Messalina, Henrique Bernardellli
Entre os anos 60 e 70 eclodiu o fruto tão lentamente amadurecido: a chamada “revolução sexual”. A liberação significou a busca da realização no plano pessoal e a consciência de que “problemas sexuais” não teriam lugar num mundo “normal”. Ao defender a ideia do “direito ao prazer”, os pais da época fabricaram um tipo de sofrimento: o que nascia da ausência do prazer. Ao mesmo tempo, tinha início a democratização da beleza – graças à multiplicação de produtos, academias de body building, consultórios de cirurgia plástica, etc. -, fato que tanto levou à busca do bem-estar quanto às tensões e frustrações por não encontrar. Junto, mas, lentamente, forjava-se a intolerância à doença, à fragilização dos corpos e ao envelhecimento. Sexualidade em dia e saúde davam-se as mãos. O “direito ao prazer” tornou-se norma. E norma cada vez mais interiorizada. Apenas conformando-se a essa regra seria possível sentir-se feliz, alegre e saudável.
Nessa história, um novo ato
abriu-se com o desembarque da pílula anticoncepcional no Brasil. Livres da
sífilis e ainda longe da aids , os jovens podiam experimentar de tudo. O rock and roll, feito sobre e para
adolescentes, introduzia a agenda dos tempos: férias, escola, carros,
velocidade e, o mais importante, amor! A batida pesada, a sonoridade e as
letras indicavam a rebeldia frente aos valores e à autoridade do mundo adulto.
Um desejo sem limite de experimentar a vida hippie
e os cabelos compridos se estabeleciam entre nós. As músicas dos Stones e Bob
Dylan exportavam, mundo afora, a ideia de paz, sexo livre e drogas como
libertação da mente. Os países protestantes – EUA, Inglaterra e Holanda –
consolidavam uma desenvoltura erótica, antes desconhecida. Tudo isso junto não
causou exatamente um milagres, mas, somado a outras transformações econômicas e
políticas, ajudou a empurrar barreiras.
Nas capitais e nos meios estudantis,
os jovens escapavam das malhas apertadas das redes familiares. Encontros
multiplicavam-se em torno de festas, festivais de música, atividades
esportivas, escolas e universidades, cinemas. Os palavrões, antes proibidos,
invadiram a cena, inclusive dos teatros. E o alastramento de boates e clubes
noturnos deixava moças e rapazes cada vez mais soltos. Saber dançar tornou-se o
passaporte para o amor. “Pode vir quente que eu estou fervendo”, na voz do
“Tremendão” Erasmo Carlos e “Gostosa”, na das Frenéticas (“sei que eu sou
bonita e gostosa...”), representavam tentativas de adaptação a um mundo novo e
esforçadamente rebelde. [...]
Por influência dos meios de
comunicação e, sobretudo, da televisão, também o vocabulário passou a evitar
eufemismos. Embora nos anos 60 ainda se utilizasse uma linguagem neutra e
distante para falar de sexo – mencionavam-se, entre dentes, “relações” e
“genitais” -, devagarinho se caminhou para “coito”, “orgasmo” e companhia. Os
adolescentes ainda eram “poupados” pelos adultos de informações mais diretas.
As relações no cotidiano dos
casais começaram a mudar. Carícias se generalizavam e o beijo mais profundo – o
beijo de língua ou french Kiss -,
antes escandaloso e mesmo considerado um atentado ao pudor, passava a ser
sinônimo de paixão. Na cama, novidades. A sexualidade bucal, graças aos avanços
da higiene íntima, se estendeu a outras partes do corpo. As preliminares
ficaram mais longas. A limpeza do corpo e o hedonismo alimentavam carinhos
antes inexistentes. Todo corpo a corpo amoroso tornava-se possível. No quarto,
a maior parte das pessoas ficava nua. Mas no escuro. Amar ainda não era se
abandonar. É bom não esquecer que os adultos dos anos 60 foram educados por
pais extremamente conservadores.
Mas era o início do fim dos amores
que tinham que parar no último estágio: “quero me casar virgem!”. Deixava-se
para trás a “meia-virgem”, aquela na qual as carícias sexuais acabavam “na
portinha”. Na moda, a minissaia despia as coxas. Lia-se Wilhelm Reich, segundo
quem o nazismo e o stalinismo teriam nascido da falta de orgasmos. A ideia de
que os casais, além de amar, deviam ser sexualmente equilibrados começava a ser
discutida por alguns “pra frente”. Era o início do direito ao prazer para
todos, sem que as mulheres fossem penalizadas ao manifestar seu interesse por
alguém.
Elas começavam a poder escolher
entre desobedecer às normas sociais, parentais e familiares. Ficava longe o
tempo em que os maridos davam ordens às esposas, como se fossem seus donos. Um
marido violento não era mais o dono de ninguém, mas apenas um homem bruto. Uma
vez acabado o amor, muitos casais buscavam a separação. Outros faziam o mais
fácil: tinham um “caso”. E, desse ponto de vista, o adultério feminino era uma
saída possível para quem não ousasse romper a aliança.
No pano de fundo, o golpe militar
de 1964 e um conjunto de fatos que aceleraram mudanças. Uma política de
desenvolvimento foi implementada e pôs o país na rota do “milagre econômico”.
Na esteira do progresso, expandiram-se as cidades. Atraídos pelo crescimento da
construção civil, migrantes nordestinos provocaram a concentração e a formação
de um cinturão de miséria nos grandes centros do Sudeste brasileiro. A classe
média deparou-se com uma grande quantidade de novos bens de consumo e com a
possibilidade de financiamento de dívidas. A utilização a televisão foi
fundamental nesse processo. O Brasil emergira subitamente como um dos mais
dinâmicos mercados de TV do terceiro mundo. As compras pelo crediário e as
facilidades de aquisição de aparelhos, no período, expandiram o número de
domicílios com receptores – em 1960, 9,5% das residências urbanas tinham TV; em
1970, essa proporção passou para 40%. Grandes investimentos foram feitos para
implantar as bases de um sistema amplo.
Em meio a isso, os motéis multiplicaram-se.
Pornoshops começaram a abrir,
discretamente, suas portas. As capas de discos passaram a ser ilustradas com
cantoras conhecidas em trajes sugestivos ou de biquíni. O videocassete logo
introduziria o aluguel de fitas pornôs, agora assistidas em domicílio. A música
popular introduziu versos ao mesmo tempo delicados e libertários, resumindo o
espírito da época. Quem não lembra a voz de Ivan Lins cantando a amada
“Vitoriosa por não ter / vergonha de aprender como se goza”. Ou o bolero “Latin
lover”, de João Bosco, cheio de insinuações murmuradas com sensualidade: “Mas
me lembro de uma noite, sua mãe tinha saído / Me falaste de um sinal adquirido
/ Numa queda de patins em Paquetá / - mostra! Doeu? Ainda dói? A voz mais rouca
/ E os beijos / Cometas invadindo o céu da boca”. Ou a queixa da mulher mal
amada: “Na cama és mocho / Tira as mãos de mim”, em canção de Chico Buarque.
Mas também foram anos de massiva
propaganda, de falta de liberdade, de censura e perseguições. Intelectuais,
estudantes e artistas resistiram. Houve prisões, tortura e exílios. Foram os
anos do slogan “Brasil, ame-o ou
deixe-o” e da música de Dom e Ravel, “Esse é um país que vai pra frente”. O
futebol era o grande assunto, bem como “os 90 milhões em ação”.
Foi ao longo dos anos 70, com os
movimentos pela valorização das minorias que a questão da mulher começou a
mudar de forma. A sexualidade deixava de ser considerada algo mágico ou
misterioso que escaparia aos progressos técnicos ou à medicina. A pílula foi
aceita por homens e mulheres, não só porque era confiável, mas, sobretudo, por
ser confortável. O orgasmo simultâneo passou a medir a qualidade das relações e
significava o reconhecimento da capacidade feminina de gozar igual aos homens.
Música, literatura e cinema exibiam a intimidade dos casais, democratizando
informações: “nos lençóis da cama... travesseiros pelo chão”, cantava Roberto
Carlos. Revistas de grande tiragem exploravam questões sexuais, valorizando
corpos idealizados, com uma mensagem: “sejam livres”, enquanto nos artigos de
fundo seguia-se valorizando o sentimento e a o amor. Já a publicidade erotizava
comportamentos para vender qualquer produto. Tudo isso não seria possível sem o
poder dos meios de comunicação modernos e uma cultura de massa, capaz de difundir
modelos e representações sexuais.
Entre 1979 e 1985, aumentou a
mobilização dos diferentes setores da sociedade exigindo a redemocratização do
país, inaugurando novos conflitos e sacudindo o imobilismo das representações
de classe.
E, aos trancos e barrancos,
discutia-se um novo modelo de feminilidade, mas também, de masculinidade.
PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na
história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p. 175-179.