"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 31 de dezembro de 2016

Somos de música

Retrato de Boabdil, último rei da Espanha muçulmana, século XV. Artista desconhecido


     Quando apuro o ouvido,
escuto músicas que vêm de muito longe,
do passado,
de outros tempos,
de horas que já não são
e de vidas que já não estão.

     Quem sabe as vidas nossas
estejam feitas de música.

     No dia da ressurreição,
meus olhos se abrirão novamente em Sevilha.

(De Boabdil, último rei da Espanha muçulmana)

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 408.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A Guarda Nacional: de cidadãos-soldados a "coronéis"

Batalhão de Fuzileiros da Guarda Nacional (1840–1845), Brito & Braga

Como mecanismo de controle político-social, foi adotado inicialmente o modelo da Guarda Nacional saído da Revolução Francesa, que atuaria da menoridade à República, perdendo importância após a Guerra contra o Paraguai, abrasileirando-se ao longo do período. No início, eram cidadãos-soldados, depois "coronéis" atuando nas políticas locais, engrossando a cultura do mandonismo regional. Em estudo já clássico, publicado em 1977, Jeanne Berrance de Castro mostrou como tal modelo tinha equivalentes nos Estados Unidos (a National Guard) e na França (a Garde Nationale).

No Brasil regencial - a análise é da historiadora -, as tropas de primeira linha atuavam de modo indisciplinado e eram controladas com dificuldade pelo poder civil, o que determinou a criação dessa "milícia cidadã", com estrutura mais sintonizada com o poder civil. Até porque, nos anos agitados de 1830-1831, mais da metade dos 44 generais do Exército brasileiro (26) era composta de naturais de Portugal, além de um inglês e um francês, enquanto os brasileiros natos eram apenas 16.

O estudo vai mais além, ao examinar como, no Brasil colonial, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, essas forças auxiliares permitiram a participação de índios, negros e mestiços em corpos especiais, com atuação importante na guerra aos invasores estrangeiros (holandeses, em particular). Na Guarda Nacional, a inovação foi maior, dada a integração de todos os cidadãos eleitores, independentemente da cor (essa integração aparentemente "fácil" iria ser problemática após 1850).

Primeira grande força nacional, "a Guarda Nacional do Brasil canalizara um movimento popular em direção ao nacionalismo". O próprio nome indicava essa vocação. Lançava-se o ideal do cidadão nacional, formava-se o "patriota". A historiadora examina ainda o sistema de qualificação para a Guarda Nacional no Brasil, notando que, em sua primeira fase, ainda eram as camadas mais baixas da sociedade que supriam seus quadros. E, implicação político-social importante, observa que a milícia cidadã (nunca tendo sido considerada uma reserva militar, apesar de sua intensa atuação nas campanhas de pacificação, sobretudo no Sul) teve eventualmente compromissos com movimentos sociais. No caso da Revolução Praieira, por exemplo, uma das questões postas em pauta pelos rebeldes - a nacionalização do comércio do retalho - já fora levantada pelos jornais da Guarda Nacional em 1836 e 1849. Alerta também para o fato de a própria Revolução ter sido defendida pelo jornal O Guarda Nacional.

Uniformes do Corpo de Cavalaria da Guarda Nacional, Brito & Braga

Em 1850, a milícia já era apontada na Assembleia como "elemento perturbador da tranquilidade pública" e participante dos movimentos revolucionários, como ocorrera na Bahia de 1837 e em Minas Gerais e São Paulo em 1842. Em algumas regiões, tropas que não quiseram participar da repressão (como no caso da Cabanagem, no Pará, e em Minas Gerais em 1842) foram dissolvidas.

Essa primeira fase de sua história (1831-1850) foi relativamente democrática, e também popular em sua composição. O Brasil era pesadamente rural, escravista, conservador, não havia, como na França, uma burguesia, daí ter que aceitar essa atmosfera de homens livres, simples, trabalhadores, mestiços e adaptar-se a ela. Ainda no começo do período regencial, o jornalista Evaristo da Veiga escrevera nas páginas do Aurora Fluminense:

"Não é desonroso a qualquer um ter-se-lhe confiado a defesa de seus bens e a do Estado, entregando-lhe essas espingardas que eram antes trazidas por gente que tantas vezes ameaçou o nosso repouso e propriedades."

É que, àquela altura dos acontecimentos, Evaristo, homem urbano e de modesta condição pequeno-burguesa, confiava mais na superioridade de empregar cidadãos na defesa da segurança nacional, até porque, naquele momento, como se disse, havia inferioridade numérica no Exército.

Tal mudança num mecanismo de poder efetivo foi decisiva, de vez que, com a Guarda Nacional, foram extintos os corpos auxiliares das Milícias e Ordenações, das Guardas Municipais, cabendo agora exclusivamente à Guarda Nacional cuidar da ordem interna. Com a "Briosa" (como era chamada a milícia no século XIX), a Independência adquiria uma forma concreta e, ao mesmo tempo, simbólica e popular. Em síntese, nas palavras da historiadora:

"A Guarda Nacional quebrou também a tradição colonial dos altos postos militares [...] O 'coronelismo' é a retomada posterior dessa situação, porém bem alicerçada num passado colonial dos coronéis das ordenanças, assim como numa série de outros fatores dos quais a Guarda Nacional foi apenas parte."

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 399-401.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

O Conde Maurício de Nassau e suas amantes

Retrato do Conde Maurício de Nassau, Jan de Baen

Um curioso aspecto da presença holandesa no Brasil foi revelado pelo historiador pernambucano Leonardo Dantas Silva: o tratamento que davam às mulheres. Os holandeses comportavam-se de forma mais liberal que os portugueses "no trato da vida do lar e de suas relações em sociedade".

As mulheres holandesas revelavam jovialidade pouco comum às nativas. Baseando-se em escrito do frei Manuel Calado, datado do Recife em abril de 1641, quando o Duque de Bragança, João IV, ascendeu ao trono de Portugal, é ainda Dantas quem mostra que nas festas "se achavam as mais lindas damas e as mais graves mulheres, holandesas, francesas e inglesas, que em Pernambuco havia, e bebiam alegremente melhor que os homens [...]".

Quanto ao adultério, embora punível (holandesas chegaram a ser vergastadas no pelourinho, em público), não era incomum. Dessa prática não escapou o conde João Maurício de Nassau. Segundo o historiador, ele manteve relacionamentos afetivos com várias mulheres, incluindo Dona Anna Paes, mulher de forte personalidade e proprietária do Engenho Casa Forte, que o tratava "de vossa excelência e muito obediente cativa", segundo fórmula da época.

Quando da invasão holandesa, Dona Anna Paes (1612-1678) fora casada com o capitão Pedro Correia da Silva, morto em combate defendendo o Forte São Jorge. Viúva, a jovem Anna, mulher instruída, casou-se com o capitão holandês Charles de Tourlon, oficial da guarda pessoal do Conde de Nassau, mas continuou a viver em seu engenho em Casa Forte. Ainda segundo Dantas Silva, "em 1643, acusado por Nassau de crime de traição, foi Charles de Tourlon preso e remetido de volta à Holanda, tendo falecido na Zelândia em 18 de fevereiro de 1644. Novamente viúva, Anna Paes torna a casar com o conselheiro Gisbert de Wirth, do Conselho de Justiça, em companhia de quem se transfere para a Holanda e aonde vem a falecer em 1672.

O conde de Nassau manteve relações com outras mulheres, como Margarita Soler, jovem senhora "casada com um senhor de engenho, que abandonara o marido, segundo o seu próprio pai, em razão de sua frieza [impotência] e de suas ausências com os seus compromissos matrimoniais". Ela era filha de um espanhol de Valência, o reverendo calvinista Vicente Soler, que fora frade agostiniano e, tendo migrado para a França, adotou o calvinismo.

Das aventuras amorosas de Nassau, Dantas Silva (baseado no historiador José Van den Besselaar), evoca suas ligações com Inês Gertrudes Van Byland, esposa do seu mordomo em Cleve, da qual existe um retrato pintado por Jan de Baen (o mesmo que pintou o retrato de Nassau) no museu daquela cidade da Alemanha: "A vida amorosa de Maurício está por se escrever ainda, e talvez seja impossível reconstruí-la [...]. Maurício, ao contrário de muitos outros príncipes da sua época, não deixou bastardos conhecidos como tais".

Além de mulheres, o conde apreciava também cavalos, com disciplina de colecionador. Na verdade, o conde recebia e estimulava "gentilezas" de moradores, "gentilezas" essas que hoje teriam o nome de propinas...

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 117-8.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Um pai que não ri nunca

Deus pai, Ludovico Mazzolino

Os judeus, os cristãos e os muçulmanos veneram a mesma divindade. É o deus da Bíblia, que responde a três nomes, Yahvé, Deus e Alá, conforme quem o invoque. Os judeus, os cristãos e os muçulmanos matam-se entre si dizendo que obedecem às suas ordens.

Entre as outras religiões, os deuses são ou foram muitos. Numerosos olimpos existiram na Grécia, na Índia, no México, no Peru, no Japão, na China. E ainda assim, o Deus da Bíblia é ciumento. Ciumento de quem? Por que se preocupa tanto com a competência, se Ele é o único e o verdadeiro?

Não te prostrarás diante de nenhum outro deus, pois Yahvé se chama Ciumento, é um deus ciumento. (Êxodo)

Por que castiga nos filhos, e por várias gerações, a infidelidade dos pais?

Eu, Yahvé, teu Deus, castigo a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e a quarta geração dos que me odeiam. (Êxodo)

Por que está sempre tão inseguro? Por que desconfia tanto de seus devotos? Por que necessita ameaçá-los para que o obedeçam? Falando ao vivo e diretamente, ou pela boca dos profetas, adverte:

Se não obedeces à voz de Yahvé, teu Deus, ele te ferirá de tísica, de febre, de inflamação, de gangrena, de aridez. Esposarás uma mulher; e outro homem a fará dele. Pó e areia serão a chuva da tua terra. Semearás em teus campos muita semente, mas a secará o gafanhoto. Plantarás vinhedos, mas não beberás vinho, porque os vermes os devorarão. Vos oferecereis à venda a vossos inimigos como escravos e escravas, mas não haverá comprador. (Deuteronômio)

Durante seis dias se trabalhará, mas o sétimo será sagrado para vós, dia de descanso completo em louvor a Yahvé. Qualquer um que trabalha nesse dia morrerá. (Êxodo)

Aquele que blasfemar o nome de Yahvé será morto. A comunidade inteira o apedrejará. (Levítico)

Mais eficazes são os castigos que as recompensas. A Bíblia é um catálogo de espantosos castigos contra os incrédulos:

Soltarei contra vós as feras selvagens. Vos açoitarei sete vezes mais pelos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos, comereis a carne de vossas filhas. Desembanharei a espada contra vós. Vossa terra será sempre um ermo e vossas cidades uma ruína. (Levítico)

Esse Deus sempre zangado domina o mundo do nosso tempo através de suas três religiões. Não é lá um Deus muito amável, digamos:

Deus ciumento e vingador, Yahvé, rico em ira! Se vinga de seus adversários, guarda rancor de seus inimigos. (Nahum)

Seus dez mandamentos não proíbem a guerra. Ao contrário: Ele manda fazer a guerra. E a sua é uma guerra sem piedade por ninguém, nem mesmo pelos bebês:

Não tenhas compaixão pelo povo de Amalec. Matarás homens e mulheres, crianças e lactantes, bois e ovelhas, camelos e asnos... (Samuel)

Filha de Babel, devastadora: feliz aquele que agarrar teus pequenos e os despedaçar contra as rochas! (Salmos)

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 62-4.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Porão de navio negreiro

Porão de navio negreiro brasileiro, Francis Meynell

O tráfico de escravos, na época chamado de "comércio infame" ou "comércio de almas", representou uma das grandes contradições do Império, e de uma maneira geral do Segundo Reinado. A pressão externa pela abolição do tráfico só aumentou, e, entre 1839 e 1842, a Inglaterra liderou o movimento, intensificando a apreensão de navios negreiros. Em 1845, a chalupa britânica Albatross capturou o navio brasileiro Albanez, com cerca de 750 escravos a bordo, retratados pelo oficial da marinha Francis Meynell. A superlotação e a falta de condições de higiene ficam evidentes nesta imagem de época.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A história que poderia ter sido

Desembarque de Colombo, John Vanderlyn

Cristóvão Colombo não conseguiu descobrir a América, porque não tinha visto e muito menos passaporte.

Pedro Álvares Cabral foi proibido de desembarcar no Brasil, porque podia contagiar de varíola, de sarampo, de gripe e outras pestes desconhecidas no país.

Hernan Cortez e Francisco Pizarro ficaram na vontade de conquistar o México e o Peru, porque não tinham licença para trabalhar.

Pedro de Alvarado bateu na Guatemala e voltou, sem entrar, e Pedro de Valdívia não conseguiu pisar terra do Chile porque não tinham atestado policial de nada-consta.

Os peregrinos do Mayflower foram devolvidos ao mar, porque na costa de Massachusetts não havia vagas de imigração disponíveis.

GALEANO, Eduardo. Bocas do tempo. Porto Alegre: L&PM, 2004. p. 214.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Emma Goldman

Emma Goldman discursando para uma multidão em Union Square, Nova York, 21/05/1916. Fotógrafo desconhecido

No final de 1919, duzentos e cinquenta estrangeiros indesejáveis partiram do porto de Nova York, com a proibição de regressar aos Estados Unidos.

Entre eles, foi para o exílio Emma Goldman, estrangeira de alta periculosidade, que havia estado presa várias vezes por se opor ao serviço militar obrigatório, por difundir métodos anticoncepcionais, por organizar greves e por outros atentados contra a segurança nacional.

Algumas frases de Emma:

A prostituição é o mais alto triunfo do puritanismo.

Haverá por acaso algo mais terrível, mais criminoso, que nossa glorificada e sagrada função da maternidade?

O Reino dos Céus deve ser um lugar terrivelmente aborrecido se os pobres de espírito viverem lá.

Se o voto mudasse alguma coisa, seria ilegal.

Cada sociedade tem os delinquentes que merece.

Todas as guerras são guerras entre ladrões demasiado covardes para lutar, que mandam outros morrer por eles.

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 397.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A arte micênica

Afresco: "A dama de Micenas", ca. 1300-1200 a.C., Acrópole de Micenas. Artistas desconhecidos

Com base no testemunho das únicas provas arqueológicas, a religião parece diferir pouco da religião cretense. Porém, uma vez mais, a leitura das preciosas tabuinhas veio ressaltar as ideias recebidas. Elas permitem identificar os nomes dos principais deuses da Grécia do primeiro milênio: Zeus e Hera, Poseidon, Hermes, Atenas, Artemis, Dioniso talvez, e um Paiawon (Paian, epíteto que será encontrado associado ao Apolo clássico) recebem suas oferendas com regularidade. Também é verdade, uma Potnia, a mestra, em que muitos são tentados a ver a continuação da Grande Mãe cretense, que divide seu poder com as divindades celestes, e a Demeter clássica.

Fragmento de um mural de Orcomeno, retratando a deusa guerreira com capacete de dentes de javali, no centro do culto em Micenas, século XIII a.C. Artistas desconhecidos

Outra diferença atestada, ao contrário, pela arqueologia: uma atenção mais viva ao culto dos mortos, pelo menos com relação aos das famílias principescas. Essa mudança desencadeou o desenvolvimento de uma arquitetura funerária, em grande parte nova.

Houve, a princípio, as "tumbas de poço", cujo agrupamento em círculos de pedras eretas [...] constitui a originalidade de Micenas.

Por volta de 1500 a.C., surgem as "tumbas com câmara" e, por fim, "com cúpula". Perpendicularmente ao flanco de uma colina, entalhavam um corredor de acesso e, depois, uma escavação de forma circular, leitos de pedra, notavelmente dispostos, reforçavam as paredes e, estreitando-se, formavam o teto da escavação; em seguida, era tudo fechado, não se deixando ao ar livre senão o corredor que terminava numa porta. Bastaria, para dar uma ideia da amplitude dos trabalhos realizados mencionar que o corredor alcança 25 metros de comprimento, e a cúpula, 15 metros de diâmetro, bem como de altura.

Era nessas "colméias" ou em sepulturas laterais que depositavam os cadáveres, por vezes em grande número. Tratar-se-ia de sacrifícios humanos celebrados durante as exéquias? Em alguns casos, nada nos autoriza a excluir essa hipótese. De qualquer forma, o morto continuava a viver. Fossas sacrificais, no solo dos corredores, fornecem-nos ossadas de animais e oferendas feitas ao defunto. Numa das tumbas de poço, descobriram-se máscaras de ouro que reproduzem, incluindo, os traços do falecido. Esses túmulos proporcionaram-nos armas, jóias, peças de ourivesaria, facas, navalhas, objetos dos mais variados. Em fins do século XIX, as descobertas de Schliemann provocaram a estupefação universal. Mais tarde verificaram-se novas descobertas, algumas célebres, como a das taças de ouro de Váfio, no sul do Peloponeso, outras que mereciam esta celebridade, como as de Dendra, na Argólida [...].

Em toda essa ourivesaria, nem as matérias-primas, nem a técnica, nem o sentido ornamental, nada revela mudanças reais em relação à arte cretense. O mesmo acontece com a maioria das outras artes, principalmente a pintura, cujos afrescos ornavam as paredes dos palácios. Acentuavam-se certos temas. como o da guerra - no começo, pelo menos - e da caça. Mas as tendências estéticas permaneciam as mesmas. Constatamos, sem surpresa. que elas continuaram a inspirar os artistas cretenses, cuja produção se escoava para a Grécia, e que, por bem ou por mal, lá foram trabalhar; formaram aí discípulos que lhes permaneceram fiéis.

Ao contrário, os micênicos introduziram inovações na arquitetura civil, muito importantes por si mesmos e de eficácia mais duradoura do que as que vemos na arquitetura funerária.

Concernem elas sobretudo à casa, adaptada a um clima menos meridional. Enquanto em Creta o teto era construído sob a forma de terraço, aqui edificavam-no em duplo declive, a fim de permitir o escoamento mais rápido das águas pluviais, menos raras. Além disso, o lar podia ser móvel em Creta, onde o frio era menos intenso. Mas devia ser fixo para os homens vindos de outras latitudes e dotados de outros costumes. Sua fixação deu origem ao elemento essencial da casa, o mégaro. Esse não esperou os Aqueus para surgir no mundo mediterrânico. Encontramo-lo nas ruínas de "Troia II", que data do III milênio, e na Tessália e Beócia, no início do II milênio; talvez se originasse no norte da Ásia Menor, tendo chegado à Europa pelo norte do Egeu. Mas foram os micênios que estabeleceram o seu tipo definitivo e generalizaram a sua adoção: apareceu nas Cíclades por volta de 1500 a.C. e, em seguida, em Creta.

Constitui um corpo de edifício retangular. Para o exterior, depois das colunas que suportam a parte avançada do telhado, há um vestíbulo que recebe ar e luz. Uma parede atravessada por uma porta separa-o de uma grande sala, o mégaro propriamente dito, compartimento aquecido por lareira fixa, redonda, instalada no centro. Não existe chaminé (para a fumaça), mas há uma abertura no telhado, em sentido vertical, sustentada por quatro colunas que enquadram a lareira. Assim aquecido, esse cômodo se torna, naturalmente, o compartimento nobre, o mais decorado, aberto aos hóspedes. É nele que os poemas homéricos situam os banquetes, e será no mégaro do palácio de Ítaca que Ulisses brandirá seu arco contra os pretendentes. Será também do mégaro que derivará o templo grego.

Assim, tendo a casa doravante um centro, os outros elementos organizavam-se como seus anexos. O mesmo de verificou nos palácios que, devido à sua importância, comportavam dois ou até três cômodos com lareira. Apresentaram, pois, um aspecto de desordem menos inextricável. O pátio central regularizou-se, com pórticos e vestíbulos enquadrando as portas. Mesmo sem as fortificações, as ruínas de Tirinto são as de uma nobre vivenda.

De resto, o espírito geral era certamente outro. Menos fantasia: essa apenas tinha livre curso na decoração. Fazendo um esforço no sentido da majestade exterior, que fora negligenciada pelos cretenses, os reis micênicos revelavam novamente que não eram avessos à exibição da força.

Pintura mural no Palácio de Tirinto, representando um homem dançando em cima de um touro, ca. 1890. Ilustração do arqueólogo Heinrich Schliemann

No mesmo espírito, compraziam-se em executar obras grandiosas, que pareciam ultrapassar a escala humana. A fim de construírem suas fortalezas e "colméias", os engenheiros conseguiam manejar enormes blocos de pedra. Por mais canhestra que seja a tentativa de escultura na pedra e da escultura monumental - antes desconhecidas dos cretenses, mas que, também nesse caso, abordavam temas cretenses - por mais disformes, frouxos e pesados que sejam os corpos das duas feras da "Porta das Leoas", em Micenas, tratava-se, não obstante, de uma inovação que se ligava ao gosto dos Aqueus por um estilo grandioso, deliberadamente ostentatório. Pela primeira vez fora do continente asiático e do Egito, concebiam-se obras tão grandiosas, com intuito ao mesmo tempo ornamental e religioso. Do ponto de vista estético, esse esforço abortou. Do ponto de vista técnico, teve êxito, e, com certeza, não foi fácil a tarefa de elevar esse bloco, e a formidável padieira que o sustém sobre os pés-direitos.
Afresco: "Mulher de Micenas", ca. 1300 a.C., Micenas. Artistas desconhecidos

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 49-52. (História geral das civilizações, v. 2)

sábado, 17 de dezembro de 2016

A civilização micênica: organização política, social e econômica

Afresco representando guerreiros armados com capacetes de dente de javali em uma carruagem dual, ca. 1350 a.C., Pilos. Artistas desconhecidos

A importância da herança cretense recolhida pelos micênicos é de tal ordem que, para evitar as repetições inúteis, nos ateremos às diferenças, apesar de tudo sensíveis, entre as duas civilizações, isto é, limitar-nos-emos às novidades que constituem a contribuição dos Aqueus. Esses, com efeito, não as devem à região onde viveram. Entre a Grécia meridional e Creta, a natureza apenas introduz matizes, dos quais o mais importante provém dos rigores ocasionalmente mais acentuados do inverno: nada que pudesse modificar seriamente as condições de existência. Além disso, as civilizações que se haviam manifestado na Grécia até o momento de sua chegada transmitiram-lhes pouca coisa e não dispunham, aliás, senão de muito pouco para legar-lhes: nada que pudesse rivalizar com a civilização cretense. Se, nessas condições, eles se recusaram a calcar inteiramente sua organização e sua vida na dos cretenses, foi porque trouxeram consigo ideias, costumes e hábitos, ao mesmo tempo próprios aos indo-europeus e a homens que viveram longamente em outras áreas, sobretudo, nesse caso especial, nas regiões setentrionais.


Afresco de carruagem, ca. 1200 a.C., Tirinto. Artistas desconhecidos

* Os princípios belicosos. A novidade transparece, de início, na organização política e social, pois os vestígios materiais deixados pelos grandes deste mundo em nada se assemelham aos de Creta.

Os palácios e as grandes tumbas põem-nos em presença de uma pluralidade de príncipes. Esses existiam em Micenas e Tirinto, dois pontos da Argólia, pouco distantes entre si. Mas sua celebridade não deve permitir que esqueçamos a existência de outros, em lugares diversos: na própria Argólida, no oeste e no sul do Peloponeso, na Acrópole de Atenas, na Beócia. A esses estabelecimentos dispersos faltava um Cnossos, incontestavelmente superior a todos. A excepcional riqueza de Micenas em ouro talvez se deva apenas ao acaso dos achados arqueológicos, atestada somente pelos objetos, não é acompanhada de qualquer proeminência na arquitetura e na decoração; mesmo nos poemas homéricos, onde a lembrança da realidade é ampliada pela imaginação, Agamenon, rei de Argos, ou seja, de Micenas, é apenas temporariamente "rei dos reis", em vista de determinada expedição.

O contraste surge ainda mais nítido quando consideramos os palácios em si mesmos. Antes de tudo, são fortalezas, edificadas numa posição cuja defesa é facilitada pela natureza, mais frequentemente numa eminência que se eleva acima da planície local. O acesso é proporcionado por meio de rampas cortadas em ziguezague, portas, escadas cavadas na rocha e poternas secretas. Em parte alguma poupou-se a pedra para a construção desses muros que os gregos denominarão "ciclópicos", tão formidáveis lhes parecerão os blocos que os compunham: na Beócia, numa ilha (Gla) do Lago Copais, a muralha mede 3 quilômetros de periferia; em Tirinto, nos muros de 6 metros de espessura, abrem-se casamatas.

Impossível, em tais condições, pensarmos numa realeza única, ainda que essa concedesse a vassalos poderosos - senhores "feudais", diz-se frequentemente, porque as fortalezas evocam os burgos medievais - certas partes de seu território. Tanto em princípio como de fato, trata-se de príncipes independentes, entre os quais devemos imaginar rivalidades e, portanto, guerras. A hipótese de uma preponderância honorífica, reconhecida a um deles e que justificasse o seu comando nos empreendimentos coletivos, apóia-se apenas na Ilíada. É possível que a Argólida acabasse por predominar; mas Micenas e Tirinto subsistiram lado a lado, e sua coexistência duradoura, em tal proximidade, coloca um problema insolúvel.

Vemos, na realidade, que esses príncipes amam e praticam com frequência a guerra. Fazem-se sepultar com suas armas, capacetes, pesadas espadas que feriam de ponta e de gume, adagas e piques; pelas representações figuradas, conhecemos também suas couraças e escudos, a princípio muito grandes, abrigando o homem como numa torre, e depois, mais manejáveis, arredondados e de menores proporções. Nos intervalos dos combates, exercitavam, assiduamente, a força física na caça, da qual bem mais do que a arte cretense, que já não as ignorava, a arte micênica da época nos transmitiu cenas de violenta energia. Seu ouro, ao menos em parte, provém de rapinagens. Tudo indica que esses indo-europeus, chegando ao sul da Grécia após mil aventuras desconhecidas, abrindo caminho entre povos há muito sedentários, conservam suas predileções belicosas, combinando-as apenas com o sentido de beleza luxuosa, adquirido no contato com os cretenses. Entre eles, o poder ostenta e usa a força, e das mais brutais.


Fragmento de mural representando guerreiros com capacetes de presa de javali, século XIII a.C., Orcomeno. Artistas deconhecidos

* A aristocracia e as classes trabalhadoras. A sociedade sofreu o contragolpe desse estado de coisas.

Apesar da manifesta vontade de imitação, as menos nas representações figuradas que podiam lançar mão de temas anacrônicos, a vida da Corte foi menos brilhante do que em Creta. As mulheres adotam, para suas vestes, penteados e enfeites, as modas de Cnossos e, em Micenas, um afresco mostra-nos algumas exibindo-se no teatro, no primeiro plano de seus camarotes. Mas abandonam as acrobacias e cabe pensar que diminuiu sua liberdade de atitudes exteriores. Na realidade, a vida no coração dos redutos fortificados que constituíam os palácios - menos de 150 metros de comprimento por menos de 50, em Tirinto - não devia ser alegrada por cerimônias muito galantes. Na realidade, também por causa de seu papel militar, o homem, isto é, o guerreiro, devia impor-se sem dificuldade na vida social. Por analogia com outras sociedades indo-europeias e guerreiras, transpondo-se igualmente alguns traços tomados às sociedades homéricas, imaginaríamos, de bom grado, a existência de grupos de "companheiros" ligados ao príncipe por amizade pessoal, quando não por juramento. Mas isso já seria ultrapassar os limites da nossa documentação direta.

O mesmo de verifica com as relações entre as classes dirigentes e as classes trabalhadoras. Encastelados nas elevações, os palácios lembram-nos abrigos de onde os senhores vigiam e exploram o trabalho de seus servos na planície. Tanto mais quanto surge o problema das relações com mas populações anteriores, cuja conquista não poderia determinar o seu total desaparecimento físico: somos tentados a representar seus sobreviventes e sua posteridade submetidos a um estatuto de estrita dependência. Mas a nossa única certeza é a de que uma muralha externa cerca ao mesmo tempo o palácio e a cidade. Ora, essa muralha possui, muitas vezes, um comprimento restrito (750 metros, em Tirinto; um pouco mais de 1200 em Micenas), o que reduz a pouco a superfície da cidade. Nessas condições, o restante da população dispersava-se pelo campo, ou antes, instalava-se no sopé da colina, correndo para trás dos muros em caso de alerta a fim de se refugiar.

A decifração das tabuinhas escritas em linear B veio ressaltar e completar uma imagem sobre a qual, em dúvida, haviam sido projetadas as recordações de Homero. Elas fazem aparecer uma sociedade hierarquizada, tendo a seu comando um Rei (wa-na-ha = anax em grego clássico e não basileus, que designa "funcionários" locais de escalão inferior) e um "comandante de tropas", mestres de impostos, altos dignitários e responsáveis locais, sacerdotes e sacerdotisas ligados aos santuários e, sem dúvida, comunidades aldeãs (damos). Detalham as tarefas dos escravos e as atividades das profissões (têxtil e couro, madeira e metais, armas e cerâmica, além de ungüentos e perfumes). Mostram os lugares de criação de gado ovino e uma agricultura cuja distribuição de tarefas é ainda discutida, mas que assegura aos chefes e ao clero importantes entregas de trigo e azeite.

* O comércio e a riqueza. O acúmulo desses produtos agrícolas e artesanais nos palácios explica como tais Estados e tal sociedade conheceram a riqueza e a expansão. Lentamente, é verdade, e segundo o exemplo de Creta, que acabaram por suplantar após cerca de dois séculos de aprendizado. Mas sua atividade econômica tomou grande impulso depois da destruição de Cnossos.

Construíram-se estradas e mesmo portos. Os habitantes das fortalezas, todas situadas a certa distância do litoral, não se encontravam tão afastados da costa que não pudessem vigiar a vida marítima e, até mesmo, dela participar. A princípio, praticaram a pirataria e, em seguida, dominaram o mar, passando as expedições comerciais a substituir as incursões de pilhagem. Viagens longínquas, por vezes, somado ao que provinha do Cáucaso e chegando em maiores quantidades, o estanho ocidental facilitou a fabricação do bronze; continuaram a importar - por intermédio de quem? - o âmbar do Báltico, ignorado pelos cretenses, mas cujo pálido e misterioso reflexo os indo-europeus aprenderam a apreciar no decorrer de suas permanências nórdicas. Mas os navios micênicos também singraram os mares próximos; os achados de objetos característicos, que nos fornecem informações seguras, atestam a importância e a ampla dispersão da produção metalúrgica e da cerâmica. Vindos do norte, de um clima mais rude, levaram à Grécia a fíbula metálica que lhes permitia prender as mais pesadas vestimentas: os mediterrâneos adotaram-na. Seus bronzes, suas jóias, suas pedras gravadas e, sobretudo, sua cerâmica com uma decoração cada vez mais estilizada, tendendo ao geometrismo, são encontrados em numerosos lugares: na Sicília e na Itália do Sul, nas Cíclades, na costa da Ásia Menor, em Chipre e, por fim, na Fenícia, onde Minet el-Beida, o porto de Ugarit-Ras Chamra, lhes servia de entreposto tão ativo, que nos é lícito considerá-lo uma espécie de colônia de onde a exportação atinge certos pontos do vale do Eufrates.

Espólio de guerra e pirataria, tributos, indústria e comércio: o resultado foi a riqueza. No mundo grego, nenhum lugar forneceu aos arqueólogos tanto ouro quanto Micenas (14 quilos antes dos achados de 1952). Os gregos guardaram a lembrança desse fausto: nos poemas homéricos, "rica em ouro" é o epíteto de Micenas, despojada com o tempo, transformada num simples povoado do território de Argos. De fato, só com o período helenístico e com o lançamento em circulação dos tesouros persas, verificar-se-á, numa região que o produz, um afluxo análogo do mais precioso dos metais.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 42, 45-9. (História geral das civilizações, v. 2)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O Sudão e as culturas mediterrâneas

Cabeça de um prisioneiro núbio. Templo mortuário de Ramsés III, ca. 1184-1153 a.C., Egito

Com limites não muito precisos, o antigo Sudão abrangia uma vasta área da África central, compreendida entre o Atlântico e o mar Vermelho e situada ao sul do Saara. Seu nome originou-se da expressão árabe Bilad al-Sudan, que significa "País dos Negros", com a qual se designava toda a parte da África habitada pelos negros, em oposição à África mediterrânea..

Tratava-se de uma região geograficamente bastante homogênea, constituída por uma grande planície e com um clima quente, que varia do úmido ao seco, mantendo-se constante tanto no interior quanto no litoral. Com uma vegetação típica das savanas, o território sudanês abrigava três importantes bacias hidrográficas: a do Níger, a do Tchad e a do Nilo.

As populações locais possuíam uma organização social e política que pouco variava de grupo para grupo. Os Estados sudaneses eram chefiados por soberanos, aos quais se atribuíam honras divinas e cujas vidas privadas se mantinham em absoluto sigilo. Acreditando que de sua boa forma física dependia a fertilidade do solo, seus súditos costumavam sacrificá-los por motivo de doença ou velhice. Nestes casos, promoviam sua execução ritual, que era seguida de solenes cerimônias fúnebres.

Os Estados sudaneses não eram de tipo feudal. Assim, sua vida política e econômica não se baseava nos privilégios das grandes famílias. Na realidade, apoiavam-se em uma estrutura burocrática formada por funcionários escolhidos pelo rei, que tinham por principal função a cobrança dos impostos necessários à manutenção do soberano e de sua corte.

Os primeiros Estados do Sudão surgiram como expressões de estruturas sobrepostas a comunidades eminentemente rurais. Em alguns casos, a origem de tais organismos relaciona-se a movimentos de conquista, já que muitos deles se desenvolveram a partir de uma progressiva anexação de comunidades tribais preexistentes na região. A época em que os Estados sudaneses se formaram ainda não foi definida com precisão. No entanto, pode-se assegurar a existência de alguns - como os de Ghana, Mali e Songhai - ou de seus núcleos originais já nos primeiros séculos depois de Cristo. O processo de desenvolvimento desses Estados ocorreu, a princípio, no interior do continente. As regiões litorâneas só foram alcançadas muito mais tarde, quando os europeus chegaram à África e foram inauguradas novas correntes de comércio na área.

A faixa setentrional da África, que se estende ao norte do Saara, esteve por mais de um milênio diretamente ligada à vida dos povos mediterrâneos, a seus impérios políticos e a seus movimentos culturais. A Fenícia, por exemplo, manteve em Cartago o seu reduto de maior poderio e prestígio. A expansão macedônica e o helenismo transformaram Alexandria, na foz do Nilo, em um dos principais centros culturais da antiguidade. O Império Romano, por sua vez, ao integrar a África setentrional na unidade política e econômica do Mediterrâneo, favoreceu a difusão do cristianismo no norte do continente, suscitando o desenvolvimento de escolas teológicas e vários movimentos espirituais. Modificando as estruturas políticas e administrativas da África romana e isolando-as da Europa, os vândalos facilitaram as migrações de grupos berberes, provocando grandes mudanças em sua vida política, econômica e social.

A influência mediterrânea na África setentrional tornou-se menos acentuada com a queda do Império Romano, não tendo atingido a África sudanesa, ao sul do Saara. Os domínios cartaginês e romano jamais ultrapassaram o deserto: enquanto Cartago se detinha nos interesses comerciais e marítimos, Roma utilizava o Saara para defender suas províncias dos nômades, ocupando efetivamente apenas o oásis de Germa, na região do Fezam meridional.

A partir do século V a.C., entretanto, começou a haver um intercâmbio entre a África mediterrânea e a África negra. O porto de Leptis Magna, na costa do Mediterrâneo, funcionava provavelmente como escoadouro dos produtos que chegavam pelas rotas comerciais provenientes do sul através do Fezam, enquanto o de Lixus, na costa atlântica do Marrocos, desempenhava o mesmo papel em relação às rotas comerciais que cruzavam o deserto da Mauritânia.

O contato entre berberes do deserto e negros do Sudão foi determinado basicamente pela diversidade do meio ambiente, pelos recursos econômicos e pelas formas de vida predominantes nos dois grupos. As mercadorias que os sudaneses podiam oferecer eram representadas principalmente por escravos, marfim, peles e plumas de avestruz, que trocavam pelo sal extraído das jazidas do Saara. A influência das populações do norte sobre o Sudão não foi, entretanto, apenas comercial. Antigas crônicas referem-se aos primeiros reis de Ghana como homens brancos provenientes do norte, enquanto outras fontes relacionam a origem dos haussa, que habitavam a Nigéria setentrional, a migrações de povos do norte. Talvez esse processo se tenha limitado à fixação de pastores berberes do deserto em regiões cuja população negra já possuía uma organização política própria.

Esses elementos comprovam a existência de relações e de um intercâmbio econômico, político e cultural entre o Sudão e as áreas povoadas pelos berberes, assim como a ação estimulante que estes últimos exerceram sobre o desenvolvimento dos Estados sudaneses. Contudo, procura-se ainda determinar em que medida as populações do Sudão, por meio da mediação dos nômades berberes, sofreram influências das civilizações mediterrâneas, ou em que medida, inversamente, possam ter influído sobre estas, em épocas anteriores à colonização europeia.

HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 40, 42 e 44. Volume 3.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Obrigado, senhor

A construção da Torre de Babel, Pieter Bruegel, o jovem

Na Babilônia, a cidade maldita, que segundo a Bíblia foi puta e mãe de putas, estava sendo erguida aquela torre que era um pecado da arrogância humana.

E o raio da ira não tardou: Deus condenou os construtores a falar línguas diferentes, para que nunca mais ninguém pudesse se entender com ninguém, e a torre ficou para sempre pela metade.

Segundo os antigos hebreus, a diversidade das línguas humanas foi um castigo divino.

Mas talvez, querendo castigar-nos, Deus nos tenha feito o favor de salvar-nos da chatice da língua única.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 38.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Povos das estepes: os kushana

Os kushana. Ásia central, norte da Índia, séc. I a.C. - c. 350 d.C.

Moeda de ouro de Kanishka 

Possivelmente originários de um povo conhecido pelos chineses como Yuezhi, os kushana dominavam uma região no norte da Índia perto de Punjab desde os primórdios do séc. I d.C.

O Império Kushana atingiu seu auge no governo de Kanishka (c. 78-100 d.C.) e abrangeu praticamente todo o norte da Índia, inclusive as grandes cidades de Ujjain e Pataliputra. Sob grande pressão dos persas sassânidas a partir da década de 220 d.C., o Império Kushana se fragmentou, e a ascensão dos Gupta ao sul de seu território na década de 320 d.C. finalmente levou-o ao fim. A arte desse povo, influenciada pela Grécia e pelo budismo (ao qual se converteram), distingue-se por suas elegantes estátuas.

PARKER, Philip. Guia ilustrado Zahar: história mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 145.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Povos das estepes: os hunos

Átila e suas hordas sobre a Itália, Eugène Delacroix

Os hunos. Sul da Rússia, Europa central, Bálcãs, sécs. IV e V d.C.

Mencionados pela primeira vez em 370 d.C., os hunos, que se tornaram os mais temidos e odiados inimigos bárbaros de Roma, eram provavelmente um grupo misto, composto pelos vários povos que eles derrotavam.

Em 434 d.C., o rei huno Rua morreu, e seu filho, Átila, iniciou uma política agressiva, devastando grande parte dos Bálcãs e saqueando uma sequência de cidades em 441-442 d.C., e novamente em 447 d.C. Em 451 d.C., os hunos se voltaram para o oeste, em direção às terras férteis da Gália, mas foram derrotados por uma aliança de última hora entre os romanos do general Aécio e aliados bárbaros. Destemido, Átila entrou na Itália no ano seguinte, mas desistiu de um ataque a Roma, provavelmente devido a uma peste que tinha se propagado naquela cidade. Após a morte do pai, no ano seguinte, os filhos de Átila tentaram em vão manter a integridade do império, mas em um período de 10 anos os hunos praticamente deixaram de existir como um grupo organizado.

PARKER, Philip. Guia ilustrado Zahar: história mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 145.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Povos das estepes: os citas

Arqueiro cita. Cerâmica grega, ca. 530-520 a.C., Oltos

Durante milênios, grupos nômades e seminômades viveram nas estepes - terras de vegetação gramínea que se estendiam da Europa oriental até a China. A história do povo das estepes foi influenciada pelas condições geográficas da terra, e suas migrações geraram conflitos com inúmeras potências, desde os romanos, no Ocidente, até os partos, os sassânidas e o Império Mauria, na Índia.

Batalha entre os citas e os eslavos, Viktor Vasnetsov

Os citas. Ásia central, séc. VI a.C. - séc. II d.C.

Mencionados pela primeira vez em fontes históricas no séc. VI a.C, os citas parecem ter migrado da Ásia central para o sul da Rússia aproximadamente nessa época. Seus guerreiros lutavam com arcos, flechas e machados, quase sempre a cavalo. Usavam barretes de feltro e, a não ser por alguns membros da aristocracia, portavam pouca ou nenhuma proteção como armadura.

Os citas possuíram extensos territórios em diferentes períodos, mas é difícil localizá-los, dada a tendência dos autores gregos e latinos a se referirem indiscriminadamente aos grupos das estepes como "citas". Um grupo, os "citas reais", controlava uma área no sul da Rússia, onde a descoberta em túmulos de estonteantes tesouros em artefatos de ouro indica uma cultura bem desenvolvida.

No séc. II d.C., os citas encontravam-se marginalizados pelos sármatas - povo falante de iraniano recém-chegado -, que, por sua vez, foram derrotados pelos hunos no séc. IV d.C.

Os citas deixaram uma grande quantidade de montes de terra funerários em forma de pirâmides, conhecidos como kurgans, no sul das estepes russas, principalmente em Pazyryk. Ali eram enterrados corpos mumificados de governantes juntamente com os de seus cavalos e muitas oferendas em ouro.

PARKER, Philip. Guia ilustrado Zahar: história mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 144.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

"Brasil" ou "América Portuguesa"?

Mapa de 1565 feito pelo cosmógrafo Giacomo Gastaldi, em que o território já é chamado de Brasil.

Quando nosso país foi descoberto, ele recebeu diversos nomes. O primeiro foi "Ilha de Vera Cruz", porque o achamento foi feito por uma expedição patrocinada pela Ordem de Cristo, cujas bandeiras ostentavam a Cruz de Malta. Por volta de 1505, quando se viu tratar de algo maior, o território passou a ser chamado de "Terra de Santa Cruz", nome que constava de mapas confeccionados nos primeiros anos. Por essa época, alguns portugueses se lembraram de uma lenda medieval a respeito de uma ilha que teria sido descoberta por São Brandão, nomeada de "Brasil", e relacionaram-na com a descoberta de Cabral. O encontro de uma madeira que produzia uma tinta vermelha muito útil para tingir tecidos, o pau-brasil, consagrou no imaginário popular europeu o nome "Brasil", que daí em diante passou a ser empregado nos mapas da primeira metade do século XVI. Um mapa resgatado por um historiador, por exemplo, já usa o nome "Brasil" em 1514.

A expressão "América Portuguesa" servia para distinguir as terras consideradas portuguesas do nome geral do continente, "América", porque esse sugeriria o direito de posse espanhola, mas foi pouco utilizado na época, bem menos que "Brasil". Assim, consideramos o termo "Brasil" mais adequado para contar a história referente a esse território e seus habitantes.

MESGRAVIS, Laima. História do Brasil colônia. São Paulo: Contexto, 2015. p. 12-13.

sábado, 3 de dezembro de 2016

A destruição das antigas sociedades e o despovoamento na Oceania até a partilha colonial

Dançarino havaiano, Giulio Ferrario

A distribuição dos lotes insulares esperou menos pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, o estabelecimento de linhas comerciais regulares e a revelação de certas riquezas, do que pela depressão dos negócios que, entre 1880 e 1895, superexcitou a concorrência e os apetites. Em 1850, Taiti era a única a estar submetida a protetorado. Quando Paris decidiu anexar a Nova Caledônia, a Austrália lançou um protesto. Foi sem entusiasmo que os britânicos incorporaram as Fidji. Bismarck recusa ainda seu apoio à firma Hansemann, que lhe propõe um estabecimento na Nova Guiné. Entretanto, é a entrada em cena da Alemanha que, imediatamente após a falência dos Godeffroy nas Samoa, precipita a partilha dos territórios insulares entre a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e os Estados Unidos. A pena de ganso dos diplomatas é suficiente para levar a termo esta tarefa.

Da mesma forma que a África intertropical. a Oceania sofrera terrivelmente, sendo dizimados seus efetivos humanos. É certo que são suspeitas as avaliações dos primeiros viajantes: não atribuía Cook 200.000 habitantes a Taiti, 300.000 a 400.000 às Havaí? Em 1900 este último arquipélago conta apenas 125.000 habitantes, dos quais somente 20.000 naturais. Sem dúvida alguma, diversas terras perderam três quartos, se não a totalidade, de sua população. Quando o recuo se detém é porque a emigração fecha os claros. Assim como, dado o desaparecimento ou tendência à extinção de tasmanianos, australianos e maoris, a Australásia tornou-se anglo-saxônica; da mesma forma mestiços e asiáticos vieram repovoar a maior parte dos pequenos paraísos em situação desesperadora.

Na verdade a fraca natalidade não é um fato novo, pois as guerras, o canibalismo e as doenças contribuíam para quebrar, em grande parte, o impulso demográfico. Mas os recém-chegados agravaram o mal. Chacinaram, extenuaram pelos trabalhos forçados, deportaram em massa (para o guano, os peruanos e chilenos levam a metade dos indígenas da ilha de Páscoa e os três quartos dos de Nuculailai, nas Elice; a Melanésia despovoa-se em proveito da Austrália tropical). Venderam armas mais mortíferas e álcool. Se não introduzissem a sífilis, a tísica e a tuberculose, que seriam já antigas, difundiram, por outro lado, a varíola e o sarampo. Loti nos escreve a impressão de uma humanidade em agonia, pois o próprio contacto dos brancos, com suas "convenções", seus "hábitos" e seus "vícios", exerce uma influência dissolvente. Gauguin, por sua vez, na sua qualidade de "primitivo", vindo a Taiti para viver "de êxtase, de calma e de arte", deveria sofrer com as mesquinharias infligidas aos indígenas. Que acontecera ao mito taitiano a que Bougainville dera origem? Conviria mesmo ater-se à recomendação de Diderot: "Comerciai com eles, tomai seus produtos, levai-lhes os nossos, mas não os escravizeis?"

SCHNERB, Robert. O século XIX: as civilizações não-europeias; o limiar do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 167-8. (História geral das civilizações, v. 14)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Os tempos da plantação e da mina na Oceania

Vista do interior do Forte de Honolulu, 1853, Paul Emmert

Após 1850 prolongam-se as atividades de pilhagem. Por sua vez, o Estreito de Torres é cenário de um avanço sobre suas ostras perolíferas e adquire o sinistro cognome de "esgoto do Pacífico". Mas desenvolvem-se novas formas de exploração que, aliás, tem como corolário o recurso generalizado ao trabalho forçado.

A partir de 1835 as Havaí chamam a atenção pelas facilidades oferecidas à cultura da cana. Sociedades americanas compram terras, mandam vir chineses, japoneses, filipinos e, depois, portugueses. As Fidji voltam-se para a produção açucareira, após o malogro do algodoeiro, no qual se haviam fundamentado as esperanças, durante a Guerra de Secessão.

Mas a Oceania é tida, sobretudo, como fornecedora de noz de copra. Fala-se de uma civilização do coqueiro, pois esta árvore garante a subsistência dos insulares, dando-lhes não só alimentação e um licor, mas também o material para a construção da choupana e a matéria-prima para fabrico de toda espécie de objetos. Em muitos arquipélagos os indígenas ganham a vida entregando coco aos seus chefes, que tratam com os mercadores. Dada a falta de mão-de-obra nas Samoa, a firma Godeffroy, de Hamburgo, recorre sem grande êxito a melanésios e a cules chineses; nas Salomão faz-se o recrutamento para as Fidji.

Maior ainda é a falta de braços para a exploração do subsolo. Os baleeiros reconheceram a presença de guano em milhares de recifes, por vezes nus e desabitados, e companhias empreenderam a exploração do precioso excremento: é preciso acostar através dos cachopos, subsistir com víveres levados cada três ou quatro meses de Honolulu e de Ápia, arrastar até os pontos de embarque os sacos cheios de adubo; numerosíssimas são as vítimas entre os polinésios, especialmente nas Fênix. Por volta de 1900 começa-se a falar dos fosfatos de Nauru e de Ocean, onde são introduzidos japoneses. Na Nova Caledônia começa a extração do níquel, do cromo e do cobalto, prejudicada pelas más disposições dos canacas, que não admitem também as expropriações de terras feitas em favor dos colonos franceses para a cultura do cafeeiro ou para a criação; em seguida a uma grave revolta, em 1878, as casas de jogo e de ópio de Hong-Kong e Cantão recebem encomenda de cules.

SCHNERB, Robert. O século XIX: as civilizações não-europeias; o limiar do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 164 e 167. (História geral das civilizações, v. 14)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A era dos missionários, dos traficantes e dos baleeiros no Pacífico

Os chefes Waikato e Hongi Hika com o missionário Thomas Kendall, James Barry, 1820

As ilhas esparsas no Grande Oceano, durante o século XIX, continuam a surgir aos olhos dos europeus como um mundo à parte, digno de nota pelo seu isolamento e pela singularidade de seus tipos étnicos. Multiplicam-se as conjeturas relativas às origens e às afinidades, tanto dos "negros orientais" - melanésios e micronésios - quanto dos "selvagens brancos", os polinésios. Cook referira-se aos aos "fenícios do mundo oriental": alguns seguiam as migrações polinésias desde o Egito e uma das hipóteses era de que tratava de algumas "tribos perdidas de Israel". Estas civilizações, em todo o caso, por mais adaptadas que fossem ao seu meio, não haviam ultrapassado o estágio da pedra polida.

Nas pegadas dos exploradores que descreveram um verdadeiro Éden, chegam, simultaneamente, homens persuadidos da existência de uma humanidade pronta a acolher a os recursos das ilhas. Os governos europeus observam uma prudente reserva; Guizot acaba renunciando à política de protetorados, praticada pelo Almirante Dupetit-Thouars, e os franceses conservam apenas Taiti. Aliás, os missionários protestantes pretendem agir como se fossem os próprios regentes das circunscrições indígenas.

A expansão cristã iniciara-se em 1797, em Taiti, com a chegada de Dulf, enviado pela Sociedade Missionária de Londres. Em breve, um pouco por toda partem os reverendos esforçam-se por conquistar os chefes em por seu intermédio, agir sobre as populações. Recomendam a destruição dos ídolos, a renúncia dos tabus, ao canibalismo e às guerras, denunciam a nudez, a tatuagem e as danças rituais, preconizam a monogamia e louvam as vantagens da família, abrem escolas; por vezes, nas Polinésias, investem contra os privilégios dos nobres. Nas ilhas Cook, a Sociedade das Missões estabelece um verdadeiro controle teocrático, transformando em crime a "coabitação fora dos laços do casamento", interditando a saída das choupanas durante a noite. Nas Gambier, o Padre Laval é denunciado pelas autoridades militares franceses como um déspota "ridículo". Há chefes que cedem por medo, mas outros o fazem por cálculo. Frequentemente, o indígena adota ritos mal assimilados. O tabu, por vezes, tivera por fim refrear instintos perversos, agora liberados. Debilitando-se a coesão do grupo, desorganiza-se, por vezes, a atividade social. Além disso, as missões não esquecem que devem subvencionar às suas próprias necessidades; entregam-se ao comércio, cobram direitos sobre a venda de roupas e objetos destinados a seus catecúmenos, não hesitam em fazer fortuna com o tráfico dos nácares perolíferos.

Toda uma fauna de aventureiros abate-se sobre as ilhas. Um dos comerciantes americanos que trocam, na China, peles por seda, fazendo escala no Havaí, tem a ideia de embarcar madeira de sândalo e oferecê-la a seus clientes asiáticos. Outro mercador interessado pelo tripango, uma holotúria apreciada pelos gastrônomos de Cantão, graças ao sabor e às qualidades afrodisíacas. Depois a atenção dos brancos volta-se para a casca de tartaruga e o nácar perolífero. Oferecem tecidos de algodão, facas, fuzis ou rum; mas chegam ao ponto de prender reféns para garantir a entrega das quantidades reclamadas. Todas as ilhas de recifes padecem mais ou menos com a presença das ostras perolíferas. Não é raro que, para cobrir os claros causados pelo escorbuto nas fileiras das tripulações, alguns indígenas sejam embarcados à força. Muitos potentados tiram proveito da cupidez dos brancos: tal é o caso do rei do Havaí que, forçando seus súditos a desleixar as culturas de gêneros alimentícios e a cortar madeira de sândalo, provoca a fome nas suas ilhas.

As visitas dos baleeiros que ali fazem escala não são menos desastrosas. Praticam a troca para conseguir víveres frescos, mas não deixam de abusar das populações, violando as mulheres, raptando ou matando os homens. Regiões como as ilhas da Sociedade, as Fidji, as Marshall e as Carolinas jamais se recompensaram destes estragos.

SCHNERB, Robert. O século XIX: as civilizações não-europeias; o limiar do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 162-4. (História geral das civilizações, v. 14)

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Os libertinos. A libertinagem dos costumes (Parte 5)

O acordo perfeito, Jean-Antoine Watteau

Mas o fato de seguir a natureza, de buscar a voluptuosidade, era facilmente interpretado, em muitos, pela sensibilidade barroca como desencadeamento dos instintos, como paixão de uma liberdade infrene, como rejeição de quaisquer limites. As menoridades, as regências, o tempo de Maria de Médicis, o de Ana d'Áustria, são épocas de galanterias escabrosas, de loucas aventuras, em que gentis-homens como o Conde Bellegarde junto de Henrique IV, os Duques de Guise, o Marechal de Roquelaure, dados às emboscadas, aos saques, às violações, aos incêndios, movidos por ásperas paixões, vivem em orgias furiosas, rixas, duelos, bebedeiras e blasfêmias. Jogam, renegam a Deus [...]. É da moda, entre certa juventude, considerar a religião uma trapaça. No sítio de La Rochelle, alguns oficiais zombaram tanto de um de seus companheiros que falara de Deus, que o obrigaram a solicitar licenciamento. O mesmo acontecia durante a Fronda. A irreligião tornava-se notória entre a nobreza que cercava Gastão de Orléans e Condé. Qual o seu número? Mersenne arquejava: "Só em Paris campeiam 50.000 ateus, no mínimo." Boucher, por volta de 1630, deplorava: "um milhão de espíritos perdidos". Gritos de dor, sem valor estatístico. De 1623 a 1625, houve uma verdadeira crise. Em dois anos apareceram o Romance de Francion, a Musa Amalucada, o Gabinete Satírico, o Parnaso dos Poetas Satíricos, a Quintessência Satírica. Os seus temas giravam em torno da equivalência da devoção e da hipocrisia, do direito do prazer triunfar sobre a regra. Estabeleceu-se o pânico. Os devotos acreditaram numa conjuração. "O ateísmo" tornava-se um fato reconhecido, catalogado, uma força a combater.

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 342. (História geral das civilizações, 9).