Gilberto Freyre foi pioneiro em
afirmar que, numa sociedade patriarcal, o corpo era marcado por diferenças de
gênero. “Cada um como cada qual”, dizia o ditado popular. Nada de equívocos.
Bordões como “a mulher que é, em tudo, o contrário do homem” sintetizavam as
formas de pensar. Curvas, cabeleira comprida e adereços eram coisas femininas.
Por seu lado, o homem moderno foi construir sua masculinidade. Masculinidade
não mais fundada apenas na coragem e na honra, como no século anterior.
Emergiam novos comportamentos: a palavra tomava o lugar do gesto, a competência
se sobrepunha à dominação e a mediação substituía o confronto. Renunciava-se
aos duelos, abandonava-se a faca, forjava-se um ideal novo: o homem educado,
senhor de suas paixões, com hábitos burgueses deveria tomar a frente da cena,
tornando-se um trabalhador útil ao país. Ele se vestiria de negro, impondo a
formalidade. Acessórios? Só alfinetes de gravata, relógios, abotoaduras,
chapéus e guarda-chuva. Nas mãos, a aliança. O bigode ou outras pilosidades
faciais marcavam, nos rostos, a maturidade sexual. O esportista, no campo de
futebol, nas águas da piscina ou no ringue, ou o militar, em tempos de
guerras, cada qual no seu uniforme, fazia suspirar as moças. Os espaços
masculinos também se ampliavam. Escritórios, bares ou sindicatos alimentavam
redes de sociabilidade e consumo. Jornais e revistas expandiam o espectro de
possibilidades: idas ao Jockey Club ou aos estádios. Consumo de Dynamogenol ou
NutrioN para aumentar as forças “nas lutas da existência”. Praias e piscinas
esculpiam os corpos masculinos por meio do fisioculturismo, colorindo-os com
“raios de sol”.
A valorização da força física
como fator de desenvolvimento da sociedade engendrava outras formas de
práticas, agora também fundadas em conceitos estéticos. O corpo musculoso e
forte tornava-se signo de beleza e era revelador de boa saúde. Entrava em cena
halteres e pesos. Valores como resistência, autoridade e competição
simbolizavam a afirmação da masculinidade.
Puxando peso com os dois braços, Eugène
Fredrik Jansson
Tais mutações escoravam-se nas
mudanças econômicas. A prosperidade alimentava os sonhos de ascensão social.
Junto a isso, havia a aspiração de alargar horizontes e formar melhores
brasileiros. Na vida privada, a atenção crescente dada à família, aos filhos e
ao casamento exige uma adequação entre a casa e a rua. Isso porque a imprensa
promovia a nova masculinidade, associando-a a “caráter, trabalho duro e
integridade”. O bom macho era também bom pai de família e provedor.
O trabalho, Pierre Puvis de Chavannes
Na contramão desse ideário
encontravam-se os homens que fugiam às regras na conduta e na indumentária.
Qualquer sugestão de feminilidade era ferozmente perseguida. Revistas como
a Selecta ou a Fon-Fon, entre os anos 20 e 30,
ridicularizavam as “figuras dúbias” de “almofadinhas e libélulas” com “cabelos
lustrosos e rosto polvilhado”. Representantes de uma época decadente, tais
homens eram vistos como doentios e indecorosos: “gostam de usar calças muito
apertadas, para que lhes vejam o arredondamento das nádegas”, denunciava o
médico Ernani de Irajá. Eram o oposto do “burguês bem-sucedido”.
Discussões sobre a origem ou as
causas dos “estados inter-sexuais” apaixonavam médicos. Havia quem tentasse
explicar os “missexuais” ou a mistura dos dois sexos em um. Mas não importavam
as interpretações. A homossexualidade era considerada, além de imoral, uma
anormalidade. Durante os anos 30, o médico Leonídio Ribeiro consagrou-se graças
a estudos sobre endocrinologia, relacionando-a com as “anomalias do instinto
sexual”. Estas seriam o reflexo de mau funcionamento das glândulas. O remédio
era o transplante de testículos, inclusive de carneiros ou de grandes
antropóides. Afinidades entre homossexualidade e criminalidade? Todas. O crime
era uma decorrência da paixão que “invertidos” nutriam entre si. Num quadro de
guerras mundiais e de reforço do nacionalismo, homossexuais transformavam-se em
bodes expiatórios.
Nu masculino, Lucílio de Albuquerque
“O homossexualismo é
antissocial. É a destruição da sociedade; é o enfraquecimento dos países [...]
a maioria dos pederastas não se casa, não constitui família; portanto, não
contribui para o engrandecimento, para o desenvolvimento da sociedade e do
país. Se o homossexualismo fosse regra, o mundo acabaria em pouco tempo”,
apregoava o médico Aldo Sinisgalli. A repressão e o preconceito contra a
diferença só faziam aumentar.
O mundo masculino defrontava-se,
assim, com novas dimensões que o obrigavam a adotar uma forma ideal. A exibição
corporal incentivada pelos novos tempos deveria expressar os papéis sociais
aceitos para homens e mulheres. Eles deviam demonstrar atitude, atividade,
postura propositiva; elas, ao contrário, apenas leveza e suavidade.
Elaborava-se a masculinidade contrastando-a com a feminilidade. E o cinema,
notadamente o americano, só veio jogar água no moinho das diferenças de gênero.
O espetáculo do herói e o culto ao corpo alimentavam códigos estéticos que
bombardeavam os machos brasileiros com estereótipos.
Balneário naval, Eugène Fredrik Jansson
Segundo alguns autores, Hollywood
ajudou a construir não só comportamentos adequados como também uma identidade
nacional, no início do século X. Tratava-se da difusão de ideais e da
utilização de heróis como força de expressão. Nas telas, eles encarnavam a
revanche da guerra, a condenação aos desajustes da sociedade, os guerreiros
virtuosos do esporte.
Atletas começam a participar de
filmes como atores, entre os quais Johnny Weissmuller, ex-atleta de natação e o
mais famoso Tarzã, além de alguns famosos lutadores de boxe. Encarnando a
imagem de “lutadores”, ainda tinham que ser sexualmente ativos e sustentar
financeiramente a família, exercendo a autoridade e o poder – quando não a
força e a violência física – no meio familiar e no trabalho. Marcas corpóreas
como cicatrizes, cortes, arranhões, tatuagens, mutilações comprovavam o
desempenho do homem em sua trajetória de heroísmo; eram provas de uma história
exibida com orgulho, impondo respeito. Eram as demonstrações concretas da
valentia e da luta, base da cumplicidade entre machos e contraste com os corpos
de pederastas e “missexuais”.
Nu masculino, Lucílio de Albuquerque
A questão da virilidade associada
às lutas físicas ou morais expandia-se nas metáforas lingüísticas utilizadas
constantemente nos conflitos: “mostrar o pau”, “meter o pau”, “botar o pau na
mesa”. O órgão masculino era comumente definido como “pau”, “porrete”,
“pistola”, “canhão”, “espada”.
Ginasta de anel, Eugène Fredrik Jansson
Essa ideia de virilidade surgia
ainda nos esquemas maniqueístas típicos dos filmes de então. Neles, o oponente,
representado como cruel, desonesto e supostamente mais bem treinado, mais forte
e com mais condições de vitória, desfilava com um sem-número de mulheres
retratadas como fúteis, mais interessadas em seu físico e em seu dinheiro do
que em algo “sério”, como a constituição de um lar. Ao mesmo tempo, as mulheres
“honestas” sabiam que seu papel era servir de apoio para a carreira do marido,
um herói, e não se prestar ao papel de “pistoleiras”. Para a figura feminina,
recuperava-se a velha oposição entre mães e prostitutas, dualidade
característica da sociedade patriarcal.
Isso não foi tudo. A partir dos
anos 40 e 50, revistas como O Cruzeiro apostavam nas notícias
sobre esse novo homem identificado com as mudanças do tempo. Tópicos sobre
concursos de fisioculturismo pipocavam: “Bonitões em desfile”, anunciava o
Campeonato Nacional de Melhor Físico de 1949. A manchete “Músculos em
revista” tratava do 1º Campeonato Nacional de Levantamento de Pesos e a escolha
do Melhor Físico de 1950. As matérias eram ricamente ilustradas com fotos,
ressaltando-se os “atletas” em diversas poses e em trajes mínimos,
impressionantes até para os dias de hoje. A intenção da revista era explorar a
sensualidade de corpos masculinos, algo, diga-se, definitivamente novo!
PRIORE, Mary del. Histórias
íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2011. p. 155-159
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