Encontro dos deuses nas nuvens, Cornelis van Poelenburch
O que o divino representava para
um grego e como é que o homem se posicionava em relação a ele é muito diferente
da maneira como nós lidamos e organizamos o campo do religioso. Jean Pierre Vernant
desenvolve a ideia de que para nós a palavra “deus” evoca um ser único, eterno,
absoluto, perfeito, onisciente e onipotente. Esse conjunto se associa a outros
conceitos como o sagrado, o sobrenatural, a fé, a igreja e o clero que, juntos,
definem o campo do “religioso”. Neste sentido, o “religioso” possui um estatuto
e uma função que se diferenciam de outros componentes da vida social. Na nossa
compreensão do mundo estabelecemos separações entre o sagrado e o profano,
entre o natural e o sobrenatural, entre fé e descrença, entre sacerdotes e
leigos. Há a separação entre Deus e um universo que depende inteiramente dele
porque foi Ele que os criou, e o criou do nada.
Para os gregos, diferentemente,
as inúmeras divindades de seu politeísmo não possuíam as características que
definem o divino. Não havia noção de eternidade, de perfeição, de onisciência
ou onipotência. Os deuses gregos não criaram o mundo, nasceram nele e dele a
partir dos poderes primordiais como o Caos
(vazio) e Gaia (Terra). Assim, a
transcendência dos deuses gregos só valia com relação à esfera humana. Tal como
os homens, mas acima deles, os deuses gregos eram parte integrante do Cosmos. Nesse sentido não havia oposição
entre natural e sobrenatural. A lua, o sol, uma montanha, um rio etc., podiam
ser sentidos como potências divinas. Os deuses da epopéia eram exagerados e se
diferenciavam dos homens apenas por sua imortalidade. Homero muitas vezes
ridicularizava os deuses colocando-os em situações cômicas. Como personagens
irracionais, eles amavam, odiavam e brigavam. Não eram poderes ou forças
impessoais. Os gregos aceitavam e compreendiam os deuses de Homero.
Zeus não era o deus das religiões
monoteístas; ele era caprichoso e sensual, era frívolo, indeciso e pouco confiável
apesar de ser o rei dos outros deuses. Para os gregos, até os deuses estavam
submetidos à moira (destino). Quando
Zeus tentava dar a vitória aos troianos na Guerra de Troia, gerava confusão
entre os deuses e não conseguia seu intento. O destino era mais forte e a vitória
já estava destinada aos aqueus.
Os deuses e as potências divinas
encarnavam os poderes, as virtudes e os favores de que os homens não podiam
usufruir. Os homens, apesar de toda a dedicação ao desenvolvimento e manutenção
da areté, não podiam jamais pretender
ultrapassar os deuses. Por outro lado, pode-se pensar que o mundo dos deuses,
apesar de estar sempre hierarquicamente superior, assemelha-se ao mundo dos
homens. Segundo Jean Pierre Vernant, as perfeições de que os deuses são dotados
são um prolongamento linear das perfeições que se manifestam na ordem e na
beleza do mundo. [...] a harmonia de uma cidade governada segundo a justiça e a
elegância de uma vida regida pela moderação e pelo autocontrole era uma
conquista humana inspirada pela crença dos gregos em uma legalidade imanente ao
cosmos.
A dependência da divindade, para
os gregos, não significava servidão, pois o mundo dos deuses ficava a tal distância
que não impedia a autonomia dos homens ou, por outro lado, não implicava seu
aniquilamento perante a infinidade do divino. A religiosidade do homem grego não
desembocava na via de renúncia ao mundo, e sim na sua estetização.
Ainda segundo Jean Vernant, no
mundo grego não havia lugar para um setor religioso diferenciado em instituições,
comportamentos codificados e convicções profundas que dessem forma a um
conjunto organizado e nitidamente distinto de outras práticas sociais, como,
por exemplo, a política ou a economia. Em todas as dimensões da vida grega
havia sempre uma dimensão religiosa. Neste sentido o problema da fé e da
descrença não podia ser pensado por eles. O “crer” nos deuses não se colocava
em um plano propriamente intelectual, não pretendia desenvolver um conhecimento
do divino ou um caráter doutrinal.
Na perspectiva de Werner Jaeger,
em Paidéia, é preciso considerar que,
de Homero até a crise das cidades, os gregos sempre intuíram a existência de um
cosmos concebido como um todo
ordenado em conexão viva no qual e pelo qual tudo – pensamento, linguagem, ação
e todas as formas de arte – ganhava posição e sentido. Nesta ordenação os
gregos colocaram a imagem do homem genérico, na sua validade universal e
normativa, enraizado na vida comunitária. Ou seja, eles criaram uma imagem do
humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever. Esse ideal de homem
integrado e integrante de sua comunidade era uma forma viva que se desenvolveu
no solo grego e persistiu por meio das mudanças históricas.
Nada mais afastado da cultura
grega do que o cogito (pensamento)
cartesiano. O eu penso como condição
e fundamento de todo o conhecimento do mundo, de si e de deus [...] Imaginar o
mundo não consiste em torná-lo presente no
nosso pensamento. É o nosso pensamento, de acordo com Vernant, que faz parte do
mundo e é presença no mundo. [...] Todavia, para o homem grego, o mundo não é
esse universo externo reificado, separado do homem pela barreira intransponível
que divide a matéria do espírito, o físico do psíquico. A relação do homem com
o universo dotado de alma, a que tudo o liga, é uma relação de comunhão íntima.
Para os gregos, a visão só é possível se entre o que é visto e aquele que vê
existir uma total reciprocidade, expressão se não de uma identidade, ao menos
de uma estreita afinidade. O Sol que ilumina todas as coisas é também, no céu,
um olho que vê tudo, e se nossos olhos vêem é porque irradiam uma espécie de
luz comparável à luz do Sol. O objeto emissor e o sujeito receptor, os raios
luminosos e os raios óticos pertencem a uma mesma categoria do real, acerca da
qual se pode dizer que ignora a oposição físico-psíquico ou que é ao mesmo
tempo de natureza física e psíquica. A luz é visão e a visão é luminosa. Quando
alcança um objeto, o olhar transmite-lhe aquilo que o observador sente ao vê-lo.
EYLER, Flávia Maria Schlee. História antiga: Grécia e Roma: a formação
do Ocidente. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 45-49. (Série
História Geral)
NOTA: O texto "A partilha do mundo entre deuses e homens" não representa,
necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de
refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.
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