"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O costume de tomar banho


Prova de que não são exatamente os tempos, mas o caráter de cada povo que determina as tradições, é o costume de tomar banho. Ou de não tomar. Os gregos e romanos, por exemplo, sempre foram adeptos da prática. Já os europeus, em pleno século XIX, fugiam da água como se ela fosse praga. Literalmente. É que como a água quente dilata os poros, os médicos europeus acreditavam que os banhos facilitavam a entrada de germes. Ou seja, fugir das banheiras era recomendado como uma medida de higiene. Outra crença dizia que a água amolecia o organismo e impedia o crescimento. Assim, crianças eram frequentemente impedidas de entrar no banho até certa idade. [...] Hoje, sabemos que essas crenças não têm lógica alguma.

Aliás, a equação funciona ao contrário: banhos ajudam a evitar doenças. A falta deles é apontada, por exemplo, como o principal motivo para que a peste negra tenha se alastrado na Europa no século XIV. Na época, como ninguém se dava conta dessa obviedade, a culpa da epidemia, que matou 25 milhões de pessoas (um quarto da população europeia), recaiu sobre leprosos e judeus. No caso dos judeus, há quem diga que a recomendação religiosa de tomar banho pelo menos uma vez por semana e lavar as mãos antes das refeições mantinha-os menos sujeitos à peste. Como não eram contaminados, passaram a ser vistos como responsáveis pela disseminação e acabaram queimados durante a Inquisição. Ou seja, eles escaparam da peste, mas não da morte.

O pavor da água era tanto que mesmo os nobres não lavavam o corpo todo mais do que uma vez por ano. Consideradas de pouquíssima utilidade, as banheiras nem faziam parte dos objetos presentes em uma casa. Para o banho anual, o costume era ir ao centro da cidade, onde havia salões específicos para isso. O rei francês Luís XIV, por exemplo, tomou seu primeiro (e um dos únicos) banho aos sete anos de idade.

Para não ter de entrar na água, os europeus deixavam uma tina com o líquido dentro de casa e lavavam algumas partes, como as mãos e o rosto. Já Luís XIV preferia usar um pedaço de algodão com vinho branco. Mas só para o rosto e mesmo assim a cada dois dias. Esses hábitos, ou melhor, essa falta de hábitos, dava aos palácios e às cidades um odor bastante peculiar, que os nobres tentavam disfarçar usando muito perfume.

No Brasil, o calor e a abundância de rios, cachoeiras e praias fazia com que os índios entrassem na água mais de dez vezes por dia. Isso era tão atípico para os europeus que quando Pedro Álvares Cabral chegou aqui, em 1500, escreveu a Portugal comentando o hábito estranhíssimo dos nativos.

Os banhos só começaram a fazer parte da rotina europeia no final do século XIX e, até hoje, as banheiras são preferidas aos chuveiros. Já no Brasil, a situação é inversa. As duchas são muito mais frequentes e banheiras são usadas mais para relaxar.

SOALHEIRO, Bárbara. Como fazíamos sem... São Paulo: Panda Books, 2006. p. 98, 100-101.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Imigração, abolição e industrialização no Império

Estrada de Ferro Mauá, a primeira ferrovia do Brasil

Na segunda metade do século XIX ocorrem alguns fenômenos importantes que irão introduzir algumas modificações na estrutura econômica e social do país, contribuindo para o desenvolvimento relativo do mercado interno e estimulando o processo de urbanização. Primeiro, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre: a cessação do tráfico em 1850 e a entrada de numerosos imigrantes no sul do país. Em segundo lugar, a instalação da rede ferroviária, iniciada em 1852 e que no final do século atingiria a mais de 9.000 km construídos e 15.000 em construção. Finalmente, as tentativas, bem-sucedidas, de industrialização e o desenvolvimento do sistema de crédito.

A partir de 1850, com a cessação do tráfico e o aumento crescente dos preços de escravos, o problema era tanto mais grave quanto a diminuição da oferta de mão de obra escrava coincidia com a expansão das lavouras cafeeiras no sul do país. As dificuldades de obtenção da mão de obra escrava estimulariam as tentativas de substituição do escravo pelo imigrante e provocariam o deslocamento de parte dos escravos das regiões decadentes do nordeste para as prósperas regiões cafeeiras. Simultaneamente se processaria a transferência da mão de obra escrava dos centros urbanos para as zonas rurais. O crescimento do setor assalariado ampliaria o mercado interno, criando uma base para o futuro desenvolvimento industrial.

O aperfeiçoamento do sistema de transportes (substituição do transporte em lombo de burro e carro de boi pelas ferrovias, a generalização do uso do navio a vapor, na segunda metade do século XIX) coincide com a demanda crescente de café pelo mercado internacional, acarretando uma especialização crescente da produção cafeeira. [...]

Desde os meados do século, imigrantes europeus começaram a entrar em número crescente no Brasil, principalmente entre 1870 e 1900, sendo que o período de maior imigração situa-se nos anos que se seguem à abolição. Só o Estado de São Paulo recebeu em pouco mais de um decênio, isto é, entre 1890 e 1901, cerca de 700.000 colonos: italianos, portugueses, espanhóis e austríacos, não contando os de outras nacionalidades. [...]

No estado de São Paulo, os imigrantes, assim que puderam, abandonaram as lavouras de café onde viviam em precárias condições. Muitos, desiludidos, voltaram à sua pátria de origem ou imigraram para outras áreas. Outros localizaram-se em núcleos urbanos, onde se dedicaram ao comércio ou artesanato, às manufaturas e aos pequenos serviços. Outros, ainda que originalmente se destinavam à lavoura, preferiram, logo ao chegar, localizar-se nas cidades. Alguns já vieram com o objetivo de se fixarem nos núcleos urbanos, como os artesãos e comerciantes ingleses e franceses que se estabeleceram na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX. [...]

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 193-195.

sábado, 27 de outubro de 2012

Os bronzes rituais na época dos Shang e dos Zhu ocidentais

Machado de bronze de tipo yue. Esta peça, descoberta em 1965, em Sufutun, província de Shandong, é decorada com um motivo aberto de uma máscara taotie. Dinastia Shang, fase Anyang (1300-1050 a.C.)

Prestigiosa, especializada e codificada, a arte do bronze nasceu da combinação das técnicas da cerâmica com as da metalurgia. Inumeráveis obras-primas foram produzidas. A fabricação dos bronzes rituais na dinastia dos Shang (séculos XVI-XI a.C.), depois na dos Zhu ocidentais (séculos XI-VIII), passa pela extração de cobre e de estanho das minas, pelo transporte e depois o refinamento. A liga é em seguida fundida em segmentos de moldes de argila (os moldes segmentados) por artesãos especializados e que possuem um elevado status social. Vasos de álcool (zun ou yul), cálices (dul), trípodes (ding ou li), frascos (hu) etc., utilizados por ocasião de cerimônias sacrificiais em honra aos antepassados reais, foram encontrados em necrópoles reais ou no interior de esconderijos. São ornados com motivos complexos, como a máscara taotie (máscara de animal fantástico), ou representações de animais míticos cujo sentido não nos é acessível em grande parte. Os Zhu retomaram a arte dos Shang e a desenvolveram: em sua época, os bronzes rituais se tornam o símbolo da cultura aristocrática. No século IX a.C. (reforma ritual), são produzidos em série, tornam-se mais pesados e os motivos se simplificam. As inscrições que trazem indicam o homenageado na peça e assinalam seus méritos e os de seus ancestrais: os bronzes são a memória dos clãs de nobres. Os imperadores das dinastias Song (séculos X-XIII) e Qing (séculos XVII-XX) reuniram coleções desses bronzes antigos.

SALLES, Catherine. (dir.) Larousse das civilizações antigas: dos Faraós à Fundação de Roma. São Paulo: Larouse, 2008. p. 82. 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Escravidão nas lavras e cidades mineiras

Escravos trabalhando nas minas de ouro de Serro Frio sob o olhar vigilante de capatazes contratados. Aquarela de Carlos Julião

Na zona de mineração, o preço do escravo era muito alto, o que estimulou o comércio interno de mão de obra. Com a economia agrícola em baixa nesse período, várias capitanias vendiam negros para a região das minas. Esse comércio não agradava a Portugal, que deixava de ter lucros com a venda dos escravos africanos. A Coroa chegou mesmo a proibir a transferência de negros das várias capitanias para Minas Gerais.

Ali, os escravos trabalhavam não só nos garimpos, mas também no transporte de carga, levando ouro até o porto do Rio de Janeiro e trazendo para Minas mercadorias importadas de outras regiões. Mais tarde, esse trabalho passou a ser feito por animais.

Nos garimpos, os escravos tinham condições de vida até piores do que nos engenhos: trabalhavam em buracos pouco ventilados, na água ou atolados no barro. Além disso, a alimentação fornecida pelos senhores era reduzida, o que fazia com que os cativos contraíssem facilmente doenças que os levavam à morte. [...]

Não só nos engenhos ou nas minas encontravam-se escravos.

Possuir escravos dava prestígio ao homem branco das cidades: quanto mais rico, mais escravos a seu serviço teria o senhor. Nas casas das famílias mais abastadas havia dezenas de escravos domésticos: amas de leite, babás, mucamas, pajens, arrumadeiras, passadeiras, cavalariços, cocheiros e carregadores de liteiras ou "cadeirinhas", onde os brancos eram transportados de um lugar para outro. As pessoas mais modestas procuravam comprar ao menos um "moleque" para carregar os pacotes quando saíam às ruas. Além do serviço doméstico, eram considerados "trabalho de negro" as obras da construção civil e o comércio ambulante.

Uma prática muito comum nas cidades era a utilização dos chamados "escravos de ganho". O senhor ensinava um ofício ao escravo, que passava a oferecer serviços a terceiros, em troca de um pagamento, chamado ganho. Esse pagamento era repartido com o senhor. A parcela que cabia ao escravo geralmente servia para a compra de matéria-prima ou instrumentos do seu ofício.

QUEVEDO, Júlio; ORDOÑEZ, Marlene. A escravidão no Brasil. São Paulo: FTD, 1996. p. 22-25.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O diabo no confessionário


Uma senhora indo à missa numa cadeirinha, 
Jean-Baptiste Debret.
[As mulheres eram mantidas sob intensa vigilância social, que exigia recato sempre que estivessem em público.] 


Assim como a água cedo ou tarde encontra um caminho por onde escoar, o ser humano, movido pelo desejo, descobre formas de satisfazê-lo. Seria exagero dizer que, quanto mais intensa a proibição, maior a motivação para alcançar esse objetivo? Se o cerne do desejo é o impulso sexual, parece que a criatividade não tem limites. Sob a vigilância permanente de uma sociedade guiada por rígidos códigos de conduta impostos pela Igreja, que tornavam o templo um dos poucos lugares em que o contato social era permitido, a repressão acabou por dar lugar à permissividade em solo consagrado.

Os séculos ditos “modernos”, do Renascimento, por exemplo, não foram tão modernos, assim. Um fosso era então cavado: de um lado os sentimentos e, do outro, a sexualidade. A concepção do sexo como pecado, característica do cristianismo, implicava a proibição de tudo o que propiciasse prazer. Desde as carícias que faziam parte dos preparativos do encontro sexual aos mais singelos galanteios. Na verdade, os casamentos contratados pelas famílias deixavam pouco espaço para as práticas galantes, uma vez que os noivos eram submetidos a constante vigilância. Apesar de, para a realização desses casamentos, ser irrelevante a existência ou não de atração entre os noivos, a repressão social tornava imperativo adaptar os jogos de sedução às regras impostas. Mensagens e gestos amorosos esgueiravam-se pelas frinchas das janelas ou sobrevoavam o abanar dos leques.

Uma História, Henry Chamberlain. 
[A repressão social tornava obrigatório adaptar os jogos de sedução. Mensagens e gestos de amor passavam furtivamente pelas janelas ou sobre o abanar de leques.] 


Tanto controle transformava as cerimônias religiosas (uma das únicas ocasiões em que os jovens podiam se encontrar sem despertar suspeitas e reprimendas dos pais ou confessores) em palco privilegiado para o namoro. Não foram poucos os amores que começaram num dia de festa do padroeiro ou de procissão, havendo até os que esperavam a Quinta-Feira Santa e o momento em que se apagavam as velas, dentro da Igreja, em respeito à Paixão de Cristo, para aproximar-se um do outro. E no escurinho choviam beliscões, pisadelas e gestos eróticos. O intuito não era levar os amantes para a alcova, mas marcar encontros nas soturnas capelas.

As igrejas paroquiais foram convertidas, nesse tempo, em espaço para namoricos, marcação de encontros proibidos e traições conjugais. Moleques corriam de um lado ao outro da nave levando recados. Não foram poucas as ordens dadas por bispos setecentistas exigindo a separação de homens e mulheres no interior das capelas. O clero temia os encontros e suas consequências. Compreende-se, assim, o porquê de uma carta pastoral como a de Dom Alexandre Marques, de 1732, proibindo a entrada nas igrejas de “pessoas casadas que estiverem ausentes de seus consortes”. Nas igrejas, brotavam romances sem limites. Não por acaso, um manual português de 1681, escrito por Dom Cristóvão de Aguirre, continha as seguintes perguntas: “Se a cópula tida entre os casais na Igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça ocultamente?”. Lugar de culto, lugar público, a Igreja seria também um lugar de sedução e de prazer. Onde, vez por outra, Deus dava licença ao diabo...

Missa na igreja de Nossa Senhora da Candelária 
em Pernambuco, Rugendas. 
[As cerimônias religiosas eram raras ocasiões em que os jovens podiam se encontrar sem despertar suspeitas nem reprimendas, tornando-se palco privilegiado para o namoro.]


No Brasil, as missas do século XVIII eram animadas por toda sorte de risos, acenos e olhares furtivos, transformando as igrejas, para desgosto dos bispos, em concorridos templos de perdição. Mal iluminadas, suas arcadas e colunas e os múltiplos altares laterais ofereciam recantos, resguardados da curiosidade alheia, onde se podia até mesmo tentar gestos ousados: do beijo ao ato sexual propriamente dito. A costumeira reclusão das donzelas de família e a permanente vigilância a que estavam expostos todos os seus passos tornavam missas, procissões, ladainhas e novenas ocasiões sedutoras, para as quais contribuíam os moleques de recado e as alcoviteiras, ajudando a tramar encontros. Abrigo de amantes, a Igreja logrou converter-se, em certas circunstâncias, num dos raros espaços privados de conversações amorosas e jogos eróticos, nos quais se envolviam nada menos que os próprios confessores.

Tais jogos eram perpetrados até mesmo no refúgio dos confessionários. Tal foi o sucedido com Marciana Evangelha, moça solteira de 29 anos que, no Maranhão, denunciara o jesuíta José Cardoso ao comissário do Santo Ofício em outubro de 1753. Ela o acusara de pedir-lhe “seu sêmen”, de dizer que “a desejava ver nua” ou ainda de lhe pegar “nos peitos no confessionário”. Sobre as relações do padre e a moça, sabia-se, por exemplo – e é o comissário quem anota –, que esta “o trazia doido e fora de si e que por ela perdia muitas vezes o sono da noite, o que nunca lhe sucedera com outra mulher alguma” e, ainda, que “por amor dela havia de sair fora da religião”. Seduzida por declarações ardentes e promessas, a moça se atrapalhava nos depoimentos. Tanto que, passados mais dois dias, voltou novamente à presença do comissário para declarar que o padre lhe garantira que, “se consentisse com ele lhe daria remédio para que ficando corrupta parecesse virgem e que para não conceber lhe daria também remédio”.

Pior sorte teve certa Luzia de Souza Vieira, casada com um pedreiro na Paraíba. Doente, de cama, mandou chamar para confessá-la um franciscano, frei Raimundo de Santo Antonio, que a solicitou para atos torpes, além de forçar e ter cópula carnal com a pobre doentinha. Muitas tiveram o atestado de confissão recusado por padres, pois não consentiam em pecar com eles. Ou, conhecedoras da malícia de certos confessores, negavam-lhes a informação correta sobre pecados que cometessem. Caso, por exemplo, de certa Maria da Silva, viúva sergipana, amancebada havia anos com um baiano useiro e vezeiro na “prática do pecado nefando de sodomia”, que declarava não admiti-lo ao confessor. Temia dar-lhe ideias.

Românticos não eram raros. E havia alguns como o padre Francisco Xavier Tavares, capaz de uma súplica cavalheiresca a Maria Joaquina da Assunção, mulher casada: “se queria ter com ele uns amores e se consentia que ele fosse a sua casa”. Outros confessores chegavam a requintes galantes, ofertando flores às suas escolhidas em pleno confessionário ou fazendo como padre Custódio Bernardo Fernandes, que, no Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, dissera a Catarina Vitória de Jesus que lhe queria bem. Mais, perguntando se ela era sua, meteu na boca um raminho, pedindo a ela que o puxasse com seus dentes.

Mas havia também o avesso da história. O confessionário era tido como espaço ideal para abordagem de mulheres diabolicamente sedutoras. Na Bahia, ao receber “um escrito” amoroso da parda Violante Maria, o pároco João Ferreira Ribeiro mandou-lhe um recado “por um mulato seu confidente” para que fosse à igreja de Santo Antônio e, acabada a missa, ter com ele no confessionário. Marcaram então um encontro no caminho que ia para o lago e “lá entraram ambos no mato e teve ele acesso carnal a ela”. É dela que parte a iniciativa da conquista. Não à toa, o pregador frei Antônio das Chagas, renomado franciscano, costumava admoestar: “Confessar e conversar com mulheres me custa... pois ainda que sejam santas, é mais seguro fugir delas”!

Essas atitudes parecem surpreendentes, sobretudo por virem de indivíduos que deveriam atuar como agentes de reforma católica dos costumes. Chocante? Não. As pesquisas têm demonstrado que as ideias reformadoras de católicos e protestantes só lentamente se traduziram em efetivas mudanças de comportamento por parte da população cristã. O processo variou em seu ritmo conforme as regiões atingidas, mesmo se considerarmos apenas o continente europeu. A exportação da Reforma Católica para o além-mar multiplicou as dificuldades normalmente impostas a uma tarefa dessa natureza.

Basta lembrar fatores como as grandes distâncias, a falta de clérigos, a precária estrutura paroquial frente a um imenso território de ocupação populacional dispersa; as peculiaridades culturais de uma sociedade híbrida, na qual se despejavam continuamente, por meio do degredo, indivíduos desviantes da metrópole; os vícios inerentes à escravidão e ao desmedido poder local concedido aos senhores. Isso tudo atrasou a efetivação da Reforma – entendida como projeto da aculturação – na colônia. E retardou a possibilidade de os padres serem homens acima de qualquer suspeita. Como todos os outros, eram feitos de carne e osso.

Mary Del Priori é pós-doutora em História e tem pesquisas nas áreas de história colonial, história da cultura e história de gênero. In: Revista História Viva.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Camponeses revoltados e pés descalços na Europa moderna

Revolta camponesa na Alemanha

Os filósofos e os intelectuais discutiam entre si acerca da ciência e da religião e trocavam cartas. Encontravam-se em reuniões, nas "academias", em salões burgueses de grandes damas parisienses ou nos palácios de certos príncipes europeus.

Mas, para uma grande maioria das pessoas, nada tinha mudado.

* Nas grandes cidades, os pobres e os mendigos contavam-se aos milhares. Um padre, Vicente de Paula, fez muito para lutar contra a pobreza.

Vicente de Paula era filho de um camponês das Landes. Capturado por piratas muçulmanos, foi vendido como escravo em Tunis. Conseguiu escapar e ocupar-se, por algum tempo, dos remadores de galeras. As galeras eram navios a remos utilizados no Mediterrâneo, cujos remadores eram prisioneiros ou condenados, por vezes, por um crime, outras por coisa nenhuma (Luís XV enviava os protestantes para as galeras).

Em seguida, Vicente procurou confortar os doentes pobres e as crianças abandonadas.

* Nos campos, os pobres eram ainda em maior número. A situação era diferente de acordo com cada país europeu.

Na Europa ocidental, a "servidão" tinha quase desaparecido, ou seja, o senhor já não tinha toda a espécie de direitos no que dizia respeito aos camponeses. Os nobres recebiam dinheiro pelas terras arrendadas ou uma parte das colheitas. Alguns camponeses tinham enriquecido - eram os "ricos da aldeia" - mas a maioria vivia na pobreza. Os "jornaleiros" sem terras alugavam a sua "força de trabalho" aos mais favorecidos ou iam para as cidades aumentar ainda mais o número dos infelizes.

Na Europa de Leste, a antiga Moscóvia tornara-se no século XVII numa Rússia poderosa com o czar Pedro o Grande a querer imitar os ocidentais. Os nobres possuíam vastas propriedades e eram, ao mesmo tempo, funcionários que executavam as ordens do czar. Os camponeses, na miséria, acabavam por ser reduzidos à servidão e não tinham o direito de abandonar a terra do senhor.

Entre o século XVI e o século XVIII, os camponeses mais miseráveis revoltaram-se um pouco por toda a Europa.

- Ao sul do Império Germânico, uma grande revolta, chamada Guerra dos Camponeses eclodiu em nome da Reforma de Lutero.

Os camponeses reclamavam a supressão de todos os impostos devidos à Igreja. Foram apoiados pelos artesãos das cidades, por soldados e por filhos de camponeses. Estas pessoas do campo queimavam e destruíam castelos e mosteiros. Os príncipes, sem saber o que fazer, cederam a princípio e depois fugiram, como o bispo de Estrasburgo. Mas Lutero, com receio das violências, acabou por dar razão aos príncipes. Os camponeses foram finalmente derrotados, os seus chefes torturados e condenados à morte, e os príncipes luteranos continuaram a ser poderosos e autoritários.

“Só há uma maneira desse 'povinho' fazer sua obrigação. É constrangendo-o pela lei e pela espada, prendendo-o em cadeias e gaiolas, da mesma forma como se faz com bestas selvagens... melhor a morte de todos os camponeses do que a morte dos príncipes... estrangulem os rebeldes como fariam com cães raivosos.." 
(Lutero, conclamando os príncipes alemães a reprimir a revolta camponesa)



Na Alsácia e na Lorena, províncias que nesse tempo faziam parte do Império, foram muitos os revoltosos.

- No reino de França, os camponeses revoltaram-se contra os impostos do rei. Distinguiam-se agora o clero, a nobreza e o "terceiro estado" (os burgueses e os camponeses). O clero e a nobreza eram as "ordens privilegiadas" e não pagavam impostos ao rei. Só o terceiro estado os pagava. Mas, muitas vezes, os habitantes das cidades eram dispensados pelo rei. O imposto caía sobretudo sobre os camponeses. Estes também deviam taxas e impostos à Igreja.

Devido às muitas guerras, o rei, para manter os seus exércitos, tinha cada vez mais necessidade de dinheiro. Homens ao serviço do rei, com o auxílio de "archeiros" (polícias armados), eram encarregados de colectar o imposto. Para mais, entre batalhas, os soldados residiam nas casas dos habitantes e não hesitavam em roubá-los.

Quando os camponeses já não podiam mais com a miséria, quando os impostos aumentavam muito, surgiam grandes revoltas. A sul do reino, mas também na Normandia, na Bretanha e na Flandres, estes "Farroupilhas", "Pés Descalços", "Bonés Vermelhos", "Lustucrus" e "Tamanqueiros" resolveram lutar.

Houve cerca de 500 revoltas na Aquitânia entre 1590 e 1715.

O sino da igreja da aldeia tocava a rebate e os homens punham-se ao caminho encorajados pelas mulheres. Por vezes, eram conduzidos pelo padre da paróquia, e outras eram protegidos por um pequeno senhor. Descalços ou de socos de madeira e com chapéus de abas muito largas, armados de paus e de forquilhas, estes homens juntavam-se aos revoltados das aldeias vizinhas. Saqueavam alguns castelos, pilhavam as caves em busca de bons vinhos e queimavam os papéis dos gabinetes de impostos.

Por vezes gritavam: "Viva o rei sem gabela!"

O rei continuava a ser para eles uma personagem sagrada, mas recusavam que os seus servidores interviessem na vida da sua aldeia e odiavam os "gabeludos", aqueles que recolhiam a gabela.

A revolta terminou mal, de maneira geral, e alguns rebeldes foram enforcados para servir de exemplo. Durante o reinado de Luís XIV, as tropas reais cercavam os camponeses e os prisioneiros eram massacrados ou enviados para as galeras. Luís XIV, que pretendia representar Deus na Terra, conseguiu dominar as revoltas.

No resto da Europa, em Portugal, na Escócia, em Espanha e no sul de Itália, numerosos grupos de camponeses se revoltaram. E na Rússia um chefe cossaco (um povo que permanecera nómada a sua da planície russa), Stenka Razine, encabeçou uma enorme multidão de camponeses revoltados. Esmagado pelas tropas do czar, foi condenado à morte e torturado. No século XVIII, um outro cossado, Pugatchev, fez com que se revoltassem milhares de camponeses ao fazer-se passar por um czar destronado. Prometeu a supressão dos impostos, da servidão e a distribuição de terras.

A czarina Catarina mobilizou vários exércitos para dominar essas revoltas, mas, depois destas, os problemas nunca mais acabaram completamente na vastidão dos campos da Rússia até as revoluções do século XX.

CITRON, Suzanne. A história dos homens. Lisboa: Terramar, 1999. p. 204-209.

domingo, 21 de outubro de 2012

Fonte histórica, documento, registro, vestígio...


"[...] Fazer história é um fazer artesanal. É uma prática que implica rastrear documentos nos arquivos, interrogar os mortos, decriptar silêncios, interpretar registros orais, escritos ou iconográficos, perceber as funções que tais documentos tinham em dado momento histórico." (DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 9.)

Nos jornais toda a história de uma época

1. Fonte histórica, documento, registro, vestígio são todos termos correlatos para definir tudo aquilo produzido pela humanidade no tempo e no espaço: a herança material e imaterial deixada pelos antepassados que serve de base para a construção do conhecimento histórico. O termo mais clássico para conceituar a fonte histórica é documento. Palavra, no entanto, que, devido às concepções da escola metódica, ou positivista, está atrelada a uma gama de ideias preconcebidas, significando não apenas o registro escrito, mas principalmente, o registro oficial. Vestígio é a palavra atualmente preferida pelos historiadores que defendem que a fonte histórica é mais do que o documento oficial: que os mitos, a fala, o cinema, a literatura, tudo isso, como produtos humanos, torna-se fonte para o conhecimento da história. (SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 158.)

2. De que se utiliza o historiador para exercer o seu ofício? [...] Para reconstituir o quadro geral da sociedade, o historiador dependerá sempre de informações sobre fatos a que não assistiu. Desse modo, ao contrário do romancista, que pode criar seus personagens e inventar os acontecimentos, o historiador deve reconstituir os fatos exatamente como ocorreram. Assim, para atingir seus objetivos, é obrigado a recorrer aos documentos, através dos quais poderá tomar conhecimento dos fatos.


Passaporte português de 1927

Torna-se, então, evidente que a História se faz com documentos - sem eles não há realmente História.

[...] A tarefa do historiador consistiria apenas na simples coleta de informações contidas nos documentos?

[...] Na concepção atual da História os documentos constituem a matéria-prima do historiador, o meio através do qual a História atingirá o seu objeto: a interpretação dos documentos permitirá a compreensão dos fatos históricos.

[...] como [diz] Lucien Febvre, que "toda História é filha de seu tempo" [...] ou, como [diz] Collingwood: "Cada nova geração deve reescrever a História à sua própria maneira".

[...]

Geralmente, reserva-se a designação de documento para "os atos escritos emanados dos poderes públicos ou de particulares, em suma, aos papéis conservados pelos arquivos administrativos ou privados"

Esse conceito, no entanto, dá uma ideia restrita da infinita diversidade dos meios de que dispõe o historiador para compreender a realidade, a vida humana. Justamente por isso, é preferível adotar-se o conceito amplo de Henri Marrou de que "documento é tudo aquilo capaz de nos revelar qualquer coisa sobre o passado do Homem". Ou, então, o de Besselaar, para quem o termo designa "todo e qualquer vestígio do passado, capaz de nos dar informações acerca de um fato ou acontecimento histórico".


Templo romano, Évora, Portugal

É nesta acepção que muitos historiadores empregam, com o mesmo sentido de documento, os termos fonte histórica, testemunho histórico, vestígio histórico, restos históricos, para designar os materiais que permitem a reconstituição do passado. [...]

Hoje, a concepção da História, tornando-se cada vez mais complexa e ampliando continuamente seu campo de estudo, interessa-se em compreender e construir integralmente o passado humano: esse novo sentido globalizante da História leva o historiador a estudar as instituições, o Direito, a Economia, as estruturas sociais, os costumes, a Religião, as Ciências, as Letras, as Artes - enfim, todos os aspectos da vida humana. [...]

[...]


"A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar sobre ele." (BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 79.)

* Classificação das fontes históricas:

- fontes arqueológicas - vestígios da presença humana em material variado (restos de animais, utensílios, fósseis etc.), geralmente não intencionais;

- fontes escritas - traços escritos em material variado (pedra, papiro, papel etc.), geralmente intencionais. De acordo com a intencionalidade, o traço descrito pode ser:

a) fontes de arquivo - se a intenção foi comprovar alguma coisa: todo documento recebido ou redigido por uma pessoa pública ou investida, pela lei ou pelo costume, de uma autoridade especial;

b) fontes literárias - possuem a intenção de informar aos contemporâneos e à posteridade alguma coisa, mas não de comprovar;

- fontes orais - são traços que têm a intenção de informar, mas não possuem um material de transmissão. (AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 70-75.)

"O controle do passado e da memória coletiva pelo aparelho de Estado dirige sua atenção para as fontes. Com muita frequência, ele tem o caráter de uma retenção na fonte [...]. Esse controle estatal [das fontes de documentação histórica] levou a que faces inteiras da história mundial subsistam apenas através daquilo que disseram ou deixaram de dizer os opressores. As revoltas civis chinesas são conhecidas pelo que escreveram os historiadores mandarins, os cartagineses, pelos textos romanos, os albigenses, pelos cronistas reais ou pontifícios. Ora se mutila e se deforma, ora se faz o silêncio completo. No extremo dessa lógica de Estado, os mandarins confucianos chamam "fei" aos rebeldes dissidentes [fei, partícula gramatical negativa, caracteriza os que não existiram e que não contam aos olhos da História]." (CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995. p. 32.)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Arte pré-colombiana das Américas: a arte do Novo Mundo quando ainda era um Velho Mundo

"Pré-colombiano" se refere ao período anterior à chegada de Colombo ao Novo Mundo, antes que os costumes europeus começassem a influenciar os artesãos das Américas do Norte, Central e do Sul. Flechas de 10000 a.C. e cerâmica de 2000 a.C. são provas de quão antiga é a cultura do Novo Mundo. A arte tinha importância vital para a sociedade tribal. Atribuíam-se poderes mágicos a objetos como máscaras e cachimbos, usados nos rituais religiosos. Numa vida de incertezas, esperava-se que esses objetos apaziguassem a natureza e ajudassem a sobrevivência da tribo.

Além de tomarem parte em eventos importantes, como cerimônias de iniciação, enterros e festivais, os objetos belos eram muito valorizados porque os nativos americanos prezavam o costume de dar presentes. Presentes de alta qualidade conferiam prestígio a quem o dava, e os artesãos se esmeravam nos trabalhos em prata, cerâmica, cestaria, tecelagem e miçangas. Os nativos americanos eram também excelentes em pintura mural. Seu estilo tendia para o abstrato, com pictogramas estilizados flutuando ao léu, como nas pinturas em cavernas, sem indicação de fundo ou de primeiro plano.

Muito de sua arte era inspirada por visões. O xamã, sacerdote e curandeiro, reproduzia objetos que os deuses lhe revelavam enquanto estava em transe. Um dos resultados das reproduções desses impulsos subconscientes são as extremamente distorcidas máscaras esquimós, que estão entre as mais originais obras-de-arte já vistas.

Arte nativa americana: exemplos. A arte pré-colombiana se estende das montanhas do Peru às planícies do meio-oeste dos Estados Unidos e ao Alasca. Entre os principais povos artesãos, temos:

[Navajos] Tribos do sudoeste dos Estados Unidos famosas por tapetes com desenhos geométricos coloridos com tinturas herbáceas e minerais, especialmente o vermelho carmim. Os xamãs criavam pinturas na areia com a finalidade de curar doenças, promover a fertilidade e garantir o sucesso das caçadas. A pintura em areia é praticada ainda hoje. Os artistas usam pigmentos naturais, como pó de rochas de várias cores, carvão e pólen de trigo, para criar obras efêmeras nas planícies de areia.

[Hopi] Bonecos kachina esculpidos em raízes de algodoeiro e pintados representam deuses e são utilizados para ensinar religião. Também kivas de cerimoniais subterrâneos no Arizona, decorados com murais pintados com deidades agrícolas.

[Kwakiutl] Tribo da costa noroeste que produzia totens, máscaras, casas e canoas decoradas. Máscaras entalhadas em madeira com traços faciais de exagerado vigor. Obeliscos mortuários e totens indicavam posição social.

[Esquimó] Tribo do Alasca, entalhava máscaras com partes móveis, usadas pelos xamãs; combinações de materiais estranhos de modo surpreendente.

[Maias] No México e na Guatemala, os maias criaram templos enormes em forma de pirâmide em degraus. Imensos templos em pedra calcária ricamente decorados com relevos e hieroglifos. A maior cidade maia foi Tikal (população de setenta mil), onde a mais alta pirâmide media 74 metros. Embora possuísse um calendário sofisticado e conhecimentos de astronomia, a civilização entrou em declínio por volta de 900 d.C.

[Astecas] A Cidade do México era a maior capital e o maior centro urbano desse vasto império. Produziam volumosas imagens de deuses que exigiam sacrifícios humanos. Especialistas em trabalho em ouro.

[Incas] No Peru, famosos pela construção de templos em alvenaria e pelos trabalhos em metalurgia; civilização no auge quando os espanhóis chegaram.

Construtores de taludes. Os nativos americanos sempre foram ambientalistas. Sua filosofia se baseava na unidade da natureza - força materna e ser amada e respeitada - com a humanidade. No Grande Talude da Serpente, em Ohio, construíram um elaborado santuário natural, um local sagrado para enterrar os mortos. Com cerca de 200 metros de extensão, o elevado tem a forma de uma serpente segurando um enorme ovo na boca aberta.


Talude da Grande Serpente (1000 a.C. - 400 d.C.), Ohio

Desde 2000 a.C. as tribos construíam esses montes, alguns com trinta metros de altura, da Flórida até Wisconsin. No Vale do Ohio existem mais de dez mil. Alguns tinham a forma do animal totem da tribo, como um enorme pássaro de asas abertas; outros eram simples domos. Mas fosse qual fosse o formato, os construtores carregavam em cestas milhões de toneladas de areia que despejavam no local. O volume do maior talude ultrapassa o da Grande Pirâmide do Egito. Em alguns foram encontradas câmaras mortuárias internas contendo tesouros arqueológicos, como o corpo de um aristocrata inteiramente vestido de pérolas.

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 20-21.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O processo de unificação da Itália e da Alemanha

Napoleão III e Otto von Bismarck na manhã seguinte à Batalha de Sedan, Wihelm Camphausen

O mapa político da Europa foi redefinido no contexto do Congresso de Viena, quando prevaleceu uma política "de compensações territoriais" às grandes potências, que não levou em consideração as aspirações emancipacionistas de determinadas nacionalidades e, muito menos, as das minorias nacionais.

A Polônia, por exemplo, foi incorporada ao Império Russo czarista desconsiderando-se antigas configurações geopolíticas e a especificidade cultural dos poloneses. Apenas no contexto do pós-Primeira Guerra, é que a Polônia emergiu no cenário político europeu como um Estado Nacional de fato independente.

Assim, entre 1815 e 1871, verificaram-se profundas transformações de ordem geopolítica no continente, em especial na Península Itálica e na Europa Central. Também no século XIX, a questão das nacionalidades europeias foi uma das razões mais significativas para a "explosão" de uma série de movimentos de caráter revolucionário, como os ocorridos em 1830 e 1848.

Conforme observou o historiador René Rémond, "esse século, por direito, pode ser chamado 'o século das revoluções', porque nenhum - até agora - foi tão fértil em levantes, insurreições, guerras civis, ora vitoriosas, ora esmagadas. Essas revoluções têm como pontos comuns o fato de quase todas serem dirigidas contra a ordem estabelecida (regime político, ordem social, às vezes, domínio estrangeiro), quase todas feitas em favor da liberdade, da democracia política ou social, da independência ou unidade nacionais." (RÉMOND, René. Introdução à História de Nosso Tempo. O Século XIX: 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1976. v. 2, p. 13.)

Na década de 1870, ocorreram os processos de unificação da Itália e da Alemanha, que, até então, eram constituídas por várias unidades políticas. Essas denominações (Itália e Alemanha), eram apenas expressões geográficas e culturais. A fragmentação política dificultava o crescimento econômico, uma vez que existiam várias legislações, diversas moedas e barreiras alfandegárias internas que dificultavam a livre-circulação de mercadorias.

Tanto na Itália como na Alemanha, a unificação foi liderada pelos estados mais industrializados: o Reino de Piemonte-Sardenha, na Itália; e o Reino da Prússia, na Alemanha. Nesses reinos, uma rica burguesia (grandes comerciantes e industriais) tinha interesse na criação de um mercado nacional devidamente protegido por tarifas alfandegárias para seus produtos.

Em ambos os casos verificou-se uma conciliação entre burguesias industriais emergentes e aristocratas - na Alemanha, representada pelos junkers e, na Itália, por latifundiários sulistas.

Através de bem sucedidas alianças políticas e de conflitos militares contra países vizinhos poderosos, os reinos de Piemonte-Sardenha e da Prússia lideraram a unificação e, ao mesmo tempo, desenvolveram um projeto político de caráter conservador a fim de evitar a emergência de movimentos sociais de perfil mais democrático e igualitário.

Por isso, nesses dois casos, afirma-se que as unificações foram realizadas "de cima para baixo", com um claro caráter excludente.

Esse caráter conservador das unificações ficou evidenciado no romance O Leopardo, escrito pelo italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1958), em 1956. Nessa obra, o autor aborda o processo de unificação italiana a partir da perspectiva de uma família aristocrática decadente da Sicília, cujo patriarca (Dom Fabrizio, Príncipe de Salinas) se mostra apreensivo com a aparente ascensão da classe média e das camadas populares, simbolizadas pelos "camisas vermelhas" liderados por Garibaldi na década de 1860.

Numa passagem do romance, seu sobrinho Tancredi, no entanto, revela o caráter moderado, excludente, antidemocrático e conciliador (aristocracia e burguesia) desse processo histórico por meio de uma frase lapidar: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude".

BERUTTI, Flávio. Caminhos do homem. Curitiba: Base Editorial, 2010. V. 2. p. 78-79.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Linhas de Nazca (Beija-flor) c. 200 a.C. - c. 500 d.C.

Linhas de Nazca. Artistas desconhecidos

A civilização nazca se desenvolveu entre 200 a.C. e 600 d.C. Embora não exista mais nenhuma estrutura arquitetônica importante, a característica cultural mais notável da civilização - e também seu maior mistério - é a vasta rede de geóglifos conhecidos como Linhas de Nazca, que ficam no deserto e aos pés dos Andes, na planície costeira peruana ao sul de Lima. Esses enormes desenhos no solo criam contornos que consistem de formas geométricas, linhas e imagens de pássaros e animais, entre eles uma aranha, um pelicano, um lagarto e um beija-flor. Os geóglifos cobrem uma área de mais de 450 km², e o maior dos desenhos chega a 305 m de comprimento.

O clima seco e sem vento e o isolamento da planície de Nazca ajudaram a preservar esses enigmáticos geóglifos. As linhas rasas foram feitas removendo-se o óxido de ferro e os pedregulhos do deserto, de modo que o solo branco sob a superfície ficasse exposto, num processo que requeria muita organização e planejamento. O povo nazca precisava de um sistema de medição topográfica que usasse medidas exatas numa escala tão grande que era impossível ver o geóglifo todo de uma só vez. Acredita-se que eles tenham construído torres de observação para ver os geóglifos de um ponto elevado. Pássaros são os temas mais comuns das Linhas de Nazca - até hoje foram descobertos 18 aves -, mas o beija-flor continua sendo a imagem mais reconhecida.

Rodolfo Molina. Linhas de Nazca (Beija-flor). In: FARTHING, Stephen et alli.  Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 18-19.

sábado, 13 de outubro de 2012

A família bizantina

Mosaico bizantino do ano 548 d.C. na basílica de San Vitale, Ravena, Itália. Mostra a imperatriz Teodora e seu séquito, todos em traje de gala.

A família bizantina tem seu fundamento no matrimônio [...]. O noivado, constituído sob as bênçãos do sacerdote, possuía um valor legal e seu rompimento acarretava penas pecuniárias e espirituais. A lei civil proibia o compromisso do noivado às crianças que não tivessem 7 anos e fixava a idade de 12 ou de 14 anos, respectivamente para meninas e rapazes, como limite mínimo para contraírem matrimônio. [...]

As cerimônias nupciais conservavam práticas tradicionais: o noivo acompanhado de músicos vinha buscar a noiva, que ricamente vestida e cercada de grande acompanhamento, se dirigia com o futuro esposo ao templo sob festiva chuva de rosas e violetas.

O casamento e a troca de anéis figuravam entre os ritos essenciais. A entrada solene da esposa na residência do marido e o banquete nupcial [...] integravam as solenidades do casamento. [...]

Raramente a mulher deixava sua casa. Quando o fazia, levava a cabeça coberta por um véu e, em geral, dirigia-se ou para o templo ou para os banhos públicos. Estes constituíam uma tradição e possuíam um horário diferente para as pessoas de cada sexo. [...]

Um grande acontecimento na vida da família era o nascimento de uma criança. A parturiente era assistida por parteiras "em geral sem conhecimentos médicos, mas bem providas de receitas supersticiosas [...]".

Via de regra, uma semana após o nascimento a criança era levada à igreja para a cerimônia batismal, cujo rito mais em uso era tríplice imersão.

Antes de efetuar o batizado, o sacerdote dava ao recém-nascido o nome escolhido pelo padrinho, que se mantinha junto ao afilhado com uma vela acesa. [...]

Conserva-se o antigo costume de fazer seguir o nome individual pelo nome do pai, o qual se passa a acrescentar o vocábulo poulos (filho).

GIORDANI, Mário Curtis. História do Império Bizantino. Petrópolis: Vozes, 1997.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Elementos materiais e culturais da civilização europeia

Cabeça de uma estatueta de Tanagra, encontrado perto da Île Tiboulen de Maire

Os europeus de hoje, ao longo dos sucessivos períodos da história, receberam certo número de heranças comuns. Vamos nos transformar em arqueólogos da Europa, primeiro sob a terra, depois nos livros, nas inscrições, nos arquivos, nos museus e na superfície do solo, em busca dos monumentos, das habitações e dos objetos pertencentes a épocas, a técnicas e a estilos diferentes. Em Paris, por exemplo, foram encontrados vestígios pré-históricos ou proto-históricos. Muitos datam da época dos celtas, ou seja, dos gauleses. Podemos vê-los no museu de Saint-Germain-en-Laye. Os gregos instalaram-se mais tarde em alguns lugares da Gália Meridional, principalmente em Marselha. As escavações feitas nos sítios arqueológicos do Velho-Porto permitiram que esse antigo estrato grego fosse descoberto. Depois os romanos conquistaram a Gália e deixaram uma camada (estrato) de monumentos e de civilização: teatros e antigos circos romanos em Nîmes, em Fréjus, em Saintes, em Paris; pontes, como o do rio Gard; locais de banho como as termas de Paris. E assim por diante. Em uma cidade como Roma, pode-se encontrar uma igreja cristã antiga sobre uma casa romana antiga.

Essa civilização europeia comum é composta de elementos materiais, monumentos e casas (encontram-se casas romanas desde a Grã-Bretanha até a Andaluzia e na Sicília), mas principalmente elementos culturais. Inúmeras palavras têm a mesma origem (o substantivo latino para rosa é encontrado em várias línguas europeias). Importantes estilos artísticos - as artes românica, gótica e barroca - espalharam-se por toda a Europa. Há igrejas góticas da Noruega a Portugal, da Escócia à Polônia. Essa civilização apóia-se principalmente em um espírito comum, maneiras de pensar e de se comportar, o sentimento de pertencer a uma mesma comunidade cultural. É o sentimento, consciente há séculos particularmente entre os europeus cultos, de que existe uma consciência europeia.

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 40-41.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O aparecimento do Estado

Afresco. Palácio de Cnossos, Creta

Junto aos grandes rios, os chefes encarregaram-se de controlar os sistemas de canais. Aí, onde a terra era fértil, os camponeses produziam uma quantidade suficiente de cereais para alimentarem dezenas de milhares de pessoas.

Todas as condições se reuniam então para que aparecesse uma nova organização na vida dos homens.

[Algumas aldeias tornaram-se cidades] As profissões multiplicaram-se e as riquezas também. Entre uma e outra aldeia começou-se a trocar objectos de artesanato e alimentos. O comércio fez assim a sua aparição. As primeiras cidades apareceram cerca de 4000 anos a.C., na Mesopotâmia. A Mesopotâmia é a região fértil situada entre os rios Tigre e Eufrates.

Depois, o vale do Indo, o do Nilo e, mais tarde, o do rio Amarelo na China, viram nascer cidades. No vale do Indo, Harapa e Mohenjo-Daro tinham 60 000 habitantes. Em Mohenjo-Daro as casas eram construídas em torno de um pátio interior. Possuíam mesmo casas de banho. Na China, a primeira cidade conhecida foi fundada cerca de 1900 a.C.

[Como surgiram os primeiros reis] Doravante, na superfície da Terra, os homens viviam de maneiras diferentes. Os caçadores-recolectores era ainda os mais numerosos, por exemplo na América. Em todos os continentes, as pessoas agruparam-se em aldeias. Na África, na Ásia, criadores de gado percorriam grandes extensões de terreno atrás dos seus rebanhos. E, nas primeiras cidades do Médio Oriente, surgem ainda novas mudanças.

Entre os caçadores-recolectores não havia propriamente ninguém que comandasse, as decisões eram tomadas pelo grupo e, por vezes, pelos homens mais velhos.

Mas nas cidades, um chefe único, descendente de uma grande família conseguiu impor a sua autoridade. Ele tornou-se rei fazendo crer aos outros que era protegido pelos deuses. Os sacerdotes, que pertenciam às famílias ricas, apoiavam-no. Os templos desempenhavam um papel muito importante. Eram ao mesmo tempo entrepostos de mercadorias e lugares de culto.

[O rei e seus funcionários] O rei, cada vez mais poderoso, rodeava-se de pessoas que executavam as suas ordens e as faziam respeitar pela população. Desde então, o poder de decidir pertencia ao rei, que governava sozinho com a ajuda de funcionários, homens que deviam obedecer às suas ordens. Tinha nascido o Estado, ou seja, um conjunto de pessoas que decide e dá instruções aos outros. Os camponeses e os artesãos apenas tinham que se submeter. A cidade tinha-se tornado numa cidade-estado governada por um rei.

[Uma praga para a humanidade: a guerra] Será que a guerra, que nunca deixou de assolar a história do homem, existiu sempre? Ou foi uma terrível invenção que acompanhou as outras grandes mudanças do Neolítico?

É uma questão muito grave e muito difícil, sobre a qual os estudiosos discutem há muito tempo. E eles nunca estiveram todos de acordo. A violência é, sem dúvida, uma característica do homem, desde o tempo dos austrolopitecos. Os caçadores do Paleolítico davam largas à sua agressividade na caça; provam-no as hecatombes de mamutes. Mas a caça servia para se sustentarem.

Os caçadores-recolectores cuja maneira de viver foi estudada por etnólogos não tinham todos a mesma atitude. Por exemplo, os esquimós ignoravam a guerra, e ainda hoje a ignoram. Por outro lado, certos grupos de índios da América praticavam-na contra outros índios. Mas essas guerras eram ataques breves, incursões de surpresa. Tinham, sobretudo, por objectivo, o prestígio do guerreiro que obtém o escalpe do inimigo que matou. As guerras não impediam as dádivas recíprocas e os hábitos de troca entre os clãs.

[Escaramuças e pilhagens através de grandes expedições armadas] Quando as riquezas aumentaram, quando os aldeãos fizeram grandes armazenamentos, a guerra começou a ter outro objectivo. A separação entre os agricultores instalados nas suas aldeias e os criadores de gado que continuavam a ser nómadas, atrás dos seus rebanhos, agravou a violência entre os homens. Clãs de criadores de gado foram tentados a pilhar os celeiros dos aldeãos.

A partir do nascimento das cidades-estados, os reis, não contentes por reinarem apenas a sua cidade, procuraram expandir os seus territórios. Graças à metalurgia do bronze, os chefes dispunham de armas novas mais eficazes. Os reis, em luta uns contra os outros, criaram exércitos, ou seja, juntaram homens cuja tarefa era combater. As guerras multiplicaram-se.

[Uma outra praga: a escravatura] Nas suas campanhas assassinas, os guerreiros começaram a fazer numerosos prisioneiros. E um terrível hábito nasceu do triunfo dos fortes sobre os fracos: a escravatura. Os prisioneiros foram deportados para as cidades-estados vitoriosas, e homens, mulheres e crianças tornaram-se os escravos do rei e das grandes famílias. Isto quer dizer que eram a propriedade de outros homens, que dispunham inteiramente das suas vidas e das suas mortes. As crianças que nasciam de pais escravos sê-lo iam, por sua vez. Angariar escravos tornou-se um outro objectivo da guerra. Os escravos eram indispensáveis para os grandes trabalhos que os reis mais poderosos tinham iniciado.

No Médio Oriente, graças às suas vitórias, certos reis apoderaram-se de vastos territórios. Nasciam assim os primeiros impérios, ou seja, a reunião sob o comando de um rei e dos seus funcionários de um grande território com as suas aldeias e cidades. Os mais antigos são Acad e a Suméria a sul da Mesopotâmia. Mas o Império Egípcio é o mais conhecido.

[Grandes impérios, grandes trabalhos, grandes monumentos] À força de vitórias e de derrotas, em todo o Médio Oriente, numerosos impérios surgiram e desapareceram durante vários milhares de anos.

Do mesmo modo, quando a agricultura se tornou próspera, surgiram impérios em outras partes do mundo: na China e nos Andes, na América do Sul. Os chefes desses grandes impérios rivalizavam no orgulho. Queriam mostrar as suas riquezas aos olhos de todos e adular os sacerdotes que os apoiavam. Tinham como ponto de honra construir os maiores e os mais belos monumentos, palácios, templos ou túmulos. Ainda hoje se podem admirar alguns. As pirâmides do Egipto são os mais célebres.

Mas houve muitos outros monumentos desses. Foi necessário o trabalho de milhares de escravos. de camponeses e de artesãos para criar essas "maravilhas do mundo".

[Todas as maravilhas do mundo] Os megálitos encontram-se entre os mais antigos monumentos do mundo. Trata-se de enormes pedras que foram levantados cerca de 3000 a.C., e que serviam de túmulos. Encontramo-los dispersos em torno do oceano Atlântico e do norte da Grã-Bretanha até o sul de Espanha.

Mais ou menos na mesma altura, dois magníficos templos ornados de mosaicos, de pedras preciosas e de diamantes foram construídos em Uruk.

As pirâmides egípcias de Gizé remontam a cerca de 2500 a.C.

Ao sul da Mesopotâmia os zigurates eram enormes edifícios de tijolos. Eram construídos em terraços tendo ao alto um templo consagrado a um dos deuses da cidade. Os primeiros foram construídos cerca de 2000 a.C.

Na ilha de Creta, o palácio mais antigo, o de Cnossos, data dessa mesma época.

CITRON, Suzanne. A história dos homens. Lisboa: Terramar, 1998. p. 37-43.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Jericó

Base das muralhas de Jericó

A Bíblia diz que Josué e os israelitas criaram uma confusão que derrubou os muros de Jericó, uma cidade em Canaã. Jericó pode ser a cidade mais antiga do mundo, pelo menos a mais antiga já encontrada, anterior até às primeiras civilizações que viveram ao longo dos Rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque. O que a Bíblia não diz é que os muros de Jericó de, talvez, 3200 anos atrás, foram construídos sobre outros muros, que haviam sido construídos sobre outros  (talvez por isso, os muros de Jericó tenham tombado com tanta facilidade quando Josué e seu destacamento chegaram). Os cientistas datam as primeiras edificações como sendo anteriores a 9000 a.C., aproximadamente 11 mil anos atrás. [...]

Que tipo de cidade era Jericó? Os cientistas sabem como ela foi construída e que os quadrantes eram, inicialmente, redondos e depois passaram a ser retangulares. Os pesquisadores especulam sobre o estilo de vida dos residentes com base no que foi encontrado no solo. Por exemplo, crânios humanos que se encaixavam em rostos de gesso bastante realistas podem ter sido reconstruções macabras dos entes queridos mortos ou de inimigos assassinados.

O mais importante é que os muros e a grande torre de pedra de Jericó contam uma história. Eles mostram aos pesquisadores que os moradores trabalhavam juntos por um único objetivo: construir estruturas civis que forneciam defesa para a comunidade. Trabalhar junto e de forma organizada, seja de maneira voluntária ou sob as ordens de um governante, é um sinal de civilização.

Infelizmente, os arqueólogos não sabem os nomes e as histórias que passaram de geração a geração em Jericó. Jericó nasceu muito antes da história escrita. A civilização não esperou por uma maneira de escrever para que as gerações futuras pudessem ler sobre seus primórdios.

HAUGEN, Peter. História do mundo para leigos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2011. p. 44.

domingo, 7 de outubro de 2012

A Biblioteca de Assurbanipal

Neto de Senaquerib e filho de Assur-hadon, Assurbanipal (668 a.C. - 626 a.C.) foi o último grande rei da Assíria. Conquistador, que venceu os egípcios, sírios e susianos, guerreando com ferocidade, foi um grande caçador de leões, mas também um intelectual protetor das letras. Em sua capital, Nínive, restaurou o palácio de Senaquerib, acrescentando-lhe várias salas. Aí centralizou a sua famosa biblioteca. Consistia numa imensa coleção de placas de terracota cobertas de ambos os lados de escrita miúda e apertada. O rei mandava copistas nas cidades da Caldéia transcrever o que havia em outras bibliotecas, em tempos diversos. As trinta mil placas de barro eram metodicamente catalogadas e, por vezes, as obras comportavam vários "volumes" sobre um mesmo assunto; principiava então o texto com a mesma frase, como por exemplo: "Outrora o que está acima, 1", "Outrora o que está acima, 2", etc. Todos os escritos levavam o nome do rei, orgulhoso do título de protetor das letras. Em Der-Sarukin também existia uma biblioteca, menos rica, porém, ao que a de Nínive, da qual era encarregado o escriba Narasumidin.

Placa contendo parte da Epopéia de Gilgamesh

Assurbanipal costumava ouvir a leitura de suas campanhas e de suas vitórias, mas dava preferência a textos relativos a oráculos por meio dos quais a vontade dos deuses lhe era revelada. O amparo e o auxílio que estes lhe pareciam oferecer o animava nas lutas que empreendia. Por isso, todas as atrocidades relatadas nos textos relativos a Assurbanipal, em que descreve o rei que mandou executar, tem referência aos mandamentos de Assur e de Istar.

Entre os poemas de aventuras, contados nos textos de Nínive, encontravam-se as Aventuras de Giges, rei da Lídia, a Descida de Istar aos Infernos, onde foi buscar seu marido, o deus Tamuz, as Proezas do Herói Gilgamés, capaz de enforcar leões, touros, mas vítima da maldição de Istar.

A biblioteca de Nínive, cujas placas foram decifradas na Inglaterra, continha também gramáticas, dicionários, tratados de matemática e de astronomia, livros sobre magia e listas de cidades, de funcionários, relatórios e correspondência.

CARVALHO, Delgado de. História geral 1: Antiguidade. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 77-78.