"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 27 de setembro de 2014

Anticolonialismo na África

A revolta do Cairo, Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson

A insatisfação diante do estrangeiro se fazia sentir em vários níveis e em diferentes modalidades, desde revoltas sociais, movimentos religiosos, até a organização de partidos e sindicatos que pudessem representar o anseio das populações coloniais.

O preço do domínio colonial foi ter que conviver todo o tempo num clima de tensão latente, e as revoltas ocorriam por diferentes motivos. Houve levantes contra a fixação de impostos nas comunidades de aldeia dos povos Mendes, em Serra Leoa (1889), dos povos acholis, em Uganda (1911), dos povos holis, no Daomé (1914, 1920); contra a requisição de mão de obra e a prestação de trabalho forçado nas comunidades dos povos majanga, no Congo (1893-1894) e em toda a região do rio Zambeze. Mas esses eram movimentos localizados, expressavam insatisfação mas não punham em causa o funcionamento global do sistema de exploração.

Muitas vezes, as manifestações religiosas canalizaram a insatisfação coletiva a se tornaram veículos privilegiados de resistência social. Não dispondo de quadros políticos ou ideológicos para conceitualizar e criticar a colonização, os africanos valeram-se do discurso de cunho religioso para demonstrar sua inconformidade e materializar formas concretas de contestação.

Os mais freqüentes foram os movimentos messiânicos de matriz muçulmana e de matriz cristã.

Nas áreas de influência muçulmana da África Ocidental, um foco importante de contestação na fase inicial da colonização proveio da confraria dos múridas que, sob a liderança de marabus, questionaram a presença francesa já no fim do século XIX. Movimentos similares ocorreram na Mauritânia e na Somália.

Os feiticeiros e sacerdotisas, os fazedores de chuva e xamãs das religiões tradicionais canalizavam a angústia dos conterrâneos provocada pela presença estrangeira, e em alguns casos deram origem a formas de contestação muito radicais. Como o movimento denominado Mumbo, que se desenvolveu no Quênia a partir de 1913. Baseava-se na crença difundida pelos feiticeiros locais de que uma grande serpente teria anunciado o fim próximo dos brancos.

Outro foco de contestação tinha origem no discurso cristão, tal qual o cristianismo tinha se desenvolvido na África. Não um cristianismo alimentado pelos preceitos filosóficos, doutrinais e litúrgicos europeus, mas uma crença superficial que se fundiu com antigas tradições das religiões ancestrais africanas para dar origem a formas marcadas por um profundo sentido messiânico.

Entre os movimentos religiosos de cristianismo negro-africano, nenhum provocou tal impacto quanto o kimbanguismo. Ele teve origem no Congo Belga, inspirado nas pregações de um profeta negro chamado Simão Kimbangu (1887-1951), a quem se atribuía a capacidade de realizar milagres e anunciar o futuro. O termo kimbangu significa justamente “aquele que revela o sentido das coisas ocultas”.

Kimbangu anunciava aos “irmãos negros” uma nova aliança com Deus, mesclando aos ensinamentos bíblicos elementos dos cultos de possessão em honra aos antepassados, e elementos mágicos. A prisão, condenação e deportação do líder em 1921 e a perseguição e prisão de cerca de 37 mil adeptos apenas fizeram crescer a aura do martírio e fortalecer o caráter salvacionista do movimento que, de resto, se mantinha forte no início da década de 1950. A Igreja kimbanguista continua a ter milhares de adeptos na República Democrática do Congo e em Angola, na Europa e nos Estados Unidos.

Tudo indica que o impacto provocado pelas duas guerras mundiais não foi pequeno para os africanos, que dela participaram, na África e em outras frentes de combate. Nos domínios franceses, soldados africanos passaram a ser recrutados de modo sistemático para servir ao exército desde a Primeira Guerra Mundial. Eles participaram dos conflitos travados dentro do próprio continente (nos Camarões, Togo e na África Oriental, em conflito contra os exércitos recrutados pelos alemães), mas também foram deslocados para a Europa, onde atuaram não só como atiradores, mas também como parte da mão de obra necessária para a logística, como carregadores e reparadores de armas e munições.

Nas duas guerras mundiais, foram mobilizados mais de 250 mil homens nas colônias francesas, e 146 mil na África Ocidental britânica. Parte desses efetivos foi enviada na Segunda Guerra Mundial para lutar em territórios conflagrados na Ásia, experiência que viria a se repetir, décadas depois, nos domínios franceses, durante a Guerra da Indochina.

As guerras promovidas pelos Estados europeus provocaram uma mudança profunda no comportamento dos africanos. Elas alteraram a imagem do branco que até então, valendo-se da força armada e da manipulação ideológica, tinha construído uma imagem de superioridade racial e de um ser intocável. A convocação dos africanos para integrar os exércitos europeus, mesmo que na condição de auxiliares, pôs em causa uma regra que até então tinha sido mantida, pois aos negros foi autorizado atirar e matar os brancos. Além disso, ao conviverem com os brancos no front, os negros descobriram suas fraquezas, seus defeitos, enfim, reconheceram sua humanidade: que eram homens como quaisquer outros. Ao regressarem às suas terras, levaram consigo essas experiências e contribuíram para a organização da luta anticolonial.

Dentro da Europa, movimentos político-sociais de esquerda, sobretudo o movimento comunista, incluíam em sua bandeira de luta pontos específicos contrários ao imperialismo e ao colonialismo. Para os africanos que tomaram contato com tais movimentos, uma das maiores dificuldades era a inexistência na África de um contingente expressivo de proletários, de operários, a quem na ideologia marxista estaria reservado lugar proeminente na luta política e na preparação de uma revolução. Faltava também ali um movimento camponês com alguma estruturação que permitisse aos líderes a organização de um movimento de libertação do tipo promovido pelo líder chinês Mao Tse-tung nos anos 1930-1940.

Ainda assim, não foram poucos os estudantes e intelectuais africanos que ingressaram nos partidos de esquerda e começaram a se posicionar, dentro da própria Europa, nos movimentos de contestação aos regimes associados ao imperialismo e ao colonialismo.

A invasão da Etiópia pelos italianos a serviço do regime fascista de Benito Mussolini, em 1935, foi severamente condenada por organizações integradas por africanos. Não obstante, a ocupação durou até 194, quando as forças fascistas começaram a sofrer derrotas dentro e fora da Europa.

Esse acontecimento constitui um divisor de águas na história da consciência africana. A Etiópia era o mais antigo Estado formado no interior do continente, o único que conseguira até então manter sua independência e ser reconhecido no círculo das grandes nações. Era um símbolo positivo, uma espécie de bastião da soberania africana. Em várias partes da Europa e na América, as elites negras mobilizaram-se e organizaram uma vasta campanha de protesto contra a Itália e um boicote aos produtos italianos. Em toda parte aumentaram as pressões sobre os impérios coloniais e seus agentes.

A crise etíope revelou a dimensão da impunidade, a arrogância dos brancos e o tratamento desigual reservado aos negros pelos representantes de instituições internacionais, como a Liga das Nações – que pouco fez para impedir a ocupação daquele país soberano. Por outro lado, contribuiu para a conscientização política de membros das elites coloniais, que passaram a tomar parte mais ativa nas formas de contestação ao colonialismo.

A emergência dessa consciência africana deve muito a movimentos intelectuais nascidos na América do Norte e na América Central, dos escritos de intelectuais da diáspora negra. Desde os anos 1920, as obras do jamaicano Marcus Harvey (1887-1940) alimentavam o mito do regresso à Mãe-África pelos afrodescendentes, integrando-se numa perspectiva de valorização da “raça negra”. Maior impacto teriam as ideias do escritor norte-americano William Edward Burghart Du Bois (1868-1963), que defendia a igualdade das raças e a coesão e união dos povos negros espalhados pelos vários continentes, no combate às desigualdades raciais e aos abusos do colonialismo. Foi assim que, em 1919, realizava-se em Paris o primeiro Congresso Pan-Africano, ponto de partida do movimento conhecido como pan-africanismo.

O pan-africanismo ganhou importantes adeptos nas elites negras espalhadas na América do Norte e na Europa e teve grande influência num movimento que viria a ter papel significativo no contexto das independências africanas: o movimento da negritude, nascido em 1939. Este resultou do conjunto de ideias de valorização da cultura negra e da profunda crítica ao colonialismo, em obras de autores como o haitiano Jean-Price Mars, o antilhano Franz Fanon, o martinicano Aimeé Cesaire e o senegalês Leopold Sedar Senghor (1906-2001) – que viria a ser algumas mais tarde o primeiro presidente do Senegal.

Tais ideias circulavam em diferentes jornais e revistas que tiveram por objetivo congregar as populações de africanos e afrodescendentes, como L’Étudiant Noir, L’Action coloniale e Le libere, na França; Negro World, New Times and Ethiopia News, The Crusader, na Inglaterra; O Negro ou O Correio da África, em Portugal. Papel de primeiro plano seria reservado à revista Presence Africaine, fundada em Paris no ano de 1947 pelo filósofo senegalês Alioune Diop. Ela se distinguiria nos anos 1950-1960 como canal de difusão da história e da filosofia africana, da negritude e do pan-africanismo na Europa.


MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 154-158.

NOTA: O texto "Anticolonialismo na África" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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