Bustos do Imperador Adriano e de Antínoo. Artistas desconhecidos.
Foto: SanGavinoEN
De acordo com a Historia Augusta, Adriano compôs
pouco antes de sua morte o seguinte poema:
Animula,
vagula, blandula
Hospes
comesque corporis
Quae
nunc abibis in loca
Pallidula,
rigida, nudula,
Nec, ut
soles, dabis iocos...
Amanhecia no Nilo, no Outono do ano
Esta trágica cena do suicídio de
Antínoo, o jovem amante do maduro imperador, manteve-se através dos séculos
como exemplo emblemático do amor homossexual romântico e infeliz. Em meados do
século XX, a escritora francesa Marguerite Yourcenar (lésbica) recupera a
complexa figura do governante bético e do seu amor pelo adolescente grego,
numas imaginárias, mas bem documentadas, Memórias
de Adriano (1951). O livro foi um verdadeiro êxito de vendas e, nas suas múltiplas
edições e traduções, o público tomou conhecimento da existência de um imperador
romano cujo jovem amante se suicidou por amor.
“Amor, o mais sábio dos deuses... Mas o amor não era responsável por
aquela negligência, por aquelas durezas, por aquela indiferença misturada com a
paixão como a areia com o ouro que o rio arrasta no seu curso, por aquela rude
cegueira de um homem demasiado feliz e que envelhece. Como era possível eu ter
sido tão densamente satisfeito? Antínoo estava morto. Longe de amar de mais
como Serviano certamente pretendia naquele momento em Roma, eu não o tinha
amado bastante para forçar aquela criança a viver”. (Marguerite Yourcenar, Memórias
de Adriano)
Públio Élio Adriano nasceu em Itálica,
cidade bética, perto da actual Sevilha, a 24 de Janeiro do ano 76 da nossa era.
Era patrício do futuro imperador Trajano, ainda parente do seu pai. Desde
criança que se afeiçoou à cultura e à arte helênicas e, por isso, os seus
companheiros de então apelidavam-no de o
Grego. Adriano ficou órfão aos dez anos e a sua tutoria ficou a cargo de um
amigo da família chamado Acílio Attiano, representando o parente mais próximo,
que era Marcos Úlpio Trajano. Pouco tempo depois, Trajano viajou para a Hispânia
como comandante das legiões romanas. A sua mulher, Plotina, afeiçoou-se ao
pequeno afilhado e levou-o com eles no seu regresso a Roma.
Imperador Adriano. Artista desconhecido. Ca. 127-128 d.C.
Na capital do Império, sob a
protecção de Trajano e de Plotina, Adriano seguiu integralmente as passadas que
eram esperadas de um jovem ambicioso e de boa família, cujo destino manifesto
era o Senado. Em 97, servia como tribuno militar na Moésia, junto ao Danúbio,
quando recebeu ordem para se dirigir à Gália para informar Trajano que o
imperador Nerva o tinha adoptado como afilhado. Essa adopção, que na prática
equivalia a designá-lo como sucessor, correspondia às manipulações palacianas
do influente Lúcio Licínio Sura, amigo íntimo e provável amante de Plotina,
que, como ela, sentia um enorme afecto por Adriano. Foi ele que o escolheu para
levar a boa nova a Trajano, contra a opinião de Júlio Serviano, intrigante
cunhado do futuro imperador. Nerva morreu no ano seguinte e Sura teve de fazer
uma nova pirueta política para se assegurar de que seria Trajano a ocupar o
trono. A nova imperatriz, que não devia ser muito ciumenta, encomendou-lhe então
o apoio da carreira de Adriano, tarefa que Lúcio Licínio cumpriu com
entusiasmo. Alguns historiadores acreditam que essa devoção correspondia a algo
mais do que uma amigável cumplicidade.
Durante os primeiros anos do
reinado de Trajano, a imperatriz e Sura continuaram a proteger Adriano das
invejosas maquinações de Serviano. O jovem bético ocupou postos importantes e,
com freqüência, muito próximos do imperador, como quando o acompanhou nas
vitoriosas campanhas da Dácia. No ano 100, Plotina arranjou para Adriano um
casamento de conveniência com uma das netas de Trajano, Víbia Sabina, que tinha
apenas treze anos. Adriano manteve o matrimônio em branco, dada a tenra idade
da noiva e a sua escassa atracção pelo sexo oposto. E o certo é que nunca
chegou a ter filhos dela e, pelo que se supõe, nem sequer tentou. A sua
carreira política continuou como tribuno do povo, em 105, e pretor, no ano
seguinte. Finalmente, em 108, o seu protector, Lúcio Sura, concedeu-lhe o
consulado que tinha ocupado por três vezes consecutivas. Pouco depois, para
desolação do ascendente cônsul, Sura morre inesperadamente.
O vazio deixado pela morte do
hábil conselheiro provocou a brusca queda de Plotina e de Adriano e a ascensão
de uma elite cortesã encabeçada por Júlio Serviano. Pouco se sabe do ostracismo
a que foi votado ao afilhado do imperador durante cerca de dez anos. Algumas
fontes garantem que, durante esse tempo, foi procônsul em Atenas, o que lhe
permitiu aprofundar o seu amor pelo helenismo e estudar a arte e a cultura da
Grécia antiga. Entretanto, Trajano empreendia as suas grandes campanhas na
frente oriental, conquistando a Partia, a Mesopotâmia, a Síria e a Armênia. Nesse
intervalo de tempo, a persistente Plotina recuperou o favor do imperador e, em
117, conseguiu que Adriano fosse designado comandante do exército que ocupava o
estratégico enclave da Síria.
Trajano morre de apoplexia
durante a sua viagem de regresso a Roma e as legiões proclamaram Adriano
imperador. O recém-proclamado imperador iniciou um regresso lento, mas
calculado, à capital do império, enquanto Plotina limpava a corte de adversários
e os seus partidários obtinham a confirmação do Senado, graças ao antigo tutor
Acílio Attiano, agora chefe dos pretorianos, que eliminou os quatro senadores
mais recalcitrantes. Adriano chegou ao Palatino no meio de uma certa
indiferença popular e não permaneceu muito tempo na cidade, nem nessa ocasião
nem ao longo dos seus vinte e um anos de reinado. O seu antecessor deixou-lhe
um enorme e caótico império, que abarcava quase todo o mundo conhecido (Roma
era chamada Caput mundi), com
fronteiras em permanente conflito e constantes levantamentos nas províncias
mais rebeldes. O novo imperador dedicou-se a percorrer palmo a palmo o seu
inabarcável território, alojando-se nos acampamentos militares e comendo e
dormindo com os seus legionários. Mas só entrava em guerra se fosse imprescindível;
com uma legislação tolerante e generosa e a construção de caminhos, aquedutos,
templos e anfiteatros, integrou e romanizou povos orgulhosos e díspares. Foi
então que todo o Império tomou o nome de Roma, que até então apenas designava a
metrópole do Tibre.
Serviano continuou as suas
intrigas no Senado, acusando o imperador de descurar Roma para agradar aos
bárbaros, de ter reduzido as fronteiras de Augusto para não enfrentar os
Germanos e de praticar o “vício grego” pelo seu decadente helenismo. Apesar de
tudo, o certo é que Adriano foi um dos governantes mais sensatos, cultos e
progressistas do Império Romano.
O seu reinado caracterizou-se
pela consolidação das fronteiras, pela organização das províncias e pelo
incentivo dos serviços e das obras públicas, pela promoção das artes e da
agricultura e pela compilação do Edito
perpetuo, primeiro esboço do que seria o célebre direito romano. Entre as
suas obras mais notáveis contam-se o mausoléu (núcleo do actual castelo de Sant’Angelo,
em frente ao Vaticano), o templo de Vênus e o de Júpiter, no local que o templo
de Salomão ocupara, em Jerusalém, que reconstruiu com o nome de Aelia Capitolina. O seu enorme gosto
pela cultura clássica reflectiu-se no seu empreendimento pela educação, pelas
artes, pela filosofia e pela literatura. Apesar dos comentários dos seus adversários,
nunca escondeu o seu escasso interesse pelas mulheres, o que o prejudicou
politicamente, nem as suas preferências homossexuais, que o levaram a uma trágica
experiência nos últimos anos da sua vida.
No ano 123, Adriano tinha
quarenta e sete anos e tinha deixado crescer uma barba espessa e curta, que
mudou a moda do rosto barbeado estabelecida por Júlio César entre os Romanos.
Nesse ano realizava uma viagem
pelas províncias da Ásia Menor e, na cidade de Claudinópolis, conheceu um belo
jovem grego chamado Antínoo. O imperador apaixonou-se perdidamente por aquele
jovem que, nessa altura, teria entre doze e treze anos. Pouco se sabe da origem
da família de Antínoo, excepto que tinha nascido na Bitínia (que, ao que
parece, produzia os mais belos jovens da Antiguidade) e que desempenhava as
funções de pajem na corte de Nicomedia. As crônicas também registram que, em
125, o imperador o levou consigo na sua viagem de regresso a Roma.
Busto de Antínoo, Artista desconhecido.
Foto: Marsyas
Adriano permaneceu em Roma
durante os três anos seguintes, estada pouco usual, talvez provocada pelo
ingresso do seu efebo no paedagogium
ou escola imperial. A sua única saída da cidade foi uma visita às Ilhas Britânicas,
onde, em 127, erigiu uma muralha de 117 quilómetros, de costa a costa, para
conter os aguerridos Caledônios da Escócia. Dada a pouca idade de Antínoo, é
provável que a relação sexual entre ambos se tenha concretizado no ano 128,
quando o jovem atingiu os dezassete anos e o imperador o levou consigo numa
longa viagem pela Grécia, Ásia Menor e Norte da África. Diz-se que, ao chegar
ao Egipto, no ano 130, Adriano visitou uma adivinha que lhe vaticinou a morte. Como
homem racional e letrado que era, desdenhou do mau augúrio; porém, Antínoo
ficou deprimido e inquieto, angustiado pela nefasta profecia.
Na época, existia no mundo romano
a crença de que o cumprimento de uma profecia de morte só podia ser evitada se
outra pessoa, por amor à vítima, se imolasse em seu lugar. E foi isso
precisamente o que decidiu fazer o efebo enamorado: oferecer-se aos deuses para
salvar o seu amado.
Adriano tinha-o brindado com o
seu afecto e protecção, tinha-o educado e requintado e tinha-o ensinado a
desfrutar com plenitude dos prazeres sexuais. Que mais poderia oferecer-lhe,
senão a própria vida? Uma noite, pegou num dos barcos do séquito imperial e
deixou-se arrastar pela corrente entre as trevas do Nilo. Não voltaria vivo à
suas margens.
Alguns autores recusam esta versão
romântica da morte de Antínoo. Há quem afirme que foi violado e assassinado por
um bando de piratas fluviais, outros supõem que a sua inexperiência náutica
levou a que a barca se virasse e que foi engolido pelas águas. Mas a verdade é
que o suicídio por amor é o único motivo que oferece certos indícios
colaterais, como o desânimo do jovem nos dias anteriores ou o sentimento de
culpa de Adriano, que o levou a divinizar Antínoo, fundando uma cidade em sua
honra e homenageando-o em templos, monumentos e moedas com a sua efígie e o seu
nome. Dois séculos mais tarde, Atanásio, patriarca de Alexandria, condenaria
essas sumptuosas honras, demonstrando mais uma vez a intolerância eclesiástica:
“Resoluções e actos que efectivamente tornaram público e testemunharam
perante o mundo até que ponto a paixão antinatural do imperador sobrevivia ao
seu amado; e em que medida o seu amor era devoto à sua memória, exaltando o seu
próprio crime e condenação e deixando à Humanidade um enganoso e notório
exemplo da verdadeira origem e linhagem de toda a idolatria.” (Santo Atanásio,
295-373).
É possível que esse desolado
arrependimento fosse a causa dos ataques de loucura e de fúria que turvaram a
mente do imperador nos últimos anos da sua vida. Animado por inesperados desejos
amargos e despóticos, tomou decisões arbitrárias e injustas, que começaram a
gerar intrigas e conspirações. Aquele que tinha amado cada pedaço do seu Império
cometia agora atropelos despropositados nas províncias, como a repressão
violenta e desnecessária da revolta judaica de 134, destruindo cerca de mil
aldeias e povoações, provocando um total de 580.000 mortos. As suas legiões
entraram em Jerusalém para edificar um santuário a Apolo no lugar do templo de
Salomão e para refundar a cidade com um nome romano. Receoso de uma conjura, em
136 mandou assassinar o seu velho adversário Júlio Serviano, bem como o seu
neto Pedânio Fusco, possível candidato da imaginária conspiração. Naquela
triste etapa final, os excessos e abusos de Adriano recordaram a Roma os piores
momentos do reinado de Nero. É provável que o tivessem destituído, se o
extraviado imperador não tivesse morrido na em Baía (Nápoles), no dia 10 de
Julho de 138, depois de uma lenta e insuportável agonia. Tinha 62 anos e os
Romanos não choraram a sua morte, no mausoléu de Sant’Angelo.
“Perdeu Antínoo enquanto navegava
no Nilo e chorou por ele como uma mulher.” (Historia Augusta)
Nenhum comentário:
Postar um comentário