Mulher em pé segurando seu véu. Beócia (?). Figurino de
terracota, ca. 400-375 a .C.
Foto: Jastrow
O véu era de uso corrente no
mundo mediterrâneo antigo. Mas sem obrigação religiosa. É certo que em vários
ritos sacrificais greco-romanos deve-se cobrir a cabeça; mas isso vale para os
dois sexos. Nem o Antigo Testamento nem os Evangelhos fazem exigências quanto a
isso.
O apóstolo Paulo inova. Na
primeira Epístola aos Coríntios (11, 5-10), ele escreve que, nas assembleias,
os homens devem se descobrir e as mulheres se cobrir.
Toda mulher que ora ou profetiza, não tendo a cabeça coberta, falta ao
respeito ao seu senhor, porque é como se estivesse rapada. Se uma mulher não se
cobre com um véu, então corte o cabelo. Ora, se é vergonhoso para a mulher ter
os cabelos ou a cabeça rapada, então que se cubra com um véu.
Porque a mulher foi criada para o
homem, “a mulher deve trazer o sinal da submissão sobre sua cabeça, por causa
dos anjos”. As mulheres devem calar-se nas assembleias. Usar o véu ao
profetizarem. Usar o véu como sinal de dependência: “a mulher deve trazer sobre
sua cabeça o sinal da autoridade”.
Depois de Paulo, os Pais da
Igreja acrescentam exigências. Tertuliano, de sua parte, dedica dois tratados
ao que se tornou uma preocupação maior da cristandade nascente: Le Voile dês Virges e La Toilette dês femmes.
Assim, o véu reveste-se de
significações múltiplas, religiosas e civis, para com Deus, e para com o homem,
seu representante. Ele é sinal de dependência, de pudor, de honra.
O véu é sinal de autoridade: já
em Roma, uma mulher casada que sai sem seu lenço, a rica, pode ser constrangida
ao divórcio. As moças não usam véu: reivindicam não usá-lo. A mulher casada é
propriedade de alguém, logo deve ser velada. O véu é instrumento de pudor.
Tertuliano considera as toucas e os lenços insuficientes. É preciso velar o
corpo das mulheres, e sua cabeleira, objetos de tentações.
Sinal de virgindade, o véu figura
o hímen. O véu da noiva é um véu nupcial que apenas o marido deve retirar,
assim como é ele que deflora o hímen. Significa oblação, oferenda, sacrifício
da esposa.
Ou ainda, véu de oblação da
religiosa, que, no dia em que professa, oferece sua cabeleira a Deus e põe o véu
para ele. A Igreja faz do véu das religiosas uma obrigação, o selo de sua
castidade e de seu pertencimento a Deus, sobretudo a partir do século IV. A
Igreja impõe o véu às religiosas e aconselha-o às demais mulheres; devem, pelo
menos, ter a cabeça coberta.
Essa prescrição, por vezes, é difícil
de aceitar. Marguerite Audox, em seu romance autobiográfico, Marie-Claire, põe em cena uma religiosa
que sofre com essa exigência: “Quando me visto, parece que entro numa casa que
está sempre às escuras”, diz a irmã Desiree dês Anges; à noite, ela tira, com
prazer, hábito e véu e deixa livres os seus cabelos, para grande escândalo de
suas “irmãs”, que suspeitam de que ela tenha traído seus votos de castidade. Véronique
“julgou que era vergonhoso para uma religiosa deixar ver seus cabelos”.
A questão do véu foi um ponto
central nas discussões do Concílio Vaticano II, entre os clérigos e as
religiosas, que pediam para tornar mais leves suas roupas, tão pouco compatíveis
com as exigências da vida moderna. Fiéis aos Pais da Igreja, os clérigos, eles
próprios dispostos a se laicizar, resistiram e mantiveram a obrigação do véu,
simplificando-o, no entanto.
As mulheres de Argel em seu apartamento, Eugène Delacroix
As relações entre o islã e o véu
são controversas [...]. Segundo Malek Chebel, o Corão não estabelece nenhuma
obrigação a esse respeito. Mas o islã cresceu no seio de culturas mediterrâneas
que ocultam as mulheres, as mantêm confinadas (gineceu, harém, mulher escondida
da cultura árabe-andaluza). O uso do véu pelas próprias mulheres é complexo,
como o mostram, para as argelinas, os romances de Assia Djebar. Num mundo de
homens, o véu é, para elas, a única possibilidade de circular no espaço público.
Na época da Guerra da Argélia, a “mulher sem sepultura” de Cesareia (Cherchell)
dissimula suas ligações com o maquis sob o véu. Hoje, as mulheres iranianas,
mesmo sendo muito liberadas, usam o véu para se proteger, abrigar-se do olhar,
do poder e dos homens. Sob o véu, elas se vestem como querem.
Mas, e talvez seja um sinal de
resistência à arabização, as mulheres berberes não usam véu. As feministas do
Magreb, embora minoritárias, fazem da recusa ao uso do véu uma afirmação de sua
liberdade: é o que acontece no Marrocos.
Ainda mais quando o
fundamentalismo pretende submetê-las a isso. O véu é um símbolo de dominação
das mulheres e de seu corpo. Eu te ponho um véu porque tu me pertences,
Compreende-se que seja um objeto de discórdia, que, na França, está presente
tanto no movimento de reivindicações Ni
putes ni soumises [Nem putas nem submissas] quanto aos debates em torno da
lei sobre a proibição do véu na escola pública, os quais dividiram as próprias
feministas.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo:
Contexto, 2013. p. 56-58.
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