"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 17 de dezembro de 2016

A civilização micênica: organização política, social e econômica

Afresco representando guerreiros armados com capacetes de dente de javali em uma carruagem dual, ca. 1350 a.C., Pilos. Artistas desconhecidos

A importância da herança cretense recolhida pelos micênicos é de tal ordem que, para evitar as repetições inúteis, nos ateremos às diferenças, apesar de tudo sensíveis, entre as duas civilizações, isto é, limitar-nos-emos às novidades que constituem a contribuição dos Aqueus. Esses, com efeito, não as devem à região onde viveram. Entre a Grécia meridional e Creta, a natureza apenas introduz matizes, dos quais o mais importante provém dos rigores ocasionalmente mais acentuados do inverno: nada que pudesse modificar seriamente as condições de existência. Além disso, as civilizações que se haviam manifestado na Grécia até o momento de sua chegada transmitiram-lhes pouca coisa e não dispunham, aliás, senão de muito pouco para legar-lhes: nada que pudesse rivalizar com a civilização cretense. Se, nessas condições, eles se recusaram a calcar inteiramente sua organização e sua vida na dos cretenses, foi porque trouxeram consigo ideias, costumes e hábitos, ao mesmo tempo próprios aos indo-europeus e a homens que viveram longamente em outras áreas, sobretudo, nesse caso especial, nas regiões setentrionais.


Afresco de carruagem, ca. 1200 a.C., Tirinto. Artistas desconhecidos

* Os princípios belicosos. A novidade transparece, de início, na organização política e social, pois os vestígios materiais deixados pelos grandes deste mundo em nada se assemelham aos de Creta.

Os palácios e as grandes tumbas põem-nos em presença de uma pluralidade de príncipes. Esses existiam em Micenas e Tirinto, dois pontos da Argólia, pouco distantes entre si. Mas sua celebridade não deve permitir que esqueçamos a existência de outros, em lugares diversos: na própria Argólida, no oeste e no sul do Peloponeso, na Acrópole de Atenas, na Beócia. A esses estabelecimentos dispersos faltava um Cnossos, incontestavelmente superior a todos. A excepcional riqueza de Micenas em ouro talvez se deva apenas ao acaso dos achados arqueológicos, atestada somente pelos objetos, não é acompanhada de qualquer proeminência na arquitetura e na decoração; mesmo nos poemas homéricos, onde a lembrança da realidade é ampliada pela imaginação, Agamenon, rei de Argos, ou seja, de Micenas, é apenas temporariamente "rei dos reis", em vista de determinada expedição.

O contraste surge ainda mais nítido quando consideramos os palácios em si mesmos. Antes de tudo, são fortalezas, edificadas numa posição cuja defesa é facilitada pela natureza, mais frequentemente numa eminência que se eleva acima da planície local. O acesso é proporcionado por meio de rampas cortadas em ziguezague, portas, escadas cavadas na rocha e poternas secretas. Em parte alguma poupou-se a pedra para a construção desses muros que os gregos denominarão "ciclópicos", tão formidáveis lhes parecerão os blocos que os compunham: na Beócia, numa ilha (Gla) do Lago Copais, a muralha mede 3 quilômetros de periferia; em Tirinto, nos muros de 6 metros de espessura, abrem-se casamatas.

Impossível, em tais condições, pensarmos numa realeza única, ainda que essa concedesse a vassalos poderosos - senhores "feudais", diz-se frequentemente, porque as fortalezas evocam os burgos medievais - certas partes de seu território. Tanto em princípio como de fato, trata-se de príncipes independentes, entre os quais devemos imaginar rivalidades e, portanto, guerras. A hipótese de uma preponderância honorífica, reconhecida a um deles e que justificasse o seu comando nos empreendimentos coletivos, apóia-se apenas na Ilíada. É possível que a Argólida acabasse por predominar; mas Micenas e Tirinto subsistiram lado a lado, e sua coexistência duradoura, em tal proximidade, coloca um problema insolúvel.

Vemos, na realidade, que esses príncipes amam e praticam com frequência a guerra. Fazem-se sepultar com suas armas, capacetes, pesadas espadas que feriam de ponta e de gume, adagas e piques; pelas representações figuradas, conhecemos também suas couraças e escudos, a princípio muito grandes, abrigando o homem como numa torre, e depois, mais manejáveis, arredondados e de menores proporções. Nos intervalos dos combates, exercitavam, assiduamente, a força física na caça, da qual bem mais do que a arte cretense, que já não as ignorava, a arte micênica da época nos transmitiu cenas de violenta energia. Seu ouro, ao menos em parte, provém de rapinagens. Tudo indica que esses indo-europeus, chegando ao sul da Grécia após mil aventuras desconhecidas, abrindo caminho entre povos há muito sedentários, conservam suas predileções belicosas, combinando-as apenas com o sentido de beleza luxuosa, adquirido no contato com os cretenses. Entre eles, o poder ostenta e usa a força, e das mais brutais.


Fragmento de mural representando guerreiros com capacetes de presa de javali, século XIII a.C., Orcomeno. Artistas deconhecidos

* A aristocracia e as classes trabalhadoras. A sociedade sofreu o contragolpe desse estado de coisas.

Apesar da manifesta vontade de imitação, as menos nas representações figuradas que podiam lançar mão de temas anacrônicos, a vida da Corte foi menos brilhante do que em Creta. As mulheres adotam, para suas vestes, penteados e enfeites, as modas de Cnossos e, em Micenas, um afresco mostra-nos algumas exibindo-se no teatro, no primeiro plano de seus camarotes. Mas abandonam as acrobacias e cabe pensar que diminuiu sua liberdade de atitudes exteriores. Na realidade, a vida no coração dos redutos fortificados que constituíam os palácios - menos de 150 metros de comprimento por menos de 50, em Tirinto - não devia ser alegrada por cerimônias muito galantes. Na realidade, também por causa de seu papel militar, o homem, isto é, o guerreiro, devia impor-se sem dificuldade na vida social. Por analogia com outras sociedades indo-europeias e guerreiras, transpondo-se igualmente alguns traços tomados às sociedades homéricas, imaginaríamos, de bom grado, a existência de grupos de "companheiros" ligados ao príncipe por amizade pessoal, quando não por juramento. Mas isso já seria ultrapassar os limites da nossa documentação direta.

O mesmo de verifica com as relações entre as classes dirigentes e as classes trabalhadoras. Encastelados nas elevações, os palácios lembram-nos abrigos de onde os senhores vigiam e exploram o trabalho de seus servos na planície. Tanto mais quanto surge o problema das relações com mas populações anteriores, cuja conquista não poderia determinar o seu total desaparecimento físico: somos tentados a representar seus sobreviventes e sua posteridade submetidos a um estatuto de estrita dependência. Mas a nossa única certeza é a de que uma muralha externa cerca ao mesmo tempo o palácio e a cidade. Ora, essa muralha possui, muitas vezes, um comprimento restrito (750 metros, em Tirinto; um pouco mais de 1200 em Micenas), o que reduz a pouco a superfície da cidade. Nessas condições, o restante da população dispersava-se pelo campo, ou antes, instalava-se no sopé da colina, correndo para trás dos muros em caso de alerta a fim de se refugiar.

A decifração das tabuinhas escritas em linear B veio ressaltar e completar uma imagem sobre a qual, em dúvida, haviam sido projetadas as recordações de Homero. Elas fazem aparecer uma sociedade hierarquizada, tendo a seu comando um Rei (wa-na-ha = anax em grego clássico e não basileus, que designa "funcionários" locais de escalão inferior) e um "comandante de tropas", mestres de impostos, altos dignitários e responsáveis locais, sacerdotes e sacerdotisas ligados aos santuários e, sem dúvida, comunidades aldeãs (damos). Detalham as tarefas dos escravos e as atividades das profissões (têxtil e couro, madeira e metais, armas e cerâmica, além de ungüentos e perfumes). Mostram os lugares de criação de gado ovino e uma agricultura cuja distribuição de tarefas é ainda discutida, mas que assegura aos chefes e ao clero importantes entregas de trigo e azeite.

* O comércio e a riqueza. O acúmulo desses produtos agrícolas e artesanais nos palácios explica como tais Estados e tal sociedade conheceram a riqueza e a expansão. Lentamente, é verdade, e segundo o exemplo de Creta, que acabaram por suplantar após cerca de dois séculos de aprendizado. Mas sua atividade econômica tomou grande impulso depois da destruição de Cnossos.

Construíram-se estradas e mesmo portos. Os habitantes das fortalezas, todas situadas a certa distância do litoral, não se encontravam tão afastados da costa que não pudessem vigiar a vida marítima e, até mesmo, dela participar. A princípio, praticaram a pirataria e, em seguida, dominaram o mar, passando as expedições comerciais a substituir as incursões de pilhagem. Viagens longínquas, por vezes, somado ao que provinha do Cáucaso e chegando em maiores quantidades, o estanho ocidental facilitou a fabricação do bronze; continuaram a importar - por intermédio de quem? - o âmbar do Báltico, ignorado pelos cretenses, mas cujo pálido e misterioso reflexo os indo-europeus aprenderam a apreciar no decorrer de suas permanências nórdicas. Mas os navios micênicos também singraram os mares próximos; os achados de objetos característicos, que nos fornecem informações seguras, atestam a importância e a ampla dispersão da produção metalúrgica e da cerâmica. Vindos do norte, de um clima mais rude, levaram à Grécia a fíbula metálica que lhes permitia prender as mais pesadas vestimentas: os mediterrâneos adotaram-na. Seus bronzes, suas jóias, suas pedras gravadas e, sobretudo, sua cerâmica com uma decoração cada vez mais estilizada, tendendo ao geometrismo, são encontrados em numerosos lugares: na Sicília e na Itália do Sul, nas Cíclades, na costa da Ásia Menor, em Chipre e, por fim, na Fenícia, onde Minet el-Beida, o porto de Ugarit-Ras Chamra, lhes servia de entreposto tão ativo, que nos é lícito considerá-lo uma espécie de colônia de onde a exportação atinge certos pontos do vale do Eufrates.

Espólio de guerra e pirataria, tributos, indústria e comércio: o resultado foi a riqueza. No mundo grego, nenhum lugar forneceu aos arqueólogos tanto ouro quanto Micenas (14 quilos antes dos achados de 1952). Os gregos guardaram a lembrança desse fausto: nos poemas homéricos, "rica em ouro" é o epíteto de Micenas, despojada com o tempo, transformada num simples povoado do território de Argos. De fato, só com o período helenístico e com o lançamento em circulação dos tesouros persas, verificar-se-á, numa região que o produz, um afluxo análogo do mais precioso dos metais.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 42, 45-9. (História geral das civilizações, v. 2)

Nenhum comentário:

Postar um comentário