"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A partilha do mundo entre deuses e homens

Encontro dos deuses nas nuvens, Cornelis van Poelenburch

De todo modo, a existência dos gregos não pode ser referida apenas a si mesma, pois estava entrelaçada aos antepassados, aos fundadores de dinastias, à memória dos heróis e também aos deuses. Para os gregos, as homenagens e os sacrifícios às divindades eram fundamentais, pois eles dependiam das divindades para o sucesso ou não de seus empreendimentos.

O que o divino representava para um grego e como é que o homem se posicionava em relação a ele é muito diferente da maneira como nós lidamos e organizamos o campo do religioso. Jean Pierre Vernant desenvolve a ideia de que para nós a palavra “deus” evoca um ser único, eterno, absoluto, perfeito, onisciente e onipotente. Esse conjunto se associa a outros conceitos como o sagrado, o sobrenatural, a fé, a igreja e o clero que, juntos, definem o campo do “religioso”. Neste sentido, o “religioso” possui um estatuto e uma função que se diferenciam de outros componentes da vida social. Na nossa compreensão do mundo estabelecemos separações entre o sagrado e o profano, entre o natural e o sobrenatural, entre fé e descrença, entre sacerdotes e leigos. Há a separação entre Deus e um universo que depende inteiramente dele porque foi Ele que os criou, e o criou do nada.

Para os gregos, diferentemente, as inúmeras divindades de seu politeísmo não possuíam as características que definem o divino. Não havia noção de eternidade, de perfeição, de onisciência ou onipotência. Os deuses gregos não criaram o mundo, nasceram nele e dele a partir dos poderes primordiais como o Caos (vazio) e Gaia (Terra). Assim, a transcendência dos deuses gregos só valia com relação à esfera humana. Tal como os homens, mas acima deles, os deuses gregos eram parte integrante do Cosmos. Nesse sentido não havia oposição entre natural e sobrenatural. A lua, o sol, uma montanha, um rio etc., podiam ser sentidos como potências divinas. Os deuses da epopéia eram exagerados e se diferenciavam dos homens apenas por sua imortalidade. Homero muitas vezes ridicularizava os deuses colocando-os em situações cômicas. Como personagens irracionais, eles amavam, odiavam e brigavam. Não eram poderes ou forças impessoais. Os gregos aceitavam e compreendiam os deuses de Homero.

Zeus não era o deus das religiões monoteístas; ele era caprichoso e sensual, era frívolo, indeciso e pouco confiável apesar de ser o rei dos outros deuses. Para os gregos, até os deuses estavam submetidos à moira (destino). Quando Zeus tentava dar a vitória aos troianos na Guerra de Troia, gerava confusão entre os deuses e não conseguia seu intento. O destino era mais forte e a vitória já estava destinada aos aqueus.

Os deuses e as potências divinas encarnavam os poderes, as virtudes e os favores de que os homens não podiam usufruir. Os homens, apesar de toda a dedicação ao desenvolvimento e manutenção da areté, não podiam jamais pretender ultrapassar os deuses. Por outro lado, pode-se pensar que o mundo dos deuses, apesar de estar sempre hierarquicamente superior, assemelha-se ao mundo dos homens. Segundo Jean Pierre Vernant, as perfeições de que os deuses são dotados são um prolongamento linear das perfeições que se manifestam na ordem e na beleza do mundo. [...] a harmonia de uma cidade governada segundo a justiça e a elegância de uma vida regida pela moderação e pelo autocontrole era uma conquista humana inspirada pela crença dos gregos em uma legalidade imanente ao cosmos.

A dependência da divindade, para os gregos, não significava servidão, pois o mundo dos deuses ficava a tal distância que não impedia a autonomia dos homens ou, por outro lado, não implicava seu aniquilamento perante a infinidade do divino. A religiosidade do homem grego não desembocava na via de renúncia ao mundo, e sim na sua estetização.

Ainda segundo Jean Vernant, no mundo grego não havia lugar para um setor religioso diferenciado em instituições, comportamentos codificados e convicções profundas que dessem forma a um conjunto organizado e nitidamente distinto de outras práticas sociais, como, por exemplo, a política ou a economia. Em todas as dimensões da vida grega havia sempre uma dimensão religiosa. Neste sentido o problema da fé e da descrença não podia ser pensado por eles. O “crer” nos deuses não se colocava em um plano propriamente intelectual, não pretendia desenvolver um conhecimento do divino ou um caráter doutrinal.

Na perspectiva de Werner Jaeger, em Paidéia, é preciso considerar que, de Homero até a crise das cidades, os gregos sempre intuíram a existência de um cosmos concebido como um todo ordenado em conexão viva no qual e pelo qual tudo – pensamento, linguagem, ação e todas as formas de arte – ganhava posição e sentido. Nesta ordenação os gregos colocaram a imagem do homem genérico, na sua validade universal e normativa, enraizado na vida comunitária. Ou seja, eles criaram uma imagem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever. Esse ideal de homem integrado e integrante de sua comunidade era uma forma viva que se desenvolveu no solo grego e persistiu por meio das mudanças históricas.

Nada mais afastado da cultura grega do que o cogito (pensamento) cartesiano. O eu penso como condição e fundamento de todo o conhecimento do mundo, de si e de deus [...] Imaginar o mundo não consiste em torná-lo presente no nosso pensamento. É o nosso pensamento, de acordo com Vernant, que faz parte do mundo e é presença no mundo. [...] Todavia, para o homem grego, o mundo não é esse universo externo reificado, separado do homem pela barreira intransponível que divide a matéria do espírito, o físico do psíquico. A relação do homem com o universo dotado de alma, a que tudo o liga, é uma relação de comunhão íntima. Para os gregos, a visão só é possível se entre o que é visto e aquele que vê existir uma total reciprocidade, expressão se não de uma identidade, ao menos de uma estreita afinidade. O Sol que ilumina todas as coisas é também, no céu, um olho que vê tudo, e se nossos olhos vêem é porque irradiam uma espécie de luz comparável à luz do Sol. O objeto emissor e o sujeito receptor, os raios luminosos e os raios óticos pertencem a uma mesma categoria do real, acerca da qual se pode dizer que ignora a oposição físico-psíquico ou que é ao mesmo tempo de natureza física e psíquica. A luz é visão e a visão é luminosa. Quando alcança um objeto, o olhar transmite-lhe aquilo que o observador sente ao vê-lo.


EYLER, Flávia Maria Schlee. História antiga: Grécia e Roma: a formação do Ocidente. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 45-49. (Série História Geral)


NOTA: O texto "A partilha do mundo entre deuses e homens" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário