"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 12 de julho de 2014

O Império Romano sob os Césares e os Flavianos (14-96 d.C.)

O imperador Tibério. Artista desconhecido.
Foto: Jastrow

Otávio, apesar de ter completado a consolidação do Império, não tinha estabelecido o critério de sucessão. Mas, desde o ano de 4 d.C., tinha associado ao poder seu genro e filho adotivo Tibério, que o sucedeu após sua morte.

Nessa primeira etapa imperial, a sucessão ficou restrita a duas famílias: Júlia e Cláudia. Parentes entre si e de Augusto, essas famílias, pertencentes à antiga nobreza romana, constituíram uma dinastia patrícia.

Dinastia júlio-claudiana

Otávio
29 a.C. – 14 d.C.
Tibério
14 a 37
Calígula
37 a 41
Cláudio
41 a 54
Nero
54 a 68

Tibério (14-37), sucessor de Augusto, inaugurou uma política nitidamente centralizadora. Transformou em conselho imperial permanente o conselho de amigos criado por Augusto. Convertidos em verdadeiros ministérios, os serviços públicos foram colocados sob a direção do prefeito do pretório, transformado em primeiro ministro. Criou-se um fundo para a concessão de créditos públicos baratos à classe média, que se revoltava na Gália contra o açambarcamento das terras pelos capitalistas romanos. Estes se insurgiram. As cortes pretorianas foram colocadas às portas de Roma para reprimir as conjurações que se tramavam contra a vida do imperador. As execuções sucederam aos confiscos. Espanhóis e gauleses substituíram, no Senado, os romanos executados.

A morte de Tibério, Jean-Paul Laurens

Calígula (37-41), educado na tradição egípcia, tencionava manifestamente fazer que se admitisse em Roma a noção de poder por direito divino, que possuía como faraó do Egito. Combatido pelo Senado, que pretendia conservar para a aristocracia romana o domínio de um império submetido, foi assassinado quando se preparava para passar ao Egito.

Um imperador romano em 41 AD, Sir Lawrence Alma-Tadema

O Senado proclamou, então, a abolição do “principado” e anunciou a intenção de assumir o governo do império. Mas teve de inclinar-se diante dos pretorianos, que levaram ao trono Cláudio (41-54), tio de Calígula.

Calígula deposita as cinzas de sua mãe e seu irmão na tumba de seus antepassados, Eustache Le Sueur

O novo imperador recompensou largamente os pretorianos, erguendo assim para o futuro, em face do poder legal do Senado, novos apetites, que todos os imperadores teriam de tomar em consideração.

Cláudio governou com colaboradores não romanos, fortemente impregnados das concepções helenísticas. Sob a orientação deles, o governo central organizou-se segundo o modelo das administrações egípcias, especializadas e centralizadas, ao mesmo tempo; a chancelaria foi amplamente desenvolvida. O império tendia à igualdade de todos os súditos diante do imperador. Fazendo-se democrático e liberal, este renunciou ao terror e às proscrições. O poder imperial procurou fazer-se hereditário e dinástico. Para ligar-se a Augusto, Cláudio desposou uma descendente deste último: Agripina, que só lhe trouxe revoluções palacianas. Depois de haver mandado envenenar Cláudio e ter afastado o herdeiro legítimo, Britânico, fez com que a guarda pretoriana colocasse no trono o seu próprio filho, Nero (54-68).


Proclamação do imperador Cláudio, Sir Lawrence Alma-Tadema

O poder imperial esteve a pique de perder-se nessas lutas palacianas, no mesmo momento em que Sêneca, que Cláudio dera por preceptor a Nero, pregava o advento de um império constitucional, em que o poder pessoal do imperador seria substituído pela partilha do poder legislativo entre o imperador e o Senado, formado de representantes de todas as províncias.


Agripina com as cinzas de Germânico, Sir. Lawrence Alma-Tadema

A evolução econômica do império acentuou, sob Nero, a luta entre o imperador e o Senado. O comércio mediterrâneo com a Ásia atingiu, então, um nível que só voltaria a conhecer no 19º século. Mas esse comércio estava inteiramente nas mãos dos egípcios e dos sírios. Os capitalistas de Roma continuavam açambarcando terras nas províncias ocidentais. Os pequenos rendeiros desapareciam, transformados em colonos hereditários ou aumentando o proletariado urbano, ao passo que os grandes proprietários, escapando à autoridade dos magistrados locais, tinham acesso, praticamente, à autonomia senhorial. O desaparecimento da pequena propriedade, em favor dos latifundia, provocava a diminuição da produção de trigo, obrigando o Estado a uma intervenção que desfigurava o mercado. Enfim, as manipulações monetárias, acarretadas pelo déficit do comércio com a Ásia e pelas despesas suntuárias de Calígula e Nero, provocaram a elevação do custo de vida, que contribuía para a ruína da classe média. Para acudir-lhe, criaram-se caixas hipotecárias, ao passo que o imperador, acentuando a luta contra os capitalistas, mandou matar os seis maiores proprietários da África, que possuíam a metade dessa província, e confiscou-lhes as terras. Opondo-se ao Senado por uma política democrática e absolutista, Nero deixou-se arrastar para medonhas demonstrações demagógicas, que redundaram no incêndio de Roma (64). Os cristãos foram responsabilizados por isso. Tornaram-se objeto de perseguições, porque a sua religião monoteísta ameaçava as bases panteístas da autoridade por direito divino, para a qual tendia o império.


Uma dedicação à Baco, Sir. Lawrence Alma-Tadema

Desde o 2º século a.C., a crença na imortalidade da alma e no julgamento do homem na outra vida praticamente se generalizara sob a influência dos cultos orientais: os mistérios de Dioniso e de Osíris; o culto de Ísis, confundido com o de Ceres, a deusa-mãe; as festas primaveris de Átis, que celebravam, ao mesmo tempo, o luto pela morte do deus e o júbilo pela sua ressurreição; o culto de Mitra, enfim, que pregava a solidariedade humana e a justiça, e anunciava a ressurreição dos corpos no juízo final.

Os mistérios de Mitra, como todos os cultos orientais, favoreciam a política absolutista dos imperadores, pois afirmavam que o poder provém diretamente de Deus. Somente o cristianismo, entre todos os cultos místicos, parecia perigoso para o absolutismo imperial por ser hostil ao panteísmo, sobre o qual repousava a noção da divindade do imperador.

As perseguições de que foram vítimas os cristãos não se exerciam apenas contra as suas ideias religiosas, mas contra todas aquelas que pudessem ser prejudiciais ao absolutismo do imperador. A censura, estabelecida por Tibério e afrouxada por Cláudio, fez-se mais dura sob Nero. Sêneca foi condenado à morte; os escritores políticos desapareceram e, diante da supressão da liberdade de pensamento em Roma, a vida intelectual refugiu-se nas províncias.

O remorso de Nero após o assassinato de sua mãe, John William Waterhouse

Para levar a cabo a sua política absolutista por direito divino, Nero procurou o apoio das províncias orientais. O Senado, ao contrário, escorou-se nas províncias ocidentais para tentar uma reação republicana. Em 68 d.C., os governadores das províncias ocidentais se revoltaram. Declarado inimigo público do Senado, Nero suicidou-se. O seu sucessor, Galba, nomeado pelas legiões da Espanha com o assentimento do Senado, empreendeu uma política de reação conservadora. Sublevou contra si o povo de Roma, aliado aos pretorianos, e foi massacrado. A sua sucessão provocou a guerra civil. Ao imperador Otão, amigo de Nero, elevado ao trono de Roma, as legiões opuseram Vitélio, na Gália, e Vespasiano, no Oriente.

Dinastia flaviana


Vespasiano
69 a 79
Tito
79 a 81
Domiciano
81 a 96


O triunfo de Tito, Sir Lawrence Alma-Tadema

A guerra terminou com o triunfo de Vespasiano, que tentou uma reforma constitucional. Romano, ele concebia o império como essencialmente formado pelo Ocidente latinizado. Transformou o Senado numa espécie de conselho imperial, em que figuravam poucos orientais. Inspirando-se, porém, ao que parece, em ideias orientais, associou os próprios filhos ao poder, apresentando-os como seus herdeiros e afirmando-se fundador de uma dinastia. Ao mesmo tempo, tentou restabelecer as finanças e tirou do Senado a distribuição de terras públicas para anexá-las à coroa e explorá-las sistematicamente, segundo os métodos helenísticos.

Domiciano, seu sucessor, procurou de novo o apoio do Oriente para as pretensões absolutistas que manifestou. Tropeçou nos mesmos obstáculos que haviam empeçado os desígnios de Nero: a aristocracia romana, os cultos monoteístas e a liberdade de pensamento. Respondeu a eles com banimentos de senadores, perseguições de cristãos e judeus, e a expulsão de Roma de todos os filósofos (94).

O assassínio de Domiciano, em 96, assinala o malogro das tentativas dos Césares e Flavianos de edificar o império sobre a monarquia absoluta, de inspiração oriental.

O Senado continuava a ser a única base legal do poder. Mas a oligarquia romana nele fora submergida pelas famílias provinciais, para as quais não existia tradição republicana. A nova aristocracia imperial, entretanto, era quase que exclusivamente latina e ocidental.

Roma solidarizava-se com as províncias ocidentais, em face da influência monárquica e mística do Oriente. E isso viria acentuar gravemente o dualismo do império.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 141.
PIRENNE, Jacques-Henri. Panorama da História Universal. Difel/EDUSP: São Paulo, 1973. p. 111-114.

NOTA: O texto "O Império Romano sob os Césares e os Flavianos (14-96 d.C.)" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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