"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O cotidiano nos centros urbanos no início da colonização portuguesa na América

Para além da fortaleza, matriz do núcleo populacional, outros edifícios eram necessários ao cotidiano dos colonos. Com traçados irregulares, herdados da tradição medieval - ao menos até que o barroco passasse a inspirar a planta das redes urbanas no século XVII -, as vilas e cidades tinham como um de seus principais edifícios as igrejas, os conventos e os colégios jesuítas. A espiritualidade individual, considerada essencial para um bom cristão, precisava ser reforçada através de práticas coletivas, em ambientes apropriados e sob as vistas da Igreja.

Sem contarem com saneamento básico, os portugueses no Brasil optaram por criar seus povoados em locais cujo relevo se dividia entre uma parte alta e outra baixa, para que a gravidade e a chuva dessem conta da limpeza das ruas. Salvador era assim, mas nem todos os locais tinham a mesma sorte com a geografia.

Ao lado dos edifícios públicos e administrativos, conviviam, nas regiões portuárias (a grande maioria das primeiras cidades foram fundadas em regiões litorâneas), armazéns e mercados de escravos. Apenas  as cidades maiores, como Salvador, possuíam hospitais e misericórdias para socorrer os doentes que vinham embarcados nas naus da Coroa.


Uma venda em Recife, Rugendas

A Câmara Municipal era um dos poucos edifícios públicos que realmente expressavam a gestão administrativa local. Depois de breve período em que foram nomeados pelos donatários, os vereadores passaram a ser eleitos localmente entre os súditos de cada cidade, acumulando as atribuições executiva, legislativa e judiciária.

O cargo de prefeito ainda não existia. Era o presidente da Câmara que tomava as decisões, que precisavam depois ser referendadas pelos demais vereadores. Ao redor da Câmara, gravitava uma série de funcionários públicos, ouvidores, membros da junta, escrivães, provedores, fiscais e intendentes, nomeados "por dedicação ao reino" e raramente por capacidade de trabalho.

As casas dos particulares, por sua vez, disputavam espaço com comércios, que, a cada dia, iam se instalando para dar conta da distribuição de produtos importados da Europa e mercadorias da terra.

A rede, Henry Alken

A maioria dos senhores de engenho mantinha uma casa na cidade mais próxima, a despeito de raramente a frequentarem, preferindo ficar a maior parte do tempo na sua casa-grande.

Inicialmente, os edifícios eram construídos com madeira e barro, de maneira muito semelhante à das casas de pau-a-pique existentes ainda hoje no interior do Nordeste, sempre térreas, com linhas rústicas e poucas divisões internas.

Conforme o material foi sendo gradualmente substituído pela alvenaria de pedra, as casas ganhavam pavimento superior e um maior número de cômodos, tentando manter-se sempre o ambiente arejado em meio ao clima quente.

Fossem de barro ou de pedra, a maioria das casas possuía terreiros, quintais e alpendres, os locais prediletos para "ver o dia passar", observando o vai-e-vem de pessoas e mercadorias pelas ruas.

A pouca inclinação ao trabalho duro por parte dos primeiros colonos que chegaram ao Brasil, somada à fartura de mão-de-obra escrava, primeiro indígena e depois africana, e à incorporação do hábito cultural de obtenção do mínimo necessário com a maior facilidade possível, forjou uma sociedade que valorizava o ócio. Aqui, o trabalho era considerado coisa de escravo.


Mulheres escravas, Carlos Julião

A maior parte da população não dispunha de recursos econômicos para mandar fazer móveis de madeira, tampouco sentia necessidade disso. No interior das casas, sendo os móveis escassos, grandes cômodos deixavam amplos espaços livres para que se sentasse no chão, sobre esteiras ou tapetes, um hábito corrente. A rede de dormir fazia as vezes de cama, enquanto caixas e canastras serviam para guardar as roupas, ficando alojadas em suportes e mesas, tipo cavalete. Mesas baixas, condizentes com a posição de sentar-se no chão, eram comuns.


Uma família brasileira no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret

Os cupins invadiam constantemente as casas para atacar móveis e madeiramento, estragando tudo pelo caminho, um motivo a mais para que bancos e catres fossem considerados objetos de luxo e distinção, presentes apenas nas casas dos mais ricos, que podiam substituí-los sempre que necessário.

Os colonos portugueses, nos primeiros tempos, comiam como os índios, em vasilhas de barro, usando uma técnica até hoje presente em muitos lugares Brasil afora conhecida como "comer de arremesso", a qual consiste em utilizar quatro dedos para pegar o alimento e levá-lo à boca, com enorme destreza, fazendo inveja aos franceses, que, quando tentavam imitá-los, acabavam sujando rosto, bochechas e barbas.

A mandioca era o principal alimento, por isso mesmo chamada pelos lusos de "pão da terra". A farinha de mandioca era consumida pura ou com carne, legumes e caldos, sendo transformada em pão, biscoito e mingau. Este último especialmente reservado a doentes e crianças. A mistura da mandioca ralada e espremida com um punhado de carimá, uma vez torrada em panelas de ferro, fornecia a chamada "farinha de guerra", mais um hábito da culinária indígena incorporado pelos lusos. Era usada nas viagens e expedições guerreiras, tornando-se, posteriormente, a principal ração dos bandeirantes.

Antes da introdução do feijão e do arroz no Brasil pelos portugueses, outros grãos acompanharam a mandioca à mesa. Um deles era o amendoim, cozido com a casca ou torrado sem ela. Era também aproveitado em doces e confeitos, substituindo as nozes e as castanhas das receitas europeias.

A caça ajudava igualmente a compor uma mesa farta, com capivaras, porcos-do-mato, veados, tatus, cotias e aves silvestres, além, é claro, da apreciada carne de anta. Juntava-se ao banquete a carne de peixe, como em Portugal, um dos alimentos mais populares entre os pobres. Pescados do mar e de água doce eram complementados por siris, mariscos, mexilhões e pelos caranguejos encontrados nos mangues.


Quitandeiras da Lapa, Henry Chamberlain

A enorme variedade de frutas de sabores considerados, então, exóticos também compunha o cardápio dos colonos portugueses: o caju, a banana, o mamão, a jaca, a jabuticaba, a laranja, o limão, o umbu e a predileta da época, o abacaxi, chamado de "ananás" pelos portugueses.

Ricas em vitaminas B e C, cuja carência, em Portugal e a bordo dos navios, fazia-se sentir intensamente, as frutas garantiam uma saúde em muitos aspectos melhor do que aquela observada entre a população do reino e de outras colônias.

Mesmo não possuindo saneamento básico, o fato de os moradores das cidades terem por hábito separar a latrina da casa contribuía para a não-difusão de doenças.

Para além de algumas doenças tropicais, uma das maiores preocupações no quesito saúde entre os lusos era o bicho-de-pé. Classificado pelos colonos como o inseto mais curioso, traiçoeiro e perigoso, o bicho-de-pé era muito temido. Desenvolvia-se nas casas térreas e quintais empoeirados, segundo os cronistas, atacando as pessoas pouco habituadas ao banho e à limpeza, podendo chegar ao extremo de provocar a amputação do pé a partir de sua infecção.

Mas o bicho-de-pé não era o único perigo a rondar os portugueses recém-chegados. Provocavam terror os vários tipos de cobra a rastejarem pelos matos, muitas das quais inadvertidamente invadiam as ruas das vilas. Eram sucuris, boiúnas e jibóias. Um perigo superdimensionado, já que raramente atacavam o homem.

Um foco real de temor eram as diversas espécies de onças negras, ruivas ou pintadas que atacavam desprevenidos, pulando das árvores e invadindo as casas em busca de alimentos. Só se detinham diante de manutenção constante de fogo aceso.

Muito mais perigosas que as formigas convencionais - que também invadiam as casas atrás de açúcar, mordendo as pessoas e causando queimaduras -, as saúvas não estavam presentes nas cidades, mas terminavam interferindo em seu cotidiano ao destruírem as roças de milho e mandioca e as árvores frutíferas que abasteciam as vilas e cidades. Gabriel Soares de Souza chamava as saúvas de "a praga do Brasil".

Quanto ao lazer, no início, as vilas e cidades não possuíam muitas opções, nada que ultrapassasse os festejos dos santos, os jogos de azar, a bebedeira e a fornicação com as indígenas ou negras escravizadas.

O fumo se propagou entre os colonos, a princípio, por seu poder curativo sobre feridas e bicheiras. Tronou-se vício, mas também um lazer, combinado com o espreguiçar em uma rede, ambos hábitos copiados dos indígenas.

Uma outra forma comum de divertimento era a tração exercida pelos gestos e sons dos papagaios, araras e macacos, animais que se tornaram bichos de estimação dos portugueses no Brasil.

Desembarcados em meio a esse ambiente idílico - que contava ainda com a tentação oferecida pela nudez inocente das indígenas -, quando o contrapunham à dura rotina no mar e ao difícil cotidiano no reino, muitos marujos se sentiam tentados a desertar. Queriam se juntar aos colonos e viver no Brasil.

Outros optaram por cumprir seu tempo de serviço e juntar recursos para tentar a sorte nas novas terras, onde se vivia com simplicidade, mas com a possibilidade de ser mais feliz do que na Europa.

A divulgação das pujanças da Terra de Santa Cruz entre os portugueses na África e na Índia contribuiu ativamente para virar o jogo e transformar o Brasil na nova menina-dos-olhos da Coroa e em lugar idealizado para onde se voltavam os sonhos das pessoas comuns.

PESTANA, Fábio. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 202-206.

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