"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 1 de julho de 2014

O passado do mundo nômade

Baskaks, Sergey Vasilyevich Ivanov

Desde a Antiguidade, hordas nômades circulavam na imensa zona das estepes que cobre uma importante porção da Eurásia. Seus idiomas ligavam-nos à família lingüística altaica ou turco-mongólica. Mas seu próprio habitat impunha há milênios um modo de vida pastoril que parecia estranhamente rudimentar ao lado das civilizações sedentárias que lhes eram contemporâneas. Eternamente atraídas pelos países cultivados que bordejam a estepe, suas tribos aglomeravam-se lentamente, contentando-se durante certo tempo em realizar nas vizinhanças brutais e fulminantes razias. Depois, bruscamente, todo um conjunto de hordas agrupava-se para uma terrificante invasão que provocava a fuga das populações agrícolas, cujas culturas, logo recaídas no baldio, eram usadas como pastos por nômades preocupados unicamente com suas montarias e rebanhos. Toda a história dos países vizinhos da estepe eurasiática é constituída destes vaivens – os nômades levando a estepe para o interior nas terras cultivadas, e os lavradores expandindo suas culturas até os limites da estepe. O nomadismo relativo das populações dos confins e a confusão das tribos nos terrenos de percurso facilitaram os contatos entre nômades e sedentários. Embora fiéis à rude existência de cavaleiros e pastores, os homens da estepe sentiam-se seduzidos pela opulência e o refinamento das civilizações evoluídas: e, embora encarniçando-se em destruí-las, alguns se deixaram ofuscar a ponto de se adaptar, como neste caso, à civilização sedentária: uns se achinesavam como os mongóis kitates, que se apoderaram no século X de uma parte da China do Norte e fixaram sua residência em Pequim; outros se iranizavam, tais como os turcos uigores que, convertidos ao maniqueísmo e iniciados nas letras, se tornaram os verdadeiros educadores dos demais estados turco-mongóis e recusaram voltar à vida nômade.

Para as grandes potências que julgaram de boa política solicitar sua ajuda ou que se viram constrangidas a tanto, foram às vezes aliados leais e mais frequentemente constituíram uma ameaça tão grave como persistente: especializados em ataques fulminantes, graças à rapidez de seus pequenos cavalos, deixando à retaguarda apenas ruínas e destruições totais, eram terríveis adversários. Não haviam conseguido ainda, por certo, tornar coesos seus agrupamentos de tribos disseminados na estepe. Mas fundaram uma série de fugazes impérios, em que se alternaram ao curso dos séculos a hegemonia turca e a hegemonia mongólica, e com freqüência os menos civilizados destruíam os reinos que os mais evoluídos construíam. Uma rápida recordação desta história, desde as grandes invasões do século IV, cujos prolongamentos atingiram a Europa com Átila e a Índia com Múracula, faz-se aqui necessária, ajudando a compreender não só a gênese, mas também a originalidade da obra de Gengis-Cã.


Batalha de Kulikovo. Artista desconhecido

No século VI, três grandes grupos desdobravam-se da China às bocas do Don: os juan-juan na Mongólia, da Mandchúria até Turfan; os hunos heftalitos, do norte da região Carachar a Merv, e do Aral ao Pendjab; os hunos da Europa, provavelmente de raça turca, em torno do Mar de Azov e da embocadura do Don. Mas, por volta de 550, os juan-juan e os heftalitos do Turquestão foram rechaçados pelos t’u-kieus, fundadores do primeiro império nômade de organização mais estável. É cerdade que os t’u-kiues se dividiram em dois reinos gêmeos, cujo território se estendia da Mandchúria ao Corassã; esta divisão, tanto quanto seu tradicional espírito de anarquia, determinou sua fraqueza. Os do Oeste tinham uma fronteira comum com a Pérsia sassânida, contra a qual Bizâncio solicitou seu auxílio. Mantiveram-se até que a poderosa dinastia chinesa dos t’ang, depois de esmagar seus irmãos da Mongólia (744), os sujeitou. Outro império turco substituiu-os, o dos uigures que, estabelecidos ao sul do Lago Baical, com Cara-balgassum como capital, dominaram igualmente, em torno de Turfan, parte do Turquestão. Transformados em sedentários, debilitados porque se tornavam doravante demasiado civilizados, os uigures foram por seu turno despojados de sua capital, em 840, pelos quirguises, turcos que permaneciam selvagens. Entrementes, os avaros sucederam aos hunos nas estepes russas e fixaram-se entre o Dniester e o Danúbio, enquanto no outro extremo das estepes, turcos achinesados, os cha-t’os, permabulavam nas cercanias de Ha-mi e, aproveitando o enfraquecimento dos t’ang, apoderaram-se do Nordeste da China (808). E, até cerca de 920, os quirguises, muito rudes, devolveram a Mongólia à barbárie, enquanto os uigures, apesar de sua debilidade, mantinham-se no Turquestão.

No início do século X, os quirguises foram por seu turno expulsos e aniquilados por outros bárbaros de raça mongólica, os kitates. Estes, que já haviam tentado há três séculos infiltrar-se em território chinês, mas tinham sido severamente rechaçados pelos t’ang, aproveitaram agora o desmoronamento do poderio chinês para penetrar, sob a direção de um chefe audacioso, o interior da Grande Muralha e para elevar ao trono imperial um general chinês que lhes comprara a proteção. Era o prelúdio de um estabelecimento mais maciço dos bárbaros na China, fato que possibilitaria a sua conquista pelas hordas. Pois a instalação dos kitates foi duradoura: estes se achinesaram, tomaram o nome chinês de kin (ouro) e, sem a menor perda de combatividade, inquietaram durante dois séculos as fronteiras da China do Sul. Sua história é, pois, assaz diferente da de seus contemporâneos magiares, os quais [...], alcançando a Europa Central no fim do século IX, empreenderam durante 60 anos incursões destruidoras, mas intermitentes, em diversas regiões do Ocidente cristão, antes de serem finalmente rechaçados para a planície danubiana, fixados ao solo e enfim cristalizados, servindo doravante de muralha da cristandade contra as últimas vagas das invasões nômades que refluíam sobre a Europa. Outros bárbaros, com efeito, acabavam de instalar-se entre o Volga e o Cáspio: nesta área, onde se encontravam mercadores bizantinos e árabes, compradores de peles, onde se asilaram também muitos judeus que fugiram das perseguições do imperador bizantino Romano Lacapena, os cazares converteram-se, segundo parece, ao judaísmo. Repelidos em 965 por um príncipe russo de Kiev e depois esmagados (1016) pelo Imperador Basílio II, só desapareceram da história em 1030. Neste ínterim, os turcos ocidentais ou carcânidas batiam às fronteiras do Estado muçulmano dos sassânidas – estes iranianos que exerceram [...], vasto, mas efêmero domínio sobre a Bactriana, e Transoxiana, o Kvarism, o Cotassã e o Seistã – e arrebataram-lhes a Transoxiana juntando-lhe a Cachagaria que turquificaram ao introduzir ali o Islã, ao qual estavam convertidos.


Batalha de Homs, 1281. Hayton de Coricos

Após o desaparecimento dos cazares, kitates e carcãnidas conservaram-se em suas posições durante a maior parte do século XI. Depois, cerca de 1071, os carcânidas foram absorvidos pelo império seldjúcida, cujos fundadores, oriundos de uma horda sem passado, os oguzes, acabavam de converter-se ao Islã: sua história, que traçamos, destaca-se doravante da do mundo nômade, embora o velho fundo turcomano reapareça com freqüência em seu comportamento. Ao mesmo tempo, uma tribo tibetana instalava-se no Ordos e no Alacham; sob o nome de si-hias, estes outros nômades submetiam o Noroeste da China enquanto os kitates conservavam sua parte Nordeste.

É ainda nos dois extremos do mundo das estepes que ocorrem os deslocamentos de hordas nômades no decurso do século XII. Nas planícies da Rússia Meridional, os cazares são substituídos pelos perchenegues, que constituíram [...] grande perigo para as fronteiras danubianas do império bizantino, até seu aniquilamento pelo Imperador João Comneno [...]. Em seguida vieram os oguzes, que também assolaram os Bálcãs e aos quais sucederam os quiptchaques. A China dos song de seu lado, via-se ameaçada não só pelos kitates ao nordeste, como pelos si-hias, ao noroeste. O Imperador Huei-tsong, mais esteta e poeta do que político, cometeu o erro irreparável, na tentativa de expulsar os kitates de Pequim, de chamar os djurtchates, povo tangus aparentado com os atuais mandchus. Esses semibárbaros não se contentaram com a Mongólia interior e a Mandchúria, que Huei-tsong lhes destinara. Tendo destruído o império kitakes, os cruais, adaptados à vida chinesa, já estavam bastante assentados e ocuparam toda a China do Norte, levando suas expedições até o interior do território song de onde só foram repelidos a custo.


Guerreiros montados perseguem inimigos. Ilustração de Rashid-ad-Din's Gami' at-tawarih. Tabriz. Século XIV

Na aurora do século XIII, à véspera do gigantesco empreendimento de Gengis-Cã, os djurchates, ocupam, portanto, toda a Mandchúria e a China do Norte, enquanto os si-hias mantêm os territórios do Noroeste. Os uigures, que se tornaram sedentários, radicam-se no osásis do Tarim, de Cuca a Turfan, cuja prosperidade foi alterada, ao que parece, pelo assoreamento. Os cara-kitais, mongóis achinesados e cristianizados, vagueiam em todo o resto do Turquestão, de Há-mi ao Aral e a Cojend, estendendo seu protetorado do Alto Ienissei até o Amu—Daria. Para além deste último rio, o principado dos kvarismianos, turcos muçulmanos, substituiu o dos seldjúcidas sobre um imenso território que compreende, afora o Kvarism propriamente dito, o Corassã, a região de Cabul e Gasna, a Pérsia inteira até a Geórgia. Enfim, todo o Norte da Índia cai em poder dos gúridas, afeganes vencedores dos gasnévidas. O mundo turco engloba todo o Oriente Próximo muçulmano; os turcos-mongóis estendem-se ao longo da Rússia e dos Bálcãs, até as planícies danubianas.

Tal é o espantoso mosaico das populações nômades – algumas das quais se tornaram parcialmente sedentárias – no momento em que aparece Gengis-Cã em incessante movimento há séculos, não possui qualquer coesão real, sendo formada de reinos e impérios movediços e relativamente efêmeros. A unidade lingüística não compensa a miscelânea das crenças e das formações políticas; às vezes achinesados, outras iranizados ou fiéis às tradições turco-mongóis, seus povos converteram-se, ao acaso das peregrinações, quer ao budismo ou ao confucionismo, quer ao cristianismo nestoriano, ao maniqueísmo, o islamismo ou ao judaísmo. Suas alianças são fugazes, e, refratários aos progressos das civilizações, conservam na maioria os hábitos bárbaros.

PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 120-124. (História geral das civilizações, 7).

NOTA: O texto "O passado do mundo nômade" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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