"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades urbanas

Acrópole, Leo von Kleuze

As cidades são, com efeito, inúmeras na Grécia, mas frequentemente de ínfimo tamanho. Em caso de invasão, fornecem ao elemento rural da planície o abrigo de suas muralhas e de sua cidadela. Em tempos de paz, animam-se apenas nos dias de mercado, assembléia e festa religiosa. [...]

Esparta, que tanto surpreendia os antigos, também os escandalizava por sua aparência pobre. Oferecia alguns monumentos à apreciação dos visitantes, bem pouco numerosos, pois se tornara pouco hospitaleira no século VI a.C., assim continuando em seguida. [...]

Seus cidadãos levavam, dos 7 aos 30 anos completos, a vida de caserna, primeiro em organizações pré-militares e depois como soldados: dos 30 aos 60, a de reservistas constantemente em estado de alerta, prontos a responder no próprio dia ao apelo de mobilização. Além disto, eram obrigados, salvo permissão excepcional, a tomar refeição da tarde juntamente com os que, em caso de campanha, seriam seus companheiros de tenda. Qualquer ocupação lucrativa e qualquer trabalho, afora os exercícios físicos e militares, eram-lhes vedados. O Estado apenas cunhava moedas de ferro, e o verdadeiro espartano não devia possuir metais preciosos. A contribuição em gêneros dos ilotas e de seu domínio territorial bastava, em teoria, para mantê-lo, bem como à sua família, na sociedade.

O rigor dessa disciplina militar e social multiplicava, ao lado e abaixo da categoria dos “iguais”, isto é, dos únicos cidadãos perfeitos, as categorias inferiores: no campo, os ilotas; na periferia do território lacedemônio, os “periecos” que, agrupados em pequenas cidades, se entregavam à agricultura livre, ao artesanato e ao comércio; na própria Esparta, os “inferiores”, isto é, os cidadãos degradados, os bastardos, os libertos e muitos outros, cujo ideal era o retorno ou o ingresso na classe dos iguais. Mas, para tanto, fazia-se mister uma decisão das autoridades e, principalmente, visto que a pobreza, condenando ao trabalho, constituía um vício incompatível com a presença entre os privilegiados, o usufruto de um domínio obtido por herança ou casamento com uma herdeira de bom dote.

[...] Basta evocarmos os aspectos anormais da vida familiar: o celibato freqüente e a manutenção, no lar do primogênito, dos filhos mais novos privados de terras e ilotas; a restrição voluntária dos nascimentos [...], a falta de homens [...]; os meninos retirados aos pais e a educação integral por conta do Estado; a autoridade exercida pela mulher numa família cujo chefe está mais amiúde ausente e cuja subsistência ela garante ou completa, graças à sua fortuna ou ao seu trabalho.

Acrescentemos a monotonia dos dias. Proporcionam-se apenas, em tempos normais, as alegrias másculas, mas limitadas, do ginásio, do campo de manobra e do refeitório. Só incidentalmente é esse ritmo rompido por uma caçada cujo produto reforça, à noite, o repasto do grupo de caçadores; e, sobretudo, em datas regulares, pelas festas religiosas celebradas com escrúpulo, segundo ritos que o arcaísmo torna estranhos e que se regulam pela evolução alternada de coros que entoam as estrofes dos antigos poetas. Imobilizada em tradições mantidas com orgulho, quase sem contato com o mundo externo, ao qual está ligada apenas por péssimas estradas ou pelo pequeno porto de Giteion [...] Esparta em nada contribuiu para o florescimento da civilização grega.

Uma única região do campo ático conhecia outra forma de vida, diferente do quadro rural [...]: o maciço do Lourion, ao sul da península. A exploração das jazidas de chumbo argentífero determinou aí uma concentração humana, cuja importância variou segundo a atividade ou a negligência da administração, a riqueza ou o esgotamento dos filões conhecidos.

Proprietários das concessões, o Estado ateniense arrendava-as aos exploradores, reservando-se o monopólio da prata obtida após o tratamento do minério. Capitais assaz importantes eram consagrados a essa exploração pelos arrendatários, que deviam cavar as galerias, fornecer o material e a mão-de-obra, nesse caso representada por escravos. [...].

É fácil imaginar [...] a lamentável sorte desses escravos mineiros, pois os concessionários, preocupados unicamente com o lucro imediato, não poupavam certamente a sua força de trabalho [...]. Uma técnica defeituosa fazia-os trabalharem com ferramentas rudimentares, em galerias estreitas, iluminadas por meio de fumarentas lâmpadas de óleo. Além disso, em meio a uma paisagem de desolação – pois o minério, ao qual se mistura o enxofre, libera, ao ser fundido, vapores que destroem a vegetação -, viviam alojados em sórdidos acampamentos, sem família, a fim de evitar despesas suplementares de alimentação. Esses miseráveis são tentados pela fuga [...].

Na cidade, com efeito, embora existam escravos, é certo também que jamais se acham aglomerados em grandes massas. Em sua maioria, trata-se de escravos domésticos, muito disseminados. Uma casa servida por cerca de vinte escravos causa a impressão de extraordinária suntuosidade. Não possuir escravo algum é, em compensação, sinal de grande miséria. Mas um lar normal raramente conta com mais de três ou quatro, principalmente mulheres. Misturados à vida familiar, esses cativos não são maltratados. A presença quase constante da esposa limita certos abusos do dono da casa. Não é rara a dedicação recíproca, no caso da ama ou do “pedagogo” que acompanhou o rapaz em seus passeios, zelando por sua educação e instrução. Toleram-se uniões entre escravos de uma mesma casa, e a mãe escrava cria seu filho que, é certo, desconhecerá a liberdade, tal como seus pais. A indústria e o artesanato utilizam também o trabalho servil. Mas a maior empresa de que temos notícia, uma fábrica de armas em tempo de guerra, não conta mais de 120 escravos. [...] A oficina padrão, frequentemente representada em pinturas de vasos, é a do artesão, ferreiro, fundidor ou ceramista, que trabalha juntamente com alguns escravos. Entre esses e o senhor, a vida quotidiana e o trabalho comum estabelecem relações marcadas por simpatia humana.

[...]

Assim, tende a diminuir a barreira real entre os homens livres pobres e os escravos. Esses usam apenas os cabelos um pouco mais curtos, não se distinguem por qualquer traje especial, e muitos são gregos puros que devem sua servidão exclusivamente aos azares da guerra. [...] A lei os protege contra as brutalidades de terceiros e limita a cinquenta açoites os castigos corporais a que os magistrados os podem condenar, em caso de delito. Se tiverem motivos de queixa contra a crueldade de seus senhores, podem refugiar-se em certos santuários e pedir para serem postos à venda [...].

A população livre compreende, do ponto de vista jurídico, duas categorias de pessoas: os metecos e os cidadãos.

Os primeiros são estrangeiros domiciliados na cidade. Sob esse e outros nomes [...] encontram-se em quase todas as cidades gregas, salvo em Esparta [...] e [...] nas cidades muito atrasadas, de economia exclusivamente rural. Em parte alguma, tanto em valor absoluto quanto em valor relativo, são tão numerosos como em Atenas, onde a proporção é quase de um meteco para dois cidadãos [...]. Isso porque a reputação artística e intelectual da cidade, bem como sua atividade econômica, atrai os que se querem instruir ou tornar conhecidos, os homens de negócio empreendedores, os profissionais laboriosos que procuram um ganha-pão.

Acolhidos com benevolente hospitalidade, não se sentem humilhados por uma discriminação injuriosa. Excluídos dos direitos políticos e também da propriedade imobiliária, pagando anualmente uma taxa módica, são eles, de fato, no tocante ao resto, assimilados aos cidadãos, sujeitos aos mesmos encargos militares e fiscais, gozando de grandes facilidades para praticar seus cultos particulares, mas admitidos à celebração das festas religiosas oficiais, protegidos, enfim, pela lei, em suas pessoas e em seus bens.

Exercem as mais variadas profissões, liberais, artesanais ou mercantis. Não há, por assim dizer, um artista, um homem de letras ou de ciência que, sendo grego e não ateniense, não tenha passado uma parte mais ou menos importante de sua vida em Atenas. [...] o que constitui a glória e a prosperidade de Atenas é, em grande parte, obra dos metecos.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.189-194. (História Geral das Civilizações, v. 2)

NOTA: O texto "A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades urbanas" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A vida material e social na Grécia Antiga: as trocas

Vendedor de rua oferecendo frutas e bolos empilhados em um cesto. Ca. 489-470 a.C. Pan.
Foto: Marie-Lan Nguyen

Mesmo nos momentos mais felizes do período clássico, quando essa vida rural não sofre nem com as misérias da guerra, nem com as perturbações civis, ela só fornece à economia grega uma base muito restrita. Embora a sua população seja frugal, a Grécia não a pode alimentar unicamente com suas colheitas, exceto em algumas regiões favorecidas pela natureza ou de fraca densidade humana. Normalmente, é necessário importar produtos alimentícios: a Sicília, a Itália do Sul, o Egito e as margens setentrionais do Mar Negro são seus fornecedores necessários. Mas, para pagar o que lhes compra, a Grécia está na obrigação de vender-lhes qualquer coisa. Vende-lhes azeite e vinho, únicos produtos para os quais sua agricultura proporciona excedentes disponíveis, bem como os produtos de sua indústria. [...]

[...] Vendas e compras no exterior pressupõem a existência de uma marinha, que, atingindo certa importância, não mais encontra em quantidade suficiente, na velha Grécia, os materiais indispensáveis à construção e manutenção de navios; mas essa marinha mesma é uma fonte de lucros, pois permite que os armadores exerçam um papel de intermediários e de corretores, papel que se estende a toda a bacia do Mediterrâneo. Enfim, o incremento do tráfico provoca, por sua vez, a multiplicação das operações de troca e, depois, das transferências de fundos, dando assim margem ao florescimento do comércio do dinheiro, que evolui no sentido da atividade bancária.


Um antigo navio grego. Artista desconhecido

Essa economia diversificada não predomina sobre a economia rural senão em raros pontos da Grécia, em certas cidades e certos portos localizados em posições geográficas propícias, com população mais empreendedora ou mais ameaçada pela fome, e servida, também, por circunstâncias políticas favoráveis.

[...] Na Sicília, Siracusa aumenta a superioridade de que já gozava outrora. O prestígio e as forças militares que lhe valem suas vitórias sobre Cartago permitem-lhe criar um império, que não é somente político. Destrói ou submete outras cidades ou, pelo menos, tira proveito de sua destruição por parte de terceiros. Uma imigração, ora espontânea, ora forçada, facilitada e mesmo imposta pelos tiranos, que se mostram generosos em relação ao direito de cidadania, a fim de destruir a coesão moral de seus súditos, aumenta consideravelmente sua população. Na Itália meridional, Tarento, sem pretender semelhante fortuna, acaba também por destacar-se, servida pelo declínio de suas vizinhas que se arruínam umas às outras ou que resistem menos à pressão dos itálicos. Na própria Grécia, os centros prósperos da vida econômica são menos numerosos do que outrora. Cálcis, Erétria, Egina, estão decadentes ou mortas, sufocadas pelo crescimento de Atenas. As cidades gregas da Ásia vegetam [...]. Ao contrário, Corinto continua importante, maravilhosamente situada para o comércio com a Sicília e a Itália, onde mantém relações políticas amistosas [...].

[...]


Escravos trabalhando nas minas de Laurion. Artista desconhecido. Século V a.C.

Grande importadora de produtos alimentícios e matérias-primas, Atenas exporta o vinho e o azeite dos campos da Ática, seus artigos manufaturados e, principalmente, a cerâmica, cujos cacos se encontram hoje desde as costas da Gália até a Rússia meridional. Servida por numerosa marinha mercante que suas esquadras protegem contra os inimigos e os piratas, seu porto do Pireu é, como diz Isócrates, “um mercado no meio da Grécia... onde a superabundância é tal que os objetos que não se podem encontrar em outras partes senão com esforço, e isoladamente, são aqui facilmente adquiríveis”. Enfim [...] Atenas exporta suas moedas. A prata extraída das minas do Laurion permite-lhe fazer a cunhagem em grande quantidade, com apreciável lucro, de moedas de excelente título e peso escrupuloso [...].

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 186-188. (História Geral das Civilizações, v. 2)

NOTA: O texto "A vida material e social na Grécia Antiga: as trocas" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 26 de julho de 2014

A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades rurais

Politicamente dividida em múltiplas cidades, a vida econômica e social da Grécia oferece-nos aspectos muito variados. Dada a deficiência de estradas, a circulação processa-se sobretudo por via marítima, mas acontece que muitas cidades ficam distanciadas dos portos, aos quais, assim como às outras cidades do interior, se encontram ligadas apenas por maus caminhos. Pondo-se de lado alguns pontos privilegiados, os homens e as ideias não se misturam, não se trocam os produtos, a não ser em escala muito limitada. O único elemento de unidade [...] seria, portanto, a preponderância quase generalizada da vida rural. A imensa maioria da população da Grécia vive no campo e tira da terra seus recursos; o desenvolvimento e o embelezamento de certas cidades, bem como a intensidade de sua atividade marítima, não devem dar margem a ilusões.

[...]

Existem regiões de grandes propriedades. São aquelas onde a terra é mais fértil, ao menos para a cultura dos cereais, ou propícia às pastagens que tornam possível a criação de gado graúdo, principalmente cavalos, ou seja, no conjunto, as regiões de planície, percorridas por cursos d’água mais ou menos permanentes. Os privilegiados donos do solo são suficientemente ricos para que possam tentar experiências, aplicando novos métodos de cultura. Graças a eles, expandiu-se, no século IV a.C., o uso de adubos e prados preparados, determinando a diminuição do alqueire e a extensão da criação de gado. Xenofonte, em Econômica, fornece-nos o retrato ideal do amo cuidadoso, de espírito aberto às inovações, que zela inteligentemente por seus interesses e dirige com mão firme tanto a casa, por intermédio da mulher a quem prodigaliza bons conselhos, quanto às terras, cuja exploração acompanha de perto.

Esses proprietários não trabalham com suas mãos. Formam a elite social do campo e, mesmo, das cidades, pois, sendo nobres, é dos seus antepassados que recebem os domínios. A melhor parte de sua existência , depois de passada a juventude na cidade, transcorre na velha mansão da família, situada no centro de suas propriedades. Mantiveram o ideal da aristocracia arcaica. O gosto pelos exercícios físicos, pela caça, equitação e boa mesa não os impede de apreciar as poesias de Píndaro nem, até na rude Macedônia, as tragédias de Eurípedes. Sendo as principais figuras do local, interessam-se pela vida do aldeamento ou do pequeno distrito em que sua família é a mais eminente e cujos cultos são, aos olhos de todos, os seus cultos patrimoniais. [...] Os trabalhadores agrícolas que deles dependem são uma espécie de clientela necessariamente devotada. Mas os camponeses livres da vizinhança, embora frequentemente deles desligados no plano jurídico, também sofrem sua ascendência. [...]


Camponês usando um pilos (chapéu cônico) e segurando uma cesta. Estatueta de terracota de Myrina, século I a.C. 
Foto Marie-Lan Nguyen

Há mesmo, por vezes, mais do que a dependência econômica ou a dedicação fiel. Em parte alguma se pratica, em grande escala, a exploração da terra por meio de escravos agrupados em turmas sob a vigilância de um feitor: a utilização desse processo está reservada aos capitalistas romanos. Mas, num ou noutro ponto, existe a servidão, o cultivo da terra por homens que não podem abandoná-la. Embora. Na Tessália ou em Creta, por exemplo, haja servos que pertencem ao proprietário do solo, o caso mais bem conhecido é o dos servos do Estado, que são os ilotas espartanos.

Os ilotas só podem ser libertados pelo Estado, e este, fixando seu estatuto, ligou-os aos “lotes” de terra, os quais, em teoria, não foram entregues aos cidadãos senão a título de usufruto. Os ilotas fundam livremente suas famílias e cultivam à vontade a parte do domínio onde se instalaram. Devem ao cidadão titular da terra apenas uma prestação anual em gênero, cujo montante é fixado de uma vez para sempre, e conservam pela propriedade e livre disposição do excedente das colheitas.

Economicamente, sua sorte parece ao menos suportável: por volta do fim do século III a.C., 6.000 possuirão um pecúlio suficiente para comprar ao Estado sua alforria, passando uma soma equivalente, para a época, ao valor médio de um bom escravo. É verdade que outras obrigações pesam sobre eles: prestar serviços domésticos cuja natureza exata ignoramos ou fornecer escudeiro e mesmo infantes com armamento ligeiro que acompanham os cidadãos nas suas campanhas. Mas sua condição, segundo parece, agrava-se sobretudo devido às medidas policiais contra eles tomadas por Esparta. Uma dessas é a liberdade concedida aos jovens espartanos, no momento da “criptia”, de matar qualquer ilota encontrado na rua à noite; outra é a proibição de possuir armas. Talvez houvesse suspeitas principalmente contra os messênios, reduzidos à servidão desde o século VIII a.C. e, depois, comprometidos em inúmeras sublevações.

[...]

Mas as regiões de grande propriedade, em que a terra é trabalhada por operários agrícolas ou por servos, cobrem apenas uma pequena parte da Grécia. Outro regime agrário predomina nitidamente: o da pequena propriedade explorada por seu dono. Conhecemo-lo, sobretudo, na Ática; predomina igualmente em outras áreas e constitui, com toda a certeza, o ideal da grande maioria dos gregos. Era uma vida que iam procurar nas colônias disseminadas ao redor da bacia do Mediterrâneo os que se expatriaram, nos séculos VIII e VII a.C. [...].

Em Atenas, a restauração e a salvaguarda da pequena propriedade camponesa foram a grande obra do século VI a.C.. O século V é a sua idade de ouro. Não há estrangeiros no campo [...]. Mais da metade dos cidadãos é constituída por proprietários, embora, às vezes, de lotes ínfimos, dispersos e distanciados de seu domicílio real. [...] O camponês consegue, portanto, facilmente, completar seu próprio lote, arrendando parcelas vizinhas que, sem ele, ficariam incultas.


Lavrador. Detalhe que representa pessoas trabalhando no campo.Copa Ática. Artista desconhecido

Não obstante e apesar de seu trabalho ingente, ele não faz fortuna. Nas regiões montanhosas, vivem arduamente rudes lenhadores e carvoeiros ou pastores que conduzem seus rebanhos de cabras e ovelhas em busca de um pasto ralo. Raríssimas são as boas campinas. Mesmo em solo cultivável, a precocidade da seca e dos calores estivais, a falta de capitais e a rotina permitem apenas um fraco rendimento em cereais; as ferramentas rudimentares impossibilitam um trabalho profundo; a escassez de adubos, devida à raridade do gado e à imperfeição da técnica, obriga, como no tempo de Hesíodo, a deixar o solo em alqueive, um ano em cada dois, realizando-se três tipos de cultura (de primavera, verão e outono), a fim de conservar sua unidade. Na prática, o pequeno lavrador não pode vender cereais. O que lhe fornece um excedente de produção e, por conseguinte, certo dinheiro líquido são as árvores frutíferas, como a figueira, a vinha e a oliveira. Capitalizados nessas plantações, o trabalho e as privações de seus antepassados [...] fornecem a sua renda anual. [...] Dessa forma, passa por rudes sofrimentos, ajudado pela família, que as próprias condições de sua vida obrigam a limitar: poucos filhos, um ou dois escravos [...].


Coleta de azeitonas por jovens. Ânfora, ca. 520 a.C. Artimenes

[...] Em tempo de guerra, sem muito reclamar, uma vez que se trata de defender os seus, a sua casa, as suas árvores e as suas messes, veste o armamento de hoplita, que é também um legado paterno. Mas aspira naturalmente à paz, durante a qual leva uma existência simples e sóbria, comendo papas de sua cevada, as cebolas de sua horta, o mel de suas colméias, os figos e as azeitonas de seu pomar, enriquecendo o cardápio apenas nos dias de festa, em que, com alguns vizinhos amigos [...] são servidos um leitão e uma ânfora de vinho de suas videiras. Foram suas aspirações modestas, suas alegrias triviais e seus sofrimentos que Aristóteles cercou de uma poesia ainda fresca di orvalho matinal, sussurrante do vôo das abelhas.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 181-186. (História Geral das Civilizações, v. 2)

NOTA: O texto "A vida material e social na Grécia Antiga: as sociedades rurais" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A vida cotidiana egípcia em pequenas obras de arte

Modelo de barco do túmulo de Herishefhotep, IXª dinastia. Foto: Einsamer Schütze

A arte do Egito Antigo tem sua expressão máxima em obras monumentais e de caráter religioso, como as pirâmides e as pinturas que recobrem as paredes dos túmulos e templos. Mas, a estes magníficos exemplos do alto nível artístico alcançado pelos antigos egípcios, somam-se pequenos trabalhos artesanais que, por traduzirem hábitos, costumes e aspectos da vida cotidiana, foram de grande importância para a reconstituição histórica da civilização egípcia. Elaborados fora do contexto religioso do Estado, estes trabalhos eram de concepção bastante livre, não obedecendo aos rígidos padrões a que estava submetida a arte monumental dos faraós.


Modelo de cozinha: trabalhadores moendo, cozendo e fazendo cerveja, XII dinastia. 
Foto: Andreas Praefcke

Durante o Antigo Império, a argila e os metais foram as matérias-primas básicas utilizadas na feitura das peças de artesanato, que compreendiam desde utensílios domésticos até estatuetas e delicados trabalhos de ourivesaria. No Médio Império, porém, a madeira passou a ser empregada em larga escala na confecção de todo tipo de manufaturas. E foi neste período que se desenvolveu um gênero de estatuária de cunho nitidamente artesanal. Esculpidas em madeira e pintadas com cores vivas, estas figuras aparecem reunidas em grupos onde são retratadas cenas da vida di[ária dos antigos egípcios.


Modelo de celeiro. Os homens estão derramando grãos em silos compartimentados. No canto oposto, um escriba, sentado no chão, registra as quantidades em uma placa coberta de gesso. 1ª Período Intermediário. 
Foto: Typezero

Pela profusão de personagens e detalhes, tais conjuntos – descobertos em sua maior parte nas tumbas dos faraós e nobres tebanos – são testemunhos fiéis de um modo de vida mais desaparecido há milhares de anos. Na realidade, têm um valor muito mais documentário do que propriamente artístico, já que muitos deles são trabalhos nem sempre perfeitamente realizados do ponto de vista estético. Estas miniaturas eram colocadas nas câmaras mortuárias como símbolos de uma vida que se prolongaria pela eternidade e dos serviços que nela deveriam ser prestados àquele que morrera. Ao reproduzirem o dia-a-dia de toda uma sociedade, os artesãos do Egito Antigo conseguiram realizar algo de tão importante quanto os grandes artistas da época: fazer com que, das profundezas do mundo dos mortos, pudesse ser trazido à luz o mundo dos vivos, singelamente perpetuado em argila e madeira.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril, 1975. p. 10. Volume 1.

NOTA: O texto "A vida cotidiana egípcia em pequenas obras de arte" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 22 de julho de 2014

O cotidiano do rei Luís XIV e o absolutismo

Luis XIV e sua família. Artista desconhecido

Os  pesquisadores que estudam os governos absolutistas da França conseguiram identificar vários gestos simbólicos criados por Luís XIV para mostrar seu poder de monarca absoluto. Entre eles destacam-se as regras de etiqueta criadas para orientar o comportamento dos membros da Corte.


Casamento de Luís XIV e Maria Teresa da Áustria na Igreja de St.-Jean-de-Luz, 9 de junho de 1660. Jacques Laumosnier

Essas regras transformavam cada ato do cotidiano do rei em cerimônia que deveria ser acompanhada por toda a Corte. Por meio desses rituais buscava-se destacar a pessoa do monarca como centro do poder e, como tal, objeto de culto e adoração.


Casamento do Duque de Borgonha, Luís da França (1682-1712). Antoine Dieu

O sono do rei Luís XIV geralmente era velado por um criado, que permanecia ao lado do monarca durante toda a noite e o acordava pela manhã. Em seguida, o médico particular do rei o examinava e avaliava as suas condições de saúde. Depois desse exame, o criado lhe colocava a peruca e permitia a entrada dos cortesãos que já estavam à espera no corredor.


Luís XIV (1638-1743). Hyacinthe Rigaud

Seguindo uma rígida hierarquia, diariamente os nobres de títulos mais importantes eram admitidos em primeiro lugar nos aposentos reais. Depois vinham os oficiais de quarto e de guarda-roupa, encarregados de organizar as vestimentas reais. Enquanto o rei se levantava da cama, eram recebidos os ministros e secretários de Estado.


Entrevista de Luis XIV da França e Filipe IV da Espanha na Ilha dos Faisões em 1659. Jacques Laumosnier

Dois dos nobres mais importantes o ajudavam a colocar as roupas, prender os sapatos e a espada. Em seguida, entravam nobres de menor importância, que realizavam outros tipos de tarefas. Por último, eram admitidos nos aposentos os filhos legítimos e bastardos do rei e o ministro das Finanças. Completado o cerimonial de vestir-se, o rei dirigia-se à capela do palácio para fazer as orações matinais e finalmente ia ao encontro do restante da Corte.


Luís XIV e a Dama Longuet de La Giraudière. Charles Beaubrun

Nas refeições do rei e de sua família, assistidas por toda a Corte, os rituais se repetiam. Uma grande quantidade de criados e de nobres ficava à disposição para servir os pratos e as bebidas.


Reparação feita à Luís XIV pelo doge de Gênova Francesco Maria Lercari Imperial, 15 de maio de 1685. Claude Guy Hallé

Se o rei queria beber, um dos nobres anunciava em voz alta a disposição do rei para beber, fazia uma reverência e ia ele mesmo apanhar as bebidas. Voltava na companhia de dois criados que carregavam as bandejas com os copos e garrafas de vinho ou água. Os criados provavam as bebidas e o nobre, fazendo nova reverência, oferecia a garrafa ao rei. Depois de nova reverência, o nobre devolvia a bandeja ao criado, que a levava embora. Esse cerimonial era cumprido toda vez que o rei queria comer ou beber qualquer coisa, fazendo de uma simples refeição um ritual complicado e demorado.


Madame de Maintenou como uma jovem mulher. Amante de Luís XIV. Artista desconhecido

Outras regras de comportamento definiam os poucos que mereciam sentar-se na presença do rei e os que deveriam permanecer em pé. Entre os que se sentavam também havia uma hierarquia, marcada pelo tipo de assento indicado para cada um - do simples banquinho até cadeiras maiores e mais confortáveis. Somente para alguns poucos representantes e governos estrangeiros o rei concedia o privilégio supremo de cumprimentar tirando o chapéu.


Retrato de Luís XIV da França. Artista desconhecido

A transformação da vida cotidiana do rei em espetáculo servia para seduzir os nobres, que se sentiam poderosos pela participação nessas cerimônias assistidas por todos. Além disso, as regras rígidas de etiqueta utilizadas nessas cerimônias reforçavam a hierarquia do poder na França absolutista, no centro da qual estava o rei.

DREGUER, Ricardo. TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 18-19.

NOTA: O texto "O cotidiano do rei Luís XIV e o absolutismo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 20 de julho de 2014

Prisioneiros em obras de arte

Visita de prisão, Theodor Leopold Weller

Nomeação de um prisioneiro com sua família, Vasily Petrovich Vereshchagin

Reféns, Jean-Paul Laurens

A condução das raparigas de alegria ao Salpêtrière, Étienne Jeaurat

Sansão aprisionado, Annibale Carracci

Casa de loucos, Francisco Goya

Vitória da fé, George Hare

Prisioneiros turcos, Nicolae Grigorescu

Rodada dos prisioneiros, Vincent van Gogh

O rapto das sabinas, Christoph Fesel

Cativos em Roma, Charles W. Bartlett

À espera de venda de escravos, Richmond, Virginia, Eyre Crowe

A escrava branca, Ernest Normand

Vendendo uma criança escrava [Um rico homem turco examina um menino nu, antes de comprá-lo], Vasily Vereshchagin

Cláudio e Isabella, William Holman Hunt

A prisioneira, Evelyn De Morgan

Cave canem, Jean-Léon Gérôme

Boyarina Morozova, Vasily Surikov

O rapto de Helena, Giovanni Francesco Romanelli

O condenado, Makovsky

Prisioneiros do front, Winslow Homer

As virgens cristãs sendo expostas ao povo, Félix Resurrección Hidalgo

Stella na prisão, François Marius Granet

O rapto de uma mulher herzegoveniana, Jaroslav Čermák

Oficiais alemães prestam homenagem aos prisioneiros franceses feridos, Édouard Detaille

Estupro das filhas de Leucipo, Peter Paul Rubens

Um detento na prisão, Heinrich Modersohn

Sultão Bayezid aprisionado por Timur, Stanisław Chlebowski

O prisioneiro de Chillon, Eugene Delacroix

Bandoleiro e cativa, Johann Georg Volmar

Criminosos, Johann Heinrich Wilhelm Tischbein

O rapto das sabinas, Francisco Pradilla

Ricardo II supervisiona o massacre dos prisioneiros islâmicos, Sébastien Mamerot e Jean Colombe – século XV

A amarga corrente de ar da escravidão, Ernest Normand

O resgate, John Everett Millais

Aprisionada, Henry Justice Ford

São João Batista no cárcere, Victor Meirelles

Luisa Sanfelice no cárcere, Gioacchino Toma

Maria Antonieta na prisão, Oscar Rex

Nas correntes, Ernest Normand

A tortura de Cuauthémoc, Leandro Izaguirre