Israel no Egito (detalhe), Edward Poynter
Diante dos grandes monumentos,
como as pirâmides, só nos resta imaginar as massas de indivíduos curvados sob
fardos muito pesados e sob as ordens de contramestres sádicos. E se trabalhar
para o faraó constituísse de fato uma forma de recompensa?
É um dos temas que despertam mais
paixão nos egiptólogos, mas também o fundamentalismo – a palavra não é forte
demais – tanto daqueles que negam ferozmente o fato quanto daqueles que afirmam
o contrário com veemência, como se a vida de uns e de outros dependesse da
resposta. Como se também fosse possível resolver de forma simples um problema
envolvendo noções tão complexas quanto as que dizem respeito à liberdade humana.
O Egito não conheceu a escravidão
no sentido greco-romano, designando um indivíduo privado de sua liberdade,
vivendo sob a autoridade absoluta de um mestre, seja devido ao nascimento –
sendo ele mesmo filho de escravo –, seja após ter sido capturado (no decorrer
de uma guerra), vendido ou condenado. Considerado como um bem material, ele se
torna – para sempre – a propriedade explorável e negociável de outra pessoa. Ao
longo do Vale do Nilo, essa forma de escravidão não ocorreu antes da época
ptolomaica (século IV antes da nossa era), data em que os gregos se tornaram
soberanos do país, levando com eles algumas de suas tradições, em particular a
escravidão. Na sociedade egípcia, existiam múltiplos níveis de dependência que
ligavam os homens entre si. Alguns podiam ser identificados como uma forma de
escravidão, mesmo que estivessem longe de responder aos critérios impostos pela
definição jurídica.
O funcionamento da realeza
egípcia baseava-se em um elemento essencial – que aproxima muito o estado de
espírito dos trabalhadores egípcios ao dos construtores de catedrais na Idade
Média: filho dos deuses e seu representante na Terra, o faraó, no ápice da
pirâmide social, garantia a vida e assegurava a cada um sua subsistência. Em
troca desses benefícios, ele estava no direito de exigir dos súditos seu
trabalho, de modo que cada um participava da grande obra coletiva.
Ainda por cima, por mais árduo
que fosse o trabalho, contribuir para a edificação dos monumentos destinados ao
futuro solar do rei ou à manutenção do equilíbrio cósmico permitia se apropriar
de uma parcela das prerrogativas habitualmente reservadas ao personagem real.
Enfim, fato sem dúvida revelador do sucesso do sistema faraônico, a coesão
social passava pelo pertencimento a um Estado cuja organização quase militar
era centrada na acumulação de riquezas, produzidas por uma mão de obra
particularmente móvel com status sociais extremamente diversos.
Em um estudo especialmente
instrutivo intitulado “Les noms de l’esclave en egyptien” (Os
nomes de escravos em egípcio), o egiptólogo Jules Baillet elaborou uma lista
dos vocábulos utilizados nos textos faraônicos para expressar a ideia de
escravidão. Eis o que ele constatou: na língua egípcia, não existem palavras
para designar o escravo no sentido estrito e, embora muitos termos expressem a
sujeição, “nenhum corresponde exatamente à ideia de servidão”, tal como
definida na Grécia ou em Roma. Daí sua pergunta: “O que é um estado social se
nenhuma palavra o designa?”
Evidentemente, se a palavra não
existe, o mesmo ocorre com o status. Entre os muitos termos enumerados por
Baillet, dois são mais comumente traduzidos por “escravo” entre os autores
favoráveis à tese da existência da escravidão no Egito: hem ebak,
duas palavras que parecem totalmente sinônimas na língua egípcia e que se pode,
de maneira menos categórica, interpretar por “servo”, e mesmo “dependente”. Em
egípcio, o sacerdote é um hem netjer, um “servo de deus”, e, como observa
Bernadette Menu, grande especialista nas questões de direito no Egito antigo,
um vizir se consideraria o bak do faraó, seu “devoto” de alguma maneira.
Segundo Bernadette, a noção de escravidão não responde a uma necessidade egípcia.
À luz dos textos jurídicos, parece claramente que o indivíduo hem ou bak era um
homem livre, perfeitamente integrado à sociedade, dispondo de um estado civil,
titular de direitos e devedor de obrigações idênticas às do resto da população:
embora pudesse se casar, ter posses, vender, contratar ou entrar na Justiça,
ele não podia escapar do pagamento de impostos e ao regime de corveia (trabalho
gratuito).
Paralelamente, estão conservados
vestígios nos arquivos, sobretudo da Época Baixa (por volta do século VI antes
da nossa era), de contratos relativos à venda ou à locação de indivíduos
dependentes, tema muito controverso entre os egiptólogos: trata-se do que
chamamos comumente “escravidão por dívida”, cuja negociação se referia a
serviços temporários, avaliados e quantificados previamente pelos interessados.
Um homem endividado se colocava a
serviço de um mestre para saldar sua dívida, até que a soma fosse integralmente
reembolsada. Depois, os dois homens podiam se entender, por meio de um contrato
escrito, validado juridicamente e aceito pelas duas partes. Foi o caso de um
indivíduo chamado Peftouâoukhonsou, cultivador por conta própria, que entrou
para o serviço de Nessemteu para pagar despesas médicas. Uma vez paga a dívida,
ele decidiu continuar trabalhando, mas dessa vez remunerado, o que foi objeto
de um novo contrato, renovado na sequência.
Trabalhos agrícolas e canteiros
de construção monopolizavam cotidianamente uma parte da mão de obra egípcia,
fosse ela estrangeira ou recrutada entre a população local, no seio das classes
trabalhadoras – em primeiro lugar, os camponeses. Em troca de rações diárias e
de um salário mensal – as fontes dissociam bem essas duas remunerações
complementares –, os contratados deveriam fornecer determinada quantidade de
trabalho. Salário e tarefa eram negociados antecipadamente e por tempo
determinado. Era o regime do trabalho obrigatório, o da corveia: o indivíduo
não escolhia sua tarefa, mas era pago regularmente pelo trabalho efetuado. É o
que revela um documento muito interessante, o papiro Reisner I, datado do reino
de Sesóstris I (em torno de 1970-1928 antes da nossa era), no início da XIIª
dinastia, durante o Médio Império.
Referindo-se aos trabalhos de construção do reino, o papiro apresenta dados
cifrados sobre as rações, os recrutados, as equipes e os trabalhos realizados.
Para a maioria, os homens – oriundos da mão de obra das terras agrícolas
pertencentes ao Estado – eram trabalhadores destinados às tarefas mais árduas:
transporte dos blocos e fabricação de tijolos crus. Reagrupados em equipes de
dez trabalhadores dirigidos por um capitão, eles recebiam diariamente um quilo
de pão – que constituía a moeda de troca – e alguns extras por ordem real. As
listas apresentam alguns artesãos especializados, mais bem remunerados, e
contramestres que executavam as ordens dadas pelo vizir, responsável pelos
trabalhos de construção perante o faraó. O documento revela o caráter muito
regulamentado dessa organização e a extrema mobilidade da mão de Obra sujeita à
corveia, que não cessava de se deslocar de um canteiro para outro, dependendo
da necessidade.
A partir do Novo Império, além do
Estado, qualquer pessoa podia, pagando uma remuneração, alugar os serviços de
um terceiro por dia, ou em frações: meio dia, um quarto de dia, uma hora se
necessário. Foi o caso do vaqueiro Messouia, que, sob os reinos de Amenófis III
e de Akhenaton (XVIIIª dinastia, de 1550 a 1292 antes da nossa era), alugava
mulheres para fabricar tecidos. Os contratos – cujo termo hieroglífico pode ser
traduzido por “troca a título oneroso” – engajavam essas trabalhadoras por
períodos que variavam entre dois até muitos dias, com tarifa diária de dois
shâtis.
No papiro Harris I, Ramsés III
(que reinou por volta de 1198
a 1168 antes da era cristã) explica como ele “reduziu a
pó” os beduínos da Ásia, pilhando seu acampamento, levando seu gado, bens e
prisioneiros, e os oferecendo aos deuses “para serem utilizados como servos de
seu domínio”. Bem mais cedo, sob o Antigo Império, a Pedra de Palermo (sobre a
qual foram gravados os anais reais) revela listas impressionantes de butins de
guerra: sob a IVª dinastia, Snefru (em torno de 2700 a.C.) trouxe da Núbia
200 mil cabeças de gado e 7 mil cativos, imediatamente empregados nas explorações
agrícolas. Exemplos desse tipo são muito numerosos nas fontes egípcias, em
particular no Novo Império, onde o Egito conquistador submete seus vizinhos à
força, no espírito de trazer butim e prisioneiros. Estes últimos eram
destinados a engrossar os efetivos do exército e os domínios divinos ou reais
para executar trabalhos agrícolas, artesanais e domésticos.
Desde essa época, a política
egípcia visava integrar esses cativos à sociedade, oferecendo-lhes uma educação
que recebiam no seio das fortalezas reais. Rompidos com seu meio de origem, os
prisioneiros adotavam um nome egípcio e se lançavam no aprendizado do “falar
como aqueles que seguem o rei, de modo que abandonem sua língua e andem no bom
caminho sem olhar para trás”, antes de serem destinados a um templo ou a um
domínio real onde fariam um trabalho remunerado. Tratava-se de uma acumulação
de homens condenados a servir nas engrenagens das estruturas econômicas
egípcias. Os cativos de origem principesca se uniam geralmente ao círculo real,
onde às vezes exerciam altas funções.
Esses homens, chamados, no
momento de sua captura, de hâqou ou seqerou-anhkou – palavras que se aplicavam
aos cativos, aos prisioneiros –, se tornavam, após uma egipcianização
bem-sucedida, hemou ou bakou, o que nos leva a pensar que não recebiam um
status de escravo. Embora a onipresença da iconografia real mostrasse o faraó
em toda a sua majestade esmagando os inimigos, em uma visão de mundo em que os
países estrangeiros eram seus vassalos e os adversários rebeldes, destinados a
morrer, o estrangeiro, a partir do momento que estivesse integrado à sociedade
egípcia, era tratado exatamente como um egípcio. Isso era particularmente
verdadeiro para os cativos que entravam como servos na casa de um particular
graças a um presente do rei a um homem merecedor. Muitas vezes acolhidos com
família e filhos, esses dependentes rapidamente faziam parte da casa, na qual
permaneciam em geral por toda a vida. Encontra-se também essa integração no
domínio militar.
Além dos soldados de carreira, os
contingentes eram compostos por corpos de mercenários constituídos “pelos
melhores entre os cativos que Sua Majestade fez nos campos de batalha”. Um
documento que remonta aos primeiros anos do reino de Ramsés II (de 1300 a 1235 antes da nossa
era), atribuído a um escriba encarregado de efetuar a repartição dos víveres
entre os soldados de uma mesma unidade quando de uma campanha militar na Síria,
mostra que os efetivos contavam com 62%de estrangeiros contra apenas 38% de
egípcios.
A partir do reino de Tutmés III
(de 1504 a
1450 antes da nossa era), as legiões estrangeiras reuniam essencialmente
núbios, asiáticos, líbios, hititas e os habitantes dos países banhados pelo mar
Egeu. Esses soldados eram reunidos em unidades e dirigidos pelos responsáveis
pelas tropas estrangeiras ou mesmo por nativos. Os textos confirmam que, tendo
provado sua lealdade ao faraó após sua chegada ao Egito, eles gozavam do status
de homens livres.
O papiro Wilbor, datado do ano 4
do reinado de Ramsés V (1145 antes da nossa era), é um documento fiscal que
contém um levantamento das terras com cultivo de trigo entre Minieh e o Fayum e
traz também preciosas informações sobre os mercenários estrangeiros. Ele explica
que, sob as XIXª e XXª dinastias, por ordem do rei, os prisioneiros de guerra
se instalaram com suas famílias nas colônias militares. Reagrupados por etnias,
eles gozavam das mesmas vantagens que os soldados egípcios e, como estes,
pagavam impostos e possuíam terras que exploravam por conta própria. Nesses
campos moravam os téhérou – piratas do mar Egeu –, núbios e sardanas da Ásia
Menor, estes últimos constituindo uma tropa de elite destinada à guarda do
soberano a partir de Ramsés II. Esses exemplos demonstram como a questão da
escravidão no Egito faraônico é complexa. Somente um estudo sistemático das
fontes jurídicas à nossa disposição permitirá esclarecer melhor os diferentes
níveis de dependência que estruturavam a sociedade egípcia – que eram particularmente
numerosos, embora nenhum deles possa ser comparado à escravidão segundo a
acepção greco-romana do termo.
Aude Gros de Beler. Cativos, sim;
escravos, não. In: Revista História Viva. Grandes Temas. Nº 46. p. 46-51.
NOTA: O texto "Cativos, sim, escravos, não: o trabalho no Egito antigo" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.