Baskaks, Sergey Vasilyevich Ivanov
Desde a Antiguidade, hordas nômades circulavam na imensa zona das estepes que cobre uma importante porção da Eurásia. Seus idiomas ligavam-nos à família lingüística altaica ou turco-mongólica. Mas seu próprio habitat impunha há milênios um modo de vida pastoril que parecia estranhamente rudimentar ao lado das civilizações sedentárias que lhes eram contemporâneas. Eternamente atraídas pelos países cultivados que bordejam a estepe, suas tribos aglomeravam-se lentamente, contentando-se durante certo tempo em realizar nas vizinhanças brutais e fulminantes razias. Depois, bruscamente, todo um conjunto de hordas agrupava-se para uma terrificante invasão que provocava a fuga das populações agrícolas, cujas culturas, logo recaídas no baldio, eram usadas como pastos por nômades preocupados unicamente com suas montarias e rebanhos. Toda a história dos países vizinhos da estepe eurasiática é constituída destes vaivens – os nômades levando a estepe para o interior nas terras cultivadas, e os lavradores expandindo suas culturas até os limites da estepe. O nomadismo relativo das populações dos confins e a confusão das tribos nos terrenos de percurso facilitaram os contatos entre nômades e sedentários. Embora fiéis à rude existência de cavaleiros e pastores, os homens da estepe sentiam-se seduzidos pela opulência e o refinamento das civilizações evoluídas: e, embora encarniçando-se em destruí-las, alguns se deixaram ofuscar a ponto de se adaptar, como neste caso, à civilização sedentária: uns se achinesavam como os mongóis kitates, que se apoderaram no século X de uma parte da China do Norte e fixaram sua residência em Pequim; outros se iranizavam, tais como os turcos uigores que, convertidos ao maniqueísmo e iniciados nas letras, se tornaram os verdadeiros educadores dos demais estados turco-mongóis e recusaram voltar à vida nômade.
Para as grandes potências que
julgaram de boa política solicitar sua ajuda ou que se viram constrangidas a
tanto, foram às vezes aliados leais e mais frequentemente constituíram uma
ameaça tão grave como persistente: especializados em ataques fulminantes,
graças à rapidez de seus pequenos cavalos, deixando à retaguarda apenas ruínas
e destruições totais, eram terríveis adversários. Não haviam conseguido ainda,
por certo, tornar coesos seus agrupamentos de tribos disseminados na estepe.
Mas fundaram uma série de fugazes impérios, em que se alternaram ao curso dos
séculos a hegemonia turca e a hegemonia mongólica, e com freqüência os menos
civilizados destruíam os reinos que os mais evoluídos construíam. Uma rápida
recordação desta história, desde as grandes invasões do século IV, cujos
prolongamentos atingiram a Europa com Átila e a Índia com Múracula, faz-se aqui
necessária, ajudando a compreender não só a gênese, mas também a originalidade
da obra de Gengis-Cã.
Batalha de Kulikovo. Artista
desconhecido
No século VI, três grandes grupos
desdobravam-se da China às bocas do Don: os juan-juan na Mongólia, da
Mandchúria até Turfan; os hunos heftalitos, do norte da região Carachar a Merv,
e do Aral ao Pendjab; os hunos da Europa, provavelmente de raça turca, em torno
do Mar de Azov e da embocadura do Don. Mas, por volta de 550, os juan-juan e os
heftalitos do Turquestão foram rechaçados pelos t’u-kieus, fundadores do
primeiro império nômade de organização mais estável. É cerdade que os t’u-kiues
se dividiram em dois reinos gêmeos, cujo território se estendia da Mandchúria
ao Corassã; esta divisão, tanto quanto seu tradicional espírito de anarquia,
determinou sua fraqueza. Os do Oeste tinham uma fronteira comum com a Pérsia
sassânida, contra a qual Bizâncio solicitou seu auxílio. Mantiveram-se até que
a poderosa dinastia chinesa dos t’ang, depois de esmagar seus irmãos da
Mongólia (744), os sujeitou. Outro império turco substituiu-os, o dos uigures
que, estabelecidos ao sul do Lago Baical, com Cara-balgassum como capital,
dominaram igualmente, em torno de Turfan, parte do Turquestão. Transformados em
sedentários, debilitados porque se tornavam doravante demasiado civilizados, os
uigures foram por seu turno despojados de sua capital, em 840, pelos
quirguises, turcos que permaneciam selvagens. Entrementes, os avaros sucederam
aos hunos nas estepes russas e fixaram-se entre o Dniester e o Danúbio,
enquanto no outro extremo das estepes, turcos achinesados, os cha-t’os,
permabulavam nas cercanias de Ha-mi e, aproveitando o enfraquecimento dos
t’ang, apoderaram-se do Nordeste da China (808). E, até cerca de 920, os
quirguises, muito rudes, devolveram a Mongólia à barbárie, enquanto os uigures,
apesar de sua debilidade, mantinham-se no Turquestão.
No início do século X, os
quirguises foram por seu turno expulsos e aniquilados por outros bárbaros de
raça mongólica, os kitates. Estes, que já haviam tentado há três séculos
infiltrar-se em território chinês, mas tinham sido severamente rechaçados pelos
t’ang, aproveitaram agora o desmoronamento do poderio chinês para penetrar, sob
a direção de um chefe audacioso, o interior da Grande Muralha e para elevar ao
trono imperial um general chinês que lhes comprara a proteção. Era o prelúdio de
um estabelecimento mais maciço dos bárbaros na China, fato que possibilitaria a
sua conquista pelas hordas. Pois a instalação dos kitates foi duradoura: estes
se achinesaram, tomaram o nome chinês de kin (ouro) e, sem a menor perda de
combatividade, inquietaram durante dois séculos as fronteiras da China do Sul.
Sua história é, pois, assaz diferente da de seus contemporâneos magiares, os
quais [...], alcançando a Europa Central no fim do século IX, empreenderam
durante 60 anos incursões destruidoras, mas intermitentes, em diversas regiões
do Ocidente cristão, antes de serem finalmente rechaçados para a planície
danubiana, fixados ao solo e enfim cristalizados, servindo doravante de muralha
da cristandade contra as últimas vagas das invasões nômades que refluíam sobre
a Europa. Outros bárbaros, com efeito, acabavam de instalar-se entre o Volga e
o Cáspio: nesta área, onde se encontravam mercadores bizantinos e árabes,
compradores de peles, onde se asilaram também muitos judeus que fugiram das
perseguições do imperador bizantino Romano Lacapena, os cazares converteram-se,
segundo parece, ao judaísmo. Repelidos em 965 por um príncipe russo de Kiev e
depois esmagados (1016) pelo Imperador Basílio II, só desapareceram da história
em 1030. Neste ínterim, os turcos ocidentais ou carcânidas batiam às fronteiras
do Estado muçulmano dos sassânidas – estes iranianos que exerceram [...],
vasto, mas efêmero domínio sobre a Bactriana, e Transoxiana, o Kvarism, o
Cotassã e o Seistã – e arrebataram-lhes a Transoxiana juntando-lhe a Cachagaria
que turquificaram ao introduzir ali o Islã, ao qual estavam convertidos.
Batalha de Homs, 1281. Hayton de Coricos
Após o desaparecimento dos
cazares, kitates e carcãnidas conservaram-se em suas posições durante a maior
parte do século XI. Depois, cerca de 1071, os carcânidas foram absorvidos pelo
império seldjúcida, cujos fundadores, oriundos de uma horda sem passado, os
oguzes, acabavam de converter-se ao Islã: sua história, que traçamos,
destaca-se doravante da do mundo nômade, embora o velho fundo turcomano
reapareça com freqüência em seu comportamento. Ao mesmo tempo, uma tribo
tibetana instalava-se no Ordos e no Alacham; sob o nome de si-hias, estes
outros nômades submetiam o Noroeste da China enquanto os kitates conservavam
sua parte Nordeste.
É ainda nos dois extremos do mundo
das estepes que ocorrem os deslocamentos de hordas nômades no decurso do século
XII. Nas planícies da Rússia Meridional, os cazares são substituídos pelos
perchenegues, que constituíram [...] grande perigo para as fronteiras
danubianas do império bizantino, até seu aniquilamento pelo Imperador João
Comneno [...]. Em seguida vieram os oguzes, que também assolaram os Bálcãs e
aos quais sucederam os quiptchaques. A China dos song de seu lado, via-se
ameaçada não só pelos kitates ao nordeste, como pelos si-hias, ao noroeste. O
Imperador Huei-tsong, mais esteta e poeta do que político, cometeu o erro
irreparável, na tentativa de expulsar os kitates de Pequim, de chamar os
djurtchates, povo tangus aparentado com os atuais mandchus. Esses semibárbaros
não se contentaram com a Mongólia interior e a Mandchúria, que Huei-tsong lhes
destinara. Tendo destruído o império kitakes, os cruais, adaptados à vida
chinesa, já estavam bastante assentados e ocuparam toda a China do Norte,
levando suas expedições até o interior do território song de onde só foram
repelidos a custo.
Guerreiros montados perseguem inimigos. Ilustração de Rashid-ad-Din's Gami'
at-tawarih. Tabriz. Século XIV
Na aurora do século XIII, à véspera
do gigantesco empreendimento de Gengis-Cã, os djurchates, ocupam, portanto,
toda a Mandchúria e a China do Norte, enquanto os si-hias mantêm os territórios
do Noroeste. Os uigures, que se tornaram sedentários, radicam-se no osásis do
Tarim, de Cuca a Turfan, cuja prosperidade foi alterada, ao que parece, pelo
assoreamento. Os cara-kitais, mongóis achinesados e cristianizados, vagueiam em
todo o resto do Turquestão, de Há-mi ao Aral e a Cojend, estendendo seu
protetorado do Alto Ienissei até o Amu—Daria. Para além deste último rio, o
principado dos kvarismianos, turcos muçulmanos, substituiu o dos seldjúcidas
sobre um imenso território que compreende, afora o Kvarism propriamente dito, o
Corassã, a região de Cabul e Gasna, a Pérsia inteira até a Geórgia. Enfim, todo
o Norte da Índia cai em poder dos gúridas, afeganes vencedores dos gasnévidas. O
mundo turco engloba todo o Oriente Próximo muçulmano; os turcos-mongóis
estendem-se ao longo da Rússia e dos Bálcãs, até as planícies danubianas.
Tal é o espantoso mosaico das
populações nômades – algumas das quais se tornaram parcialmente sedentárias –
no momento em que aparece Gengis-Cã em incessante movimento há séculos, não
possui qualquer coesão real, sendo formada de reinos e impérios movediços e
relativamente efêmeros. A unidade lingüística não compensa a miscelânea das
crenças e das formações políticas; às vezes achinesados, outras iranizados ou
fiéis às tradições turco-mongóis, seus povos converteram-se, ao acaso das
peregrinações, quer ao budismo ou ao confucionismo, quer ao cristianismo
nestoriano, ao maniqueísmo, o islamismo ou ao judaísmo. Suas alianças são
fugazes, e, refratários aos progressos das civilizações, conservam na maioria
os hábitos bárbaros.
PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal,
do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994. p. 120-124. (História geral das civilizações, 7).
NOTA: O texto "O passado do mundo nômade" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.
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