Moema, Victor Meirelles
Já no primeiro documento escrito em terras brasileiras, o europeu não escondeu o espanto e o maravilhamento. Em sua carta ao rei, o escrivão Pero Vaz de Caminha registrou aqueles “corpos formosos” e moças “tão bem feitas [...] que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições”, lhes faria vergonha “por não terem a sua como a dela”.
Mas um português daqueles tempos não poderia se limitar ao
elogio da nudez. Pelo menos não numa carta do rei. Por isso, Caminha reagiu à
tentação das índias tão bem feitas condenando a “falta de civilização” daqueles
povos, apesar da “inocência” em mostrar as suas “vergonhas”. “O melhor fruto”
que havia na nova terra, ele concluía, era “salvar esta gente”. Estava
anunciada uma das funções da colonização: a imposição da fé católica. Mas este
intuito oficial esbarraria em hábitos bem mais libertários, à medida que os
colonos portugueses passaram a se relacionar com as índias.
Os jesuítas não demoraram a desconstruir a impressão inicial
de Caminha, segundo a qual os indígenas seriam “folhas em branco” – prontos a
receber e a aceitar o que os portugueses quisessem imprimir neles. Um dos
empecilhos ao trabalho de catequização eram os costumes poligâmicos daquelas
populações que muitas vezes incluíam casamentos entre chefes e as filhas de
suas irmãs como suas principais esposas. Essas uniões simbolizavam a manutenção
do poder de determinados clãs indígenas dentro das tribos, e eram tão
importantes que os jesuítas pediram à Igreja Católica que permitisse a união
entre tios e sobrinhos em alguns casos. Era uma forma de manter aqueles homens
com apenas uma mulher (a mais importante), abrindo caminho para que aceitassem
a monogamia – este sim, um princípio inegociável para os católicos.
Nos primeiros tempos, os próprios colonos utilizaram o
casamento como meio de fortalecer as relações de poder, unindo-se às filhas dos
homens mais respeitáveis das tribos. Exemplo desses pioneiros foi o lendário
João Ramalho, um dos poucos portugueses que sobreviveram aos 30 primeiros anos
de colonização. Ele havia deixado esposa em Portugal, mas não titubeou em
casar-se com a filha do cacique Tibiriçá. Teve também outras mulheres e
constitui uma grande prole, segundo relatou o Padre Manuel da Nóbrega
(1517-1570). Seguia os costumes indígenas, andando nu e mantendo relações
sexuais com várias índias, o que era compreensível dentro da dinâmica da
manutenção do poder das tribos. Outros colonos viviam comportamentos
semelhantes. Embora ilícitas, as relações esporádicas eram alternativas
atraentes para a população colonial em geral, principalmente entre casais
mistos (escravos e livres), porque havia menos interferência dos senhores neste
tipo de relacionamento e, portanto, mais liberdade para os cativos fugirem das
rédeas do poder senhorial.
Pode-se imaginar a desaprovação da Igreja a esse estado de
coisas. No século XVI, a Europa impunha-se uma vida regrada sob os poderes
religiosos e laico, na qual os desejos deveriam ser refreados pela manutenção
de regras de civilidade. Em relação aos hábitos das populações da colônia,
valia a máxima de São Tomás de Aquino: era preciso ordenar “paixões e coitos” a
fim de manter um equilíbrio indispensável para a conservação da espécie humana.
Na vila de São Paulo, os jesuítas não deixaram de observar –
e de se escandalizar – com as relações temporárias e poligâmicas. Além do
esforço em batizar e catequizar os indígenas, eles se dedicaram a converter as
uniões informais ao matrimônio católico, nem sempre com sucesso. Mesmo sob a
vigilância da Igreja Católica e da Inquisição, e sujeitos a sofrerem punições
por seu comportamento, João Ramalho e muitos outros continuaram a viver com as
índias. Cumpriam o importante papel de povoar um território ainda incipiente em
nome da Coroa.
Curioso é que muitos dos primeiros colonos eram degredados
por força da Inquisição: haviam sido condenados e enviados à nova terra para
purificar seus pecados. Pior do que o degredo para o Brasil, só mesmo a pena de
morte. Era um programa de salvação das almas, mas com o risco de que os
condenados, em vez de se redimirem, acabassem difundindo suas más práticas e
desvios no Novo Mundo. Muitos degredados caíram novamente nas malhas da
Inquisição, quando houve a Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil, no
final do século XVI (1591-1595). Entre eles, portugueses que se haviam
amancebado com índias.
A violência da catequese jesuíta fazia parte da cartilha do
colonialismo moderno. Os índios eram vistos como inferiores, demonizados,
forçados a abandonar seus costumes. Seu mundo era desprezado, vigiado e punido
pela contrarreforma europeia. “O pecado estava em todas as gentes e lugares”,
em “ameríndios luxuriosos, colonos insaciáveis [...] senhores desregrados”,
escreve Ronaldo Vainfas em Trópicos do pecado (2010). Os
pecados relativos à sexualidade estavam presentes entre os mais perseguidos nas
confissões, com a Inquisição buscando relatos minuciosos sobre a realização do
“ato carnal” em suas mais variadas formas. Estavam em jogo relações de poder,
com a Igreja Católica demonstrando sua supremacia e sua influência junto aos
poderes do Estado. Contenção, ameaça e castigo eram as bases dessa política –
um lógica bem distante do que viviam, na prática, colonos e escravos,
portugueses e índios.
A legislação régia reforçava a necessidade de punição para
os crimes sexuais, no sentido religioso do termo. O livro V das Ordenações
Filipinas (1604) que incluía legislações de períodos anteriores, previa
punições para os que cometessem “pecado de sodomia” (sexo anal), o “cristão que
dormisse com infiel” (judeus, muçulmanos ou outros “não católicos”), aqueles,
incluindo padres, que entrassem “em mosteiro” e tirassem “freira para dormir
com ela”, e os que dormissem com suas parentas, com mulheres casadas, virgens,
viúvas honestas, além dos bígamos, entre outros casos. As punições variavam:
confisco de bens ou sua perda total, tortura até a morte, prisão, degredo ou
queima, até os culpados serem “feitos por fogo em pó”. Mas tudo dependia da
condição social dos envolvidos.
O sexo com escravas índias ou negras e com prostitutas era
até permitido, ou tolerado, em função da falta de mulheres brancas nas terras
recém-conquistadas. As poucas que chegaram até o final do século XVI também
ficaram sujeitas à Inquisição, e as confissões sobre os seus “ajuntamentos
torpes” indicam pedidos de perdão e misericórdia por terem sido, na maioria dos
casos, “falsamente” enganadas por pessoas que, na verdade, lhes queriam mal. A
Igreja utilizava as confissões também para conseguir delações. Em 1591, Paula
de Siqueira, casada, confessou suas culpas ao visitador da Inquisição Heitor
Furtado de Mendonça, afirmando que recebera “cartas de amores e requebros” de
outra mulher casada, tendo com ela “ajuntamento carnal [...] como se
propriamente [fossem] homem e mulher”. A mulher era Filipa de Souza, que lhe
contara, após beber muito vinho, ter “usado o dito pecado com muitas outras
moças [...] e também dentro de um mosteiro, onde ela estivera”. Mosteiros e
padres eram elementos comuns nas confissões.
Os padres responsáveis pelas paróquias do Império português
zelavam pela vigilância dos costumes, mas nem sempre conseguiam escapar dos
pecados que deviam combater. Foi o caso do vigário Frutuoso Álvares, de Matoim,
no Recôncavo Baiano, que cometera “tocamentos desonestos com algumas 40 pessoas
pouco mais ou menos”, o que escandalizou o visitador Heitor Furtado de Mendonça
(c. 1550?).
Fosse como fosse, na sociedade colonial, o sexo era uma
válvula de escape em resposta àquelas relações opressoras, ora para manter o
poder, ora para libertar-se dele.
Milena Fernandes Maranhão. Os caminhos da luxúria. In: Revista
de História da Biblioteca Nacional. Ano 8 / Nº 93 / Junho 2013. p. 18-20.
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