras máquinas e fertilizantes químicos de hoje.


O cacique do pueblo, 1916. Walter Ufer

Outras culturas nativas americanas também desenvolveram eficientes técnicas agrícolas. Ao contrário do que muitos pensam, os indígenas interferiram na natureza, criando artificialmente terrenos propícios à lavoura. No Brasil, por exemplo, há grupos indígenas que espalham sobre a área de cultivo uma mistura de palha com terra de cupinzeiros e formigueiros esmagados. Colocam cupins e formigas vivas na terra recém-cultivada para que os insetos lutem entre si e não ataquem os brotos. Transplantam espécies vegetais para locais onde elas não são comuns.

Na Amazônia, onde o solo se esgota rapidamente e a camada de húmus é muito fina, os indígenas desenvolveram a agricultura itinerante. Uma família derruba apenas a área correspondente à sua capacidade de trabalho (em geral um hectare). A mata derrubada é deixada  para secar por dois ou três meses. Procede-se, então, à primeira queima, que é, depois, seguida de nova queimada com os galhos e folhagens que restaram.


Nas Colinas de Pé, 1896. John Hauser

Os indígenas que utilizam a técnica da coivara sabem quando é chegada a hora da queima. Observam a direção do vento e se orientam por alguns sinais da natureza. Os kuikuro, por exemplo, que vivem no Alto Xingu, só procedem à queimada quando a constelação do Pato aparece do lado leste do céu, antes do raiar do sol, e quando as tracajás desovam nas praias do rio Culuene. Não se sabe qual é a relação entre esses fenômenos e o sucesso da queima, mas sabe-se que os kuikuro nunca provocaram um incêndio na floresta.

A cinza obtida fertiliza imediatamente o solo e o carvão é enterrado para servir de adubo extra que a planta absorverá durante seu crescimento. Inicia-se, então, o cultivo de diversas espécies com alturas diferentes - o que reduz o impacto dos ventos e das fortes chuvas e evita a propagação de pragas. Pela mesma razão, o mato que cresce entre as plantas cultivadas não é arrancado. depois que a terra se esgota, ela descansa por dois ou três anos. Ali crescerão brotos e folhagens que alimentarão pacas, queixadas e caititus, transformando-se em uma área de caça para a tribo.


Dança do búfalo, 1860. Karl Ferdinand Wimar

As técnicas agrícolas indígenas, do tipo extensivo e policultor, têm a vantagem de manter a fertilidade do solo e permitir a rápida recuperação da floresta. Já as fazendas de gado da Amazônia mostram um resultado inverso. Uma única fazenda desmata cerca de 10 mil hectares num ano para formação de pastagens. O desmatamento é total, e a superfície do solo fica exposta ao calor do sol e às pancadas de chuva, provocando sérias alterações no meio ambiente. Além disso, cada hectare produz somente 30 kg de carne bovina ao ano. Isso significa que um boi come o equivalente ao que alimenta uma família indígena no mesmo período, com a agravante de destruir o solo.

RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 128-130.

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