"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades urbanas

Acrópole, Leo von Kleuze

As cidades são, com efeito, inúmeras na Grécia, mas frequentemente de ínfimo tamanho. Em caso de invasão, fornecem ao elemento rural da planície o abrigo de suas muralhas e de sua cidadela. Em tempos de paz, animam-se apenas nos dias de mercado, assembléia e festa religiosa. [...]

Esparta, que tanto surpreendia os antigos, também os escandalizava por sua aparência pobre. Oferecia alguns monumentos à apreciação dos visitantes, bem pouco numerosos, pois se tornara pouco hospitaleira no século VI a.C., assim continuando em seguida. [...]

Seus cidadãos levavam, dos 7 aos 30 anos completos, a vida de caserna, primeiro em organizações pré-militares e depois como soldados: dos 30 aos 60, a de reservistas constantemente em estado de alerta, prontos a responder no próprio dia ao apelo de mobilização. Além disto, eram obrigados, salvo permissão excepcional, a tomar refeição da tarde juntamente com os que, em caso de campanha, seriam seus companheiros de tenda. Qualquer ocupação lucrativa e qualquer trabalho, afora os exercícios físicos e militares, eram-lhes vedados. O Estado apenas cunhava moedas de ferro, e o verdadeiro espartano não devia possuir metais preciosos. A contribuição em gêneros dos ilotas e de seu domínio territorial bastava, em teoria, para mantê-lo, bem como à sua família, na sociedade.

O rigor dessa disciplina militar e social multiplicava, ao lado e abaixo da categoria dos “iguais”, isto é, dos únicos cidadãos perfeitos, as categorias inferiores: no campo, os ilotas; na periferia do território lacedemônio, os “periecos” que, agrupados em pequenas cidades, se entregavam à agricultura livre, ao artesanato e ao comércio; na própria Esparta, os “inferiores”, isto é, os cidadãos degradados, os bastardos, os libertos e muitos outros, cujo ideal era o retorno ou o ingresso na classe dos iguais. Mas, para tanto, fazia-se mister uma decisão das autoridades e, principalmente, visto que a pobreza, condenando ao trabalho, constituía um vício incompatível com a presença entre os privilegiados, o usufruto de um domínio obtido por herança ou casamento com uma herdeira de bom dote.

[...] Basta evocarmos os aspectos anormais da vida familiar: o celibato freqüente e a manutenção, no lar do primogênito, dos filhos mais novos privados de terras e ilotas; a restrição voluntária dos nascimentos [...], a falta de homens [...]; os meninos retirados aos pais e a educação integral por conta do Estado; a autoridade exercida pela mulher numa família cujo chefe está mais amiúde ausente e cuja subsistência ela garante ou completa, graças à sua fortuna ou ao seu trabalho.

Acrescentemos a monotonia dos dias. Proporcionam-se apenas, em tempos normais, as alegrias másculas, mas limitadas, do ginásio, do campo de manobra e do refeitório. Só incidentalmente é esse ritmo rompido por uma caçada cujo produto reforça, à noite, o repasto do grupo de caçadores; e, sobretudo, em datas regulares, pelas festas religiosas celebradas com escrúpulo, segundo ritos que o arcaísmo torna estranhos e que se regulam pela evolução alternada de coros que entoam as estrofes dos antigos poetas. Imobilizada em tradições mantidas com orgulho, quase sem contato com o mundo externo, ao qual está ligada apenas por péssimas estradas ou pelo pequeno porto de Giteion [...] Esparta em nada contribuiu para o florescimento da civilização grega.

Uma única região do campo ático conhecia outra forma de vida, diferente do quadro rural [...]: o maciço do Lourion, ao sul da península. A exploração das jazidas de chumbo argentífero determinou aí uma concentração humana, cuja importância variou segundo a atividade ou a negligência da administração, a riqueza ou o esgotamento dos filões conhecidos.

Proprietários das concessões, o Estado ateniense arrendava-as aos exploradores, reservando-se o monopólio da prata obtida após o tratamento do minério. Capitais assaz importantes eram consagrados a essa exploração pelos arrendatários, que deviam cavar as galerias, fornecer o material e a mão-de-obra, nesse caso representada por escravos. [...].

É fácil imaginar [...] a lamentável sorte desses escravos mineiros, pois os concessionários, preocupados unicamente com o lucro imediato, não poupavam certamente a sua força de trabalho [...]. Uma técnica defeituosa fazia-os trabalharem com ferramentas rudimentares, em galerias estreitas, iluminadas por meio de fumarentas lâmpadas de óleo. Além disso, em meio a uma paisagem de desolação – pois o minério, ao qual se mistura o enxofre, libera, ao ser fundido, vapores que destroem a vegetação -, viviam alojados em sórdidos acampamentos, sem família, a fim de evitar despesas suplementares de alimentação. Esses miseráveis são tentados pela fuga [...].

Na cidade, com efeito, embora existam escravos, é certo também que jamais se acham aglomerados em grandes massas. Em sua maioria, trata-se de escravos domésticos, muito disseminados. Uma casa servida por cerca de vinte escravos causa a impressão de extraordinária suntuosidade. Não possuir escravo algum é, em compensação, sinal de grande miséria. Mas um lar normal raramente conta com mais de três ou quatro, principalmente mulheres. Misturados à vida familiar, esses cativos não são maltratados. A presença quase constante da esposa limita certos abusos do dono da casa. Não é rara a dedicação recíproca, no caso da ama ou do “pedagogo” que acompanhou o rapaz em seus passeios, zelando por sua educação e instrução. Toleram-se uniões entre escravos de uma mesma casa, e a mãe escrava cria seu filho que, é certo, desconhecerá a liberdade, tal como seus pais. A indústria e o artesanato utilizam também o trabalho servil. Mas a maior empresa de que temos notícia, uma fábrica de armas em tempo de guerra, não conta mais de 120 escravos. [...] A oficina padrão, frequentemente representada em pinturas de vasos, é a do artesão, ferreiro, fundidor ou ceramista, que trabalha juntamente com alguns escravos. Entre esses e o senhor, a vida quotidiana e o trabalho comum estabelecem relações marcadas por simpatia humana.

[...]

Assim, tende a diminuir a barreira real entre os homens livres pobres e os escravos. Esses usam apenas os cabelos um pouco mais curtos, não se distinguem por qualquer traje especial, e muitos são gregos puros que devem sua servidão exclusivamente aos azares da guerra. [...] A lei os protege contra as brutalidades de terceiros e limita a cinquenta açoites os castigos corporais a que os magistrados os podem condenar, em caso de delito. Se tiverem motivos de queixa contra a crueldade de seus senhores, podem refugiar-se em certos santuários e pedir para serem postos à venda [...].

A população livre compreende, do ponto de vista jurídico, duas categorias de pessoas: os metecos e os cidadãos.

Os primeiros são estrangeiros domiciliados na cidade. Sob esse e outros nomes [...] encontram-se em quase todas as cidades gregas, salvo em Esparta [...] e [...] nas cidades muito atrasadas, de economia exclusivamente rural. Em parte alguma, tanto em valor absoluto quanto em valor relativo, são tão numerosos como em Atenas, onde a proporção é quase de um meteco para dois cidadãos [...]. Isso porque a reputação artística e intelectual da cidade, bem como sua atividade econômica, atrai os que se querem instruir ou tornar conhecidos, os homens de negócio empreendedores, os profissionais laboriosos que procuram um ganha-pão.

Acolhidos com benevolente hospitalidade, não se sentem humilhados por uma discriminação injuriosa. Excluídos dos direitos políticos e também da propriedade imobiliária, pagando anualmente uma taxa módica, são eles, de fato, no tocante ao resto, assimilados aos cidadãos, sujeitos aos mesmos encargos militares e fiscais, gozando de grandes facilidades para praticar seus cultos particulares, mas admitidos à celebração das festas religiosas oficiais, protegidos, enfim, pela lei, em suas pessoas e em seus bens.

Exercem as mais variadas profissões, liberais, artesanais ou mercantis. Não há, por assim dizer, um artista, um homem de letras ou de ciência que, sendo grego e não ateniense, não tenha passado uma parte mais ou menos importante de sua vida em Atenas. [...] o que constitui a glória e a prosperidade de Atenas é, em grande parte, obra dos metecos.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.189-194. (História Geral das Civilizações, v. 2)

NOTA: O texto "A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades urbanas" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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