"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 14 de julho de 2014

O Império Romano sob os Antoninos (96-192)

Após o assassinato de Domiciano, o Senado, com o concurso dos pretorianos, levou ao império um dos seus, o aristocrata romano Nerva (96-98), que empreendeu uma política democrática. Desejoso de acalmar a apreensão das legiões, cada vez mais recrutadas no escalão das províncias, Nerva não escolheu sucessor na sua família. Introduziu o princípio da adoção do mais digno, e a sua escolha recaiu sobre o general Trajano (98-117).

Dinastia antonina


Nerva
96 a 98
Trajano
98 a 117
Adriano
117 a 138
Antonino, o Pio
138 a 161
Marco Aurélio
161 a 180
Cômodo
180 a 192

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 141.

Com Trajano, o poder imperial foi definitivamente arrancado de Roma. O império deixou de ser romano para tornar-se realmente mediterrâneo. Os imperadores, a partir de então, foram provinciais.


Um amante da arte romana, Sir Lawrence Alma-Tadema

"Com um comando cosmopolita [...] o império estava sempre derrubando barreiras entre os povos dominados. Continuou firme a romanização das famílias importantes nas províncias. Jovens gauleses, sírios, africanos e ilírios, todos aprendiam latim e grego, usavam roupas como as dos romanos e aprendiam a considerar a Romanitas - a herança romana - algo de que deviam se orgulhar. Enquanto isso, os funcionários civis e o exército mantinham a paz respeitando os sentimentos locais, desde que os impostos entrassem regularmente." (ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 231.)

Trajano ampliou o Senado, introduzindo nele gregos e africanos. Mas o papel do Senado passou a ser exclusivamente consultivo. Ratificando a adoção do herdeiro presuntivo do imperador, dava, todavia, ao poder imperial a legitimidade indispensável à sua estabilidade.

É verdade que essa legitimidade só tinha valor para Roma, e não para o império. Eis por que Trajano e, depois dele, os Antoninos, procuraram assentar o seu poder sobre a legitimidade por direito divino, de que gozavam no Egito.

Trajano fez-se representar com os atributos de Hércules, o deus de Gades; Adriano (117-138) assumiu o título de “Olímpico”, reservado a Júpiter, e adotou Sarapis, o deus egípcio, como deus oficial do império. Ao mesmo tempo, seguiu uma política de absolutismo esclarecido, que reavivou a oposição do Senado.

Adriano visitando uma oficina de cerâmica romano-britânica, Sir. Lawrence Alma-Tadema

Antonino (138-161) e Marco Aurélio (161-180), para evitar o conflito, voltaram aos princípios constitucionais. Marco Aurélio quis adaptá-los à monarquia hereditária. Nomeou herdeiro seu filho Cômodo (180-192).

Cômodo reafirmou o caráter de direito divino da monarquia. O imperador apresentou-se como mediador entre a divindade e os homens. Estes, sendo iguais perante o grande deus criador, deviam ser iguais diante do absolutismo divino do imperador. Ameaçado, ao mesmo tempo, em suas prerrogativas políticas e sociais, o Senado reagiu violentamente. O imperador respondeu com o terror. A política de apaziguamento desapareceu na guerra civil, que redundou no assassínio de Cômodo.

O absolutismo divino dos Antoninos foi acompanhado, como ocorreu com o absolutismo egípcio, de uma política de justiça e igualdade. O funcionalismo organizou-se de acordo com as regras do direito egípcio. A hierarquia das funções substituiu a hierarquia das classes, e o valor individual substituiu os direitos adquiridos pelo nascimento.

A organização do poder central foi acompanhado da unificação das instituições. O imperador organizou a jurisdição criminal em princípios uniformes para todos os habitantes do império. Instaurou-se a apelação. Criou-se uma jurisdição contenciosa, calcada no modelo egípcio, para garantir os direitos dos administrados em relação ao Estado. Unificou-se e humanizou-se o processo. O direito romano foi codificado pela primeira vez (Edito perpétuo de Adriano). A política social desenvolveu-se, demagógica em Roma, porém mais orientada para a atenuação real da miséria nas províncias.

Reapareceram as concepções do direito natural que o Egito conhecera no 14º século a.C. Os princípios de autonomia dos governos das cidades foram uniformizados e generalizados. Em toda a parte se introduziu a nomeação dos magistrados pela burguesia rica. Acima das cidades, as assembleias provinciais faziam solicitações e controlavam a gestão dos governadores de províncias.

O equilíbrio entre o imperador e as diversas classes da população assegurava, ao mesmo tempo, a unidade do império, a liberdade dos cidadãos e a proteção dos deserdados.

Escultores na antiga Roma, Sir Lawrence Alma-Tadema

O mundo mediterrâneo jamais viveu sob instituições tão liberais. A vida espiritual voltou a conhecer em Roma uma dignidade magnífica. A preocupação do bem público, a livre discussão da política imperial inspiraram a literatura. “Ordenas que sejamos livres”, diz Plínio, o Moço, a Trajano, “e assim fazes de nós homens e cidadãos”. A elite grega retomou, com Plutarco, o caminho de Roma, onde Dion de Prusa publicou a recusa dos países helenizados de aceitarem ainda, no futuro, um governo que concebesse o império como terra de exploração em benefício de Roma. Essa renovação intelectual, entretanto, procurava antes vulgarizar do que criar. O grande centro científico continuava a ser Alexandria, onde Ptolomeu formulava, na sua geografia, as teorias que só seriam ultrapassadas por Copérnico, e onde Galeno fazia a súmula da ciência médica da Antiguidade. Inspirando-se nas fontes helenísticas, Roma levou às províncias ocidentais latinizadas a aquisição de 35 séculos de civilização greco-oriental.

Ao passo que a política dos imperadores visava a proteger a classe média, na qual repousavam as instituições do império, o domínio cada vez mais tirânico do fisco exercia profunda influência em sentido contrário. O capitalismo de Estado, instaurado pela exploração direta dos domínios estatais pelo fisco, engendrou os mesmos males que o capitalismo particular. Introduziu, na África, desde o 2º século, e generalizou em todo o império, desde o fim do 3º século, o sistema dos arrendamentos a longo prazo, e até hereditários – como no Egito – e a solidariedade de aldeia imposta aos agricultores para o pagamento das rendas devidas ao fisco. Entravadas pelo capitalismo de Estado, as medidas tomadas para favorecer a classe rural foram todas inoperantes. A pequena propriedade desapareceu diante da industrialização da agricultura. O capitalismo de Estado redundaria na escravização da classe rural, provocando uma revolta de camponeses no Egito (2º século) e preparando uma crise rural em todo o império.

O empobrecimento da classe rural acentuou, no 2º século, a crise de superprodução que se seguiu ao impulso industrial, provocado, no 1º século, pelo aparelhamento das províncias ocidentais e pelo retorno da paz. Submergida pelo trabalho servil, a Itália adormeceu numa decadência econômica. Roma, que se tornara a cidade mais populosa do mundo, mas que não exercia atividade econômica alguma, perdeu a direção da economia imperial. Deixou de governar para gozar.

A ausência, nas províncias ocidentais, de produções capazes de suprir à decadência industrial do Egito, a fim de alimentar o comércio do império com o Extremo Oriente tornava deficitário esse comércio. Os seus verdadeiros beneficiários se achavam fora do império; eram as cidades das caravanas da Ásia e o reino dos partas.

Trajano parece ter querido dar ao império um equilíbrio econômico estável. Roma carecia de ouro. Trajano empreendeu a conquista da Dácia (Romênia), rica em ouro. Renunciando à política do monopólio estatal, aí inaugurou o sistema da pequena exploração mineira, que seu sucessor Adriano introduziria em Portugal.

Para controlar as vias do comércio com o Extremo Oriente, Trajano incorporou ao império o reino dos árabes nabateus; para assegurar o controle do mar Vermelho e dominar as vias terrestres empurrou as fronteiras do império até o golfo Pérsico e até o sul do mar Cáspio.

Mas, para garantir as conquistas de Trajano contra a cobiça do Império dos partos, Roma teria precisado despender um grande esforço militar. Ora, ela se orientava para uma civilização essencialmente pacífica. O exército se recrutava cada vez com maior dificuldade. Para completar os efetivos, alistavam-se bárbaros. As legiões se acantonavam onde eram recrutadas. Já não podiam ser enviadas para longe. Adriano renunciou à conservação da Mesopotâmia e tornou a trazer a fronteira para o alto Eufrates. O império cercou-se de um muro-fronteira e limitou-se a conservar o status quo. E o desequilíbrio do comércio com o Extremo Oriente persistiu.

No interior, as despesas das cidades (urbanização, leis sociais, ensino) tornavam-se pesados demais para elas. O império precisou intervir. Passou a vigiar-lhes a gestão. O imperador Marco Aurélio colocou um curador imperial ao lado dos magistrados municipais, que se libertaram, a partir desse momento, do controle da burguesia, que anteriormente os elegia; cooptaram-se; arrogaram-se poderes arbitrários, transformando-se numa espécie de nobreza que pretendeu colocar-se acima das leis.

O estatismo introduzido por Marco Aurélio mudou-se, sob Cômodo (180-192), em absolutismo. Reavivou-se a oposição do Senado. A falta de reservas metálicas, num momento em que reapareciam graves distúrbios políticos, levou Cômodo a desvalorizar maciçamente a moeda em 30%. Disso resultou uma rápida elevação do custo de vida, que provocou a crise econômica e a agitação social. Diante do descontentamento do exército, aumentou-se o soldo. O encargo suplementar que o aumento representou para o tesouro ultrapassou os benefícios da desvalorização. Foi um descalabro. Após um século de prosperidade, o império se via bruscamente atirado a uma crise política, econômica e fiscal, que parecia sem saída. Em 192, Cômodo, que enlouquecera, foi assassinado. Nova guerra dinástica estourou.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 141.
PIRENNE, Jacques-Henri. Panorama da História Universal. São Paulo: DIFEL, EDUSP, 1973. p. 116-119.
ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 231

NOTA: O texto "O Império Romano sob os Antoninos (96-192)" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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