"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

As transformações da intimidade no Brasil

Messalina, Henrique Bernardellli

Entre os anos 60 e 70 eclodiu o fruto tão lentamente amadurecido: a chamada “revolução sexual”. A liberação significou a busca da realização no plano pessoal e a consciência de que “problemas sexuais” não teriam lugar num mundo “normal”. Ao defender a ideia do “direito ao prazer”, os pais da época fabricaram um tipo de sofrimento: o que nascia da ausência do prazer. Ao mesmo tempo, tinha início a democratização da beleza – graças à multiplicação de produtos, academias de body building, consultórios de cirurgia plástica, etc. -, fato que tanto levou à busca do bem-estar quanto às tensões e frustrações por não encontrar. Junto, mas, lentamente, forjava-se a intolerância à doença, à fragilização dos corpos e ao envelhecimento. Sexualidade em dia e saúde davam-se as mãos. O “direito ao prazer” tornou-se norma. E norma cada vez mais interiorizada. Apenas conformando-se a essa regra seria possível sentir-se feliz, alegre e saudável.

Nessa história, um novo ato abriu-se com o desembarque da pílula anticoncepcional no Brasil. Livres da sífilis e ainda longe da aids , os jovens podiam experimentar de tudo. O rock and roll, feito sobre e para adolescentes, introduzia a agenda dos tempos: férias, escola, carros, velocidade e, o mais importante, amor! A batida pesada, a sonoridade e as letras indicavam a rebeldia frente aos valores e à autoridade do mundo adulto. Um desejo sem limite de experimentar a vida hippie e os cabelos compridos se estabeleciam entre nós. As músicas dos Stones e Bob Dylan exportavam, mundo afora, a ideia de paz, sexo livre e drogas como libertação da mente. Os países protestantes – EUA, Inglaterra e Holanda – consolidavam uma desenvoltura erótica, antes desconhecida. Tudo isso junto não causou exatamente um milagres, mas, somado a outras transformações econômicas e políticas, ajudou a empurrar barreiras.

Nas capitais e nos meios estudantis, os jovens escapavam das malhas apertadas das redes familiares. Encontros multiplicavam-se em torno de festas, festivais de música, atividades esportivas, escolas e universidades, cinemas. Os palavrões, antes proibidos, invadiram a cena, inclusive dos teatros. E o alastramento de boates e clubes noturnos deixava moças e rapazes cada vez mais soltos. Saber dançar tornou-se o passaporte para o amor. “Pode vir quente que eu estou fervendo”, na voz do “Tremendão” Erasmo Carlos e “Gostosa”, na das Frenéticas (“sei que eu sou bonita e gostosa...”), representavam tentativas de adaptação a um mundo novo e esforçadamente rebelde. [...]

Por influência dos meios de comunicação e, sobretudo, da televisão, também o vocabulário passou a evitar eufemismos. Embora nos anos 60 ainda se utilizasse uma linguagem neutra e distante para falar de sexo – mencionavam-se, entre dentes, “relações” e “genitais” -, devagarinho se caminhou para “coito”, “orgasmo” e companhia. Os adolescentes ainda eram “poupados” pelos adultos de informações mais diretas.

As relações no cotidiano dos casais começaram a mudar. Carícias se generalizavam e o beijo mais profundo – o beijo de língua ou french Kiss -, antes escandaloso e mesmo considerado um atentado ao pudor, passava a ser sinônimo de paixão. Na cama, novidades. A sexualidade bucal, graças aos avanços da higiene íntima, se estendeu a outras partes do corpo. As preliminares ficaram mais longas. A limpeza do corpo e o hedonismo alimentavam carinhos antes inexistentes. Todo corpo a corpo amoroso tornava-se possível. No quarto, a maior parte das pessoas ficava nua. Mas no escuro. Amar ainda não era se abandonar. É bom não esquecer que os adultos dos anos 60 foram educados por pais extremamente conservadores.

Mas era o início do fim dos amores que tinham que parar no último estágio: “quero me casar virgem!”. Deixava-se para trás a “meia-virgem”, aquela na qual as carícias sexuais acabavam “na portinha”. Na moda, a minissaia despia as coxas. Lia-se Wilhelm Reich, segundo quem o nazismo e o stalinismo teriam nascido da falta de orgasmos. A ideia de que os casais, além de amar, deviam ser sexualmente equilibrados começava a ser discutida por alguns “pra frente”. Era o início do direito ao prazer para todos, sem que as mulheres fossem penalizadas ao manifestar seu interesse por alguém.

Elas começavam a poder escolher entre desobedecer às normas sociais, parentais e familiares. Ficava longe o tempo em que os maridos davam ordens às esposas, como se fossem seus donos. Um marido violento não era mais o dono de ninguém, mas apenas um homem bruto. Uma vez acabado o amor, muitos casais buscavam a separação. Outros faziam o mais fácil: tinham um “caso”. E, desse ponto de vista, o adultério feminino era uma saída possível para quem não ousasse romper a aliança.

No pano de fundo, o golpe militar de 1964 e um conjunto de fatos que aceleraram mudanças. Uma política de desenvolvimento foi implementada e pôs o país na rota do “milagre econômico”. Na esteira do progresso, expandiram-se as cidades. Atraídos pelo crescimento da construção civil, migrantes nordestinos provocaram a concentração e a formação de um cinturão de miséria nos grandes centros do Sudeste brasileiro. A classe média deparou-se com uma grande quantidade de novos bens de consumo e com a possibilidade de financiamento de dívidas. A utilização a televisão foi fundamental nesse processo. O Brasil emergira subitamente como um dos mais dinâmicos mercados de TV do terceiro mundo. As compras pelo crediário e as facilidades de aquisição de aparelhos, no período, expandiram o número de domicílios com receptores – em 1960, 9,5% das residências urbanas tinham TV; em 1970, essa proporção passou para 40%. Grandes investimentos foram feitos para implantar as bases de um sistema amplo.

Em meio a isso, os motéis multiplicaram-se. Pornoshops começaram a abrir, discretamente, suas portas. As capas de discos passaram a ser ilustradas com cantoras conhecidas em trajes sugestivos ou de biquíni. O videocassete logo introduziria o aluguel de fitas pornôs, agora assistidas em domicílio. A música popular introduziu versos ao mesmo tempo delicados e libertários, resumindo o espírito da época. Quem não lembra a voz de Ivan Lins cantando a amada “Vitoriosa por não ter / vergonha de aprender como se goza”. Ou o bolero “Latin lover”, de João Bosco, cheio de insinuações murmuradas com sensualidade: “Mas me lembro de uma noite, sua mãe tinha saído / Me falaste de um sinal adquirido / Numa queda de patins em Paquetá / - mostra! Doeu? Ainda dói? A voz mais rouca / E os beijos / Cometas invadindo o céu da boca”. Ou a queixa da mulher mal amada: “Na cama és mocho / Tira as mãos de mim”, em canção de Chico Buarque.

Mas também foram anos de massiva propaganda, de falta de liberdade, de censura e perseguições. Intelectuais, estudantes e artistas resistiram. Houve prisões, tortura e exílios. Foram os anos do slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” e da música de Dom e Ravel, “Esse é um país que vai pra frente”. O futebol era o grande assunto, bem como “os 90 milhões em ação”.

Foi ao longo dos anos 70, com os movimentos pela valorização das minorias que a questão da mulher começou a mudar de forma. A sexualidade deixava de ser considerada algo mágico ou misterioso que escaparia aos progressos técnicos ou à medicina. A pílula foi aceita por homens e mulheres, não só porque era confiável, mas, sobretudo, por ser confortável. O orgasmo simultâneo passou a medir a qualidade das relações e significava o reconhecimento da capacidade feminina de gozar igual aos homens. Música, literatura e cinema exibiam a intimidade dos casais, democratizando informações: “nos lençóis da cama... travesseiros pelo chão”, cantava Roberto Carlos. Revistas de grande tiragem exploravam questões sexuais, valorizando corpos idealizados, com uma mensagem: “sejam livres”, enquanto nos artigos de fundo seguia-se valorizando o sentimento e a o amor. Já a publicidade erotizava comportamentos para vender qualquer produto. Tudo isso não seria possível sem o poder dos meios de comunicação modernos e uma cultura de massa, capaz de difundir modelos e representações sexuais.

Entre 1979 e 1985, aumentou a mobilização dos diferentes setores da sociedade exigindo a redemocratização do país, inaugurando novos conflitos e sacudindo o imobilismo das representações de classe.

E, aos trancos e barrancos, discutia-se um novo modelo de feminilidade, mas também, de masculinidade.


PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p. 175-179.

domingo, 28 de dezembro de 2014

História de Adriano e do jovem grego

Bustos do Imperador Adriano e de Antínoo. Artistas desconhecidos. 
Foto: SanGavinoEN

De acordo com a Historia Augusta, Adriano compôs pouco antes de sua morte o seguinte poema: 

Animula, vagula, blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis in loca
Pallidula, rigida, nudula,
Nec, ut soles, dabis iocos...

Amanhecia no Nilo, no Outono do ano 130 a.C., quando o imperador Adriano acorda bruscamente com os gritos e lamentos dos seus servos. Sai da tenda preocupado e dirige-se ao rio e fica estupefato com o que vê: uns pescadores egípcios arrastam para a margem o corpo inchado e lívido de um jovem com cerca de vinte anos. Adriano dá um grito de dor e ajoelha-se junto do cadáver, beijando entre lágrimas o rosto azulado que ainda conserva uma notável beleza.

Esta trágica cena do suicídio de Antínoo, o jovem amante do maduro imperador, manteve-se através dos séculos como exemplo emblemático do amor homossexual romântico e infeliz. Em meados do século XX, a escritora francesa Marguerite Yourcenar (lésbica) recupera a complexa figura do governante bético e do seu amor pelo adolescente grego, numas imaginárias, mas bem documentadas, Memórias de Adriano (1951). O livro foi um verdadeiro êxito de vendas e, nas suas múltiplas edições e traduções, o público tomou conhecimento da existência de um imperador romano cujo jovem amante se suicidou por amor.

“Amor, o mais sábio dos deuses... Mas o amor não era responsável por aquela negligência, por aquelas durezas, por aquela indiferença misturada com a paixão como a areia com o ouro que o rio arrasta no seu curso, por aquela rude cegueira de um homem demasiado feliz e que envelhece. Como era possível eu ter sido tão densamente satisfeito? Antínoo estava morto. Longe de amar de mais como Serviano certamente pretendia naquele momento em Roma, eu não o tinha amado bastante para forçar aquela criança a viver”. (Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano)

Públio Élio Adriano nasceu em Itálica, cidade bética, perto da actual Sevilha, a 24 de Janeiro do ano 76 da nossa era. Era patrício do futuro imperador Trajano, ainda parente do seu pai. Desde criança que se afeiçoou à cultura e à arte helênicas e, por isso, os seus companheiros de então apelidavam-no de o Grego. Adriano ficou órfão aos dez anos e a sua tutoria ficou a cargo de um amigo da família chamado Acílio Attiano, representando o parente mais próximo, que era Marcos Úlpio Trajano. Pouco tempo depois, Trajano viajou para a Hispânia como comandante das legiões romanas. A sua mulher, Plotina, afeiçoou-se ao pequeno afilhado e levou-o com eles no seu regresso a Roma.


Imperador Adriano. Artista desconhecido. Ca. 127-128 d.C.

Na capital do Império, sob a protecção de Trajano e de Plotina, Adriano seguiu integralmente as passadas que eram esperadas de um jovem ambicioso e de boa família, cujo destino manifesto era o Senado. Em 97, servia como tribuno militar na Moésia, junto ao Danúbio, quando recebeu ordem para se dirigir à Gália para informar Trajano que o imperador Nerva o tinha adoptado como afilhado. Essa adopção, que na prática equivalia a designá-lo como sucessor, correspondia às manipulações palacianas do influente Lúcio Licínio Sura, amigo íntimo e provável amante de Plotina, que, como ela, sentia um enorme afecto por Adriano. Foi ele que o escolheu para levar a boa nova a Trajano, contra a opinião de Júlio Serviano, intrigante cunhado do futuro imperador. Nerva morreu no ano seguinte e Sura teve de fazer uma nova pirueta política para se assegurar de que seria Trajano a ocupar o trono. A nova imperatriz, que não devia ser muito ciumenta, encomendou-lhe então o apoio da carreira de Adriano, tarefa que Lúcio Licínio cumpriu com entusiasmo. Alguns historiadores acreditam que essa devoção correspondia a algo mais do que uma amigável cumplicidade.

Durante os primeiros anos do reinado de Trajano, a imperatriz e Sura continuaram a proteger Adriano das invejosas maquinações de Serviano. O jovem bético ocupou postos importantes e, com freqüência, muito próximos do imperador, como quando o acompanhou nas vitoriosas campanhas da Dácia. No ano 100, Plotina arranjou para Adriano um casamento de conveniência com uma das netas de Trajano, Víbia Sabina, que tinha apenas treze anos. Adriano manteve o matrimônio em branco, dada a tenra idade da noiva e a sua escassa atracção pelo sexo oposto. E o certo é que nunca chegou a ter filhos dela e, pelo que se supõe, nem sequer tentou. A sua carreira política continuou como tribuno do povo, em 105, e pretor, no ano seguinte. Finalmente, em 108, o seu protector, Lúcio Sura, concedeu-lhe o consulado que tinha ocupado por três vezes consecutivas. Pouco depois, para desolação do ascendente cônsul, Sura morre inesperadamente.

O vazio deixado pela morte do hábil conselheiro provocou a brusca queda de Plotina e de Adriano e a ascensão de uma elite cortesã encabeçada por Júlio Serviano. Pouco se sabe do ostracismo a que foi votado ao afilhado do imperador durante cerca de dez anos. Algumas fontes garantem que, durante esse tempo, foi procônsul em Atenas, o que lhe permitiu aprofundar o seu amor pelo helenismo e estudar a arte e a cultura da Grécia antiga. Entretanto, Trajano empreendia as suas grandes campanhas na frente oriental, conquistando a Partia, a Mesopotâmia, a Síria e a Armênia. Nesse intervalo de tempo, a persistente Plotina recuperou o favor do imperador e, em 117, conseguiu que Adriano fosse designado comandante do exército que ocupava o estratégico enclave da Síria.

Trajano morre de apoplexia durante a sua viagem de regresso a Roma e as legiões proclamaram Adriano imperador. O recém-proclamado imperador iniciou um regresso lento, mas calculado, à capital do império, enquanto Plotina limpava a corte de adversários e os seus partidários obtinham a confirmação do Senado, graças ao antigo tutor Acílio Attiano, agora chefe dos pretorianos, que eliminou os quatro senadores mais recalcitrantes. Adriano chegou ao Palatino no meio de uma certa indiferença popular e não permaneceu muito tempo na cidade, nem nessa ocasião nem ao longo dos seus vinte e um anos de reinado. O seu antecessor deixou-lhe um enorme e caótico império, que abarcava quase todo o mundo conhecido (Roma era chamada Caput mundi), com fronteiras em permanente conflito e constantes levantamentos nas províncias mais rebeldes. O novo imperador dedicou-se a percorrer palmo a palmo o seu inabarcável território, alojando-se nos acampamentos militares e comendo e dormindo com os seus legionários. Mas só entrava em guerra se fosse imprescindível; com uma legislação tolerante e generosa e a construção de caminhos, aquedutos, templos e anfiteatros, integrou e romanizou povos orgulhosos e díspares. Foi então que todo o Império tomou o nome de Roma, que até então apenas designava a metrópole do Tibre.

Serviano continuou as suas intrigas no Senado, acusando o imperador de descurar Roma para agradar aos bárbaros, de ter reduzido as fronteiras de Augusto para não enfrentar os Germanos e de praticar o “vício grego” pelo seu decadente helenismo. Apesar de tudo, o certo é que Adriano foi um dos governantes mais sensatos, cultos e progressistas do Império Romano.

O seu reinado caracterizou-se pela consolidação das fronteiras, pela organização das províncias e pelo incentivo dos serviços e das obras públicas, pela promoção das artes e da agricultura e pela compilação do Edito perpetuo, primeiro esboço do que seria o célebre direito romano. Entre as suas obras mais notáveis contam-se o mausoléu (núcleo do actual castelo de Sant’Angelo, em frente ao Vaticano), o templo de Vênus e o de Júpiter, no local que o templo de Salomão ocupara, em Jerusalém, que reconstruiu com o nome de Aelia Capitolina. O seu enorme gosto pela cultura clássica reflectiu-se no seu empreendimento pela educação, pelas artes, pela filosofia e pela literatura. Apesar dos comentários dos seus adversários, nunca escondeu o seu escasso interesse pelas mulheres, o que o prejudicou politicamente, nem as suas preferências homossexuais, que o levaram a uma trágica experiência nos últimos anos da sua vida.

No ano 123, Adriano tinha quarenta e sete anos e tinha deixado crescer uma barba espessa e curta, que mudou a moda do rosto barbeado estabelecida por Júlio César entre os Romanos.

Nesse ano realizava uma viagem pelas províncias da Ásia Menor e, na cidade de Claudinópolis, conheceu um belo jovem grego chamado Antínoo. O imperador apaixonou-se perdidamente por aquele jovem que, nessa altura, teria entre doze e treze anos. Pouco se sabe da origem da família de Antínoo, excepto que tinha nascido na Bitínia (que, ao que parece, produzia os mais belos jovens da Antiguidade) e que desempenhava as funções de pajem na corte de Nicomedia. As crônicas também registram que, em 125, o imperador o levou consigo na sua viagem de regresso a Roma.


Busto de Antínoo, Artista desconhecido. 
Foto: Marsyas

Adriano permaneceu em Roma durante os três anos seguintes, estada pouco usual, talvez provocada pelo ingresso do seu efebo no paedagogium ou escola imperial. A sua única saída da cidade foi uma visita às Ilhas Britânicas, onde, em 127, erigiu uma muralha de 117 quilómetros, de costa a costa, para conter os aguerridos Caledônios da Escócia. Dada a pouca idade de Antínoo, é provável que a relação sexual entre ambos se tenha concretizado no ano 128, quando o jovem atingiu os dezassete anos e o imperador o levou consigo numa longa viagem pela Grécia, Ásia Menor e Norte da África. Diz-se que, ao chegar ao Egipto, no ano 130, Adriano visitou uma adivinha que lhe vaticinou a morte. Como homem racional e letrado que era, desdenhou do mau augúrio; porém, Antínoo ficou deprimido e inquieto, angustiado pela nefasta profecia.

Na época, existia no mundo romano a crença de que o cumprimento de uma profecia de morte só podia ser evitada se outra pessoa, por amor à vítima, se imolasse em seu lugar. E foi isso precisamente o que decidiu fazer o efebo enamorado: oferecer-se aos deuses para salvar o seu amado.

Adriano tinha-o brindado com o seu afecto e protecção, tinha-o educado e requintado e tinha-o ensinado a desfrutar com plenitude dos prazeres sexuais. Que mais poderia oferecer-lhe, senão a própria vida? Uma noite, pegou num dos barcos do séquito imperial e deixou-se arrastar pela corrente entre as trevas do Nilo. Não voltaria vivo à suas margens.

Alguns autores recusam esta versão romântica da morte de Antínoo. Há quem afirme que foi violado e assassinado por um bando de piratas fluviais, outros supõem que a sua inexperiência náutica levou a que a barca se virasse e que foi engolido pelas águas. Mas a verdade é que o suicídio por amor é o único motivo que oferece certos indícios colaterais, como o desânimo do jovem nos dias anteriores ou o sentimento de culpa de Adriano, que o levou a divinizar Antínoo, fundando uma cidade em sua honra e homenageando-o em templos, monumentos e moedas com a sua efígie e o seu nome. Dois séculos mais tarde, Atanásio, patriarca de Alexandria, condenaria essas sumptuosas honras, demonstrando mais uma vez a intolerância eclesiástica:

“Resoluções e actos que efectivamente tornaram público e testemunharam perante o mundo até que ponto a paixão antinatural do imperador sobrevivia ao seu amado; e em que medida o seu amor era devoto à sua memória, exaltando o seu próprio crime e condenação e deixando à Humanidade um enganoso e notório exemplo da verdadeira origem e linhagem de toda a idolatria.” (Santo Atanásio, 295-373).

É possível que esse desolado arrependimento fosse a causa dos ataques de loucura e de fúria que turvaram a mente do imperador nos últimos anos da sua vida. Animado por inesperados desejos amargos e despóticos, tomou decisões arbitrárias e injustas, que começaram a gerar intrigas e conspirações. Aquele que tinha amado cada pedaço do seu Império cometia agora atropelos despropositados nas províncias, como a repressão violenta e desnecessária da revolta judaica de 134, destruindo cerca de mil aldeias e povoações, provocando um total de 580.000 mortos. As suas legiões entraram em Jerusalém para edificar um santuário a Apolo no lugar do templo de Salomão e para refundar a cidade com um nome romano. Receoso de uma conjura, em 136 mandou assassinar o seu velho adversário Júlio Serviano, bem como o seu neto Pedânio Fusco, possível candidato da imaginária conspiração. Naquela triste etapa final, os excessos e abusos de Adriano recordaram a Roma os piores momentos do reinado de Nero. É provável que o tivessem destituído, se o extraviado imperador não tivesse morrido na em Baía (Nápoles), no dia 10 de Julho de 138, depois de uma lenta e insuportável agonia. Tinha 62 anos e os Romanos não choraram a sua morte, no mausoléu de Sant’Angelo.

“Perdeu Antínoo enquanto navegava no Nilo e chorou por ele como uma mulher.” (Historia Augusta)

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. p. 64-71.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Esconder os cabelos das mulheres: a longa história do véu

Mulher em pé segurando seu véu. Beócia (?). Figurino de terracota, ca. 400-375 a.C. 
Foto: Jastrow

O véu era de uso corrente no mundo mediterrâneo antigo. Mas sem obrigação religiosa. É certo que em vários ritos sacrificais greco-romanos deve-se cobrir a cabeça; mas isso vale para os dois sexos. Nem o Antigo Testamento nem os Evangelhos fazem exigências quanto a isso.

O apóstolo Paulo inova. Na primeira Epístola aos Coríntios (11, 5-10), ele escreve que, nas assembleias, os homens devem se descobrir e as mulheres se cobrir.

Toda mulher que ora ou profetiza, não tendo a cabeça coberta, falta ao respeito ao seu senhor, porque é como se estivesse rapada. Se uma mulher não se cobre com um véu, então corte o cabelo. Ora, se é vergonhoso para a mulher ter os cabelos ou a cabeça rapada, então que se cubra com um véu.

Porque a mulher foi criada para o homem, “a mulher deve trazer o sinal da submissão sobre sua cabeça, por causa dos anjos”. As mulheres devem calar-se nas assembleias. Usar o véu ao profetizarem. Usar o véu como sinal de dependência: “a mulher deve trazer sobre sua cabeça o sinal da autoridade”.

Depois de Paulo, os Pais da Igreja acrescentam exigências. Tertuliano, de sua parte, dedica dois tratados ao que se tornou uma preocupação maior da cristandade nascente: Le Voile dês Virges e La Toilette dês femmes.

Assim, o véu reveste-se de significações múltiplas, religiosas e civis, para com Deus, e para com o homem, seu representante. Ele é sinal de dependência, de pudor, de honra.

O véu é sinal de autoridade: já em Roma, uma mulher casada que sai sem seu lenço, a rica, pode ser constrangida ao divórcio. As moças não usam véu: reivindicam não usá-lo. A mulher casada é propriedade de alguém, logo deve ser velada. O véu é instrumento de pudor. Tertuliano considera as toucas e os lenços insuficientes. É preciso velar o corpo das mulheres, e sua cabeleira, objetos de tentações.

Sinal de virgindade, o véu figura o hímen. O véu da noiva é um véu nupcial que apenas o marido deve retirar, assim como é ele que deflora o hímen. Significa oblação, oferenda, sacrifício da esposa.

Ou ainda, véu de oblação da religiosa, que, no dia em que professa, oferece sua cabeleira a Deus e põe o véu para ele. A Igreja faz do véu das religiosas uma obrigação, o selo de sua castidade e de seu pertencimento a Deus, sobretudo a partir do século IV. A Igreja impõe o véu às religiosas e aconselha-o às demais mulheres; devem, pelo menos, ter a cabeça coberta.

Essa prescrição, por vezes, é difícil de aceitar. Marguerite Audox, em seu romance autobiográfico, Marie-Claire, põe em cena uma religiosa que sofre com essa exigência: “Quando me visto, parece que entro numa casa que está sempre às escuras”, diz a irmã Desiree dês Anges; à noite, ela tira, com prazer, hábito e véu e deixa livres os seus cabelos, para grande escândalo de suas “irmãs”, que suspeitam de que ela tenha traído seus votos de castidade. Véronique “julgou que era vergonhoso para uma religiosa deixar ver seus cabelos”.

A questão do véu foi um ponto central nas discussões do Concílio Vaticano II, entre os clérigos e as religiosas, que pediam para tornar mais leves suas roupas, tão pouco compatíveis com as exigências da vida moderna. Fiéis aos Pais da Igreja, os clérigos, eles próprios dispostos a se laicizar, resistiram e mantiveram a obrigação do véu, simplificando-o, no entanto.

As mulheres de Argel em seu apartamento, Eugène Delacroix

As relações entre o islã e o véu são controversas [...]. Segundo Malek Chebel, o Corão não estabelece nenhuma obrigação a esse respeito. Mas o islã cresceu no seio de culturas mediterrâneas que ocultam as mulheres, as mantêm confinadas (gineceu, harém, mulher escondida da cultura árabe-andaluza). O uso do véu pelas próprias mulheres é complexo, como o mostram, para as argelinas, os romances de Assia Djebar. Num mundo de homens, o véu é, para elas, a única possibilidade de circular no espaço público. Na época da Guerra da Argélia, a “mulher sem sepultura” de Cesareia (Cherchell) dissimula suas ligações com o maquis sob o véu. Hoje, as mulheres iranianas, mesmo sendo muito liberadas, usam o véu para se proteger, abrigar-se do olhar, do poder e dos homens. Sob o véu, elas se vestem como querem.

Mas, e talvez seja um sinal de resistência à arabização, as mulheres berberes não usam véu. As feministas do Magreb, embora minoritárias, fazem da recusa ao uso do véu uma afirmação de sua liberdade: é o que acontece no Marrocos.

Ainda mais quando o fundamentalismo pretende submetê-las a isso. O véu é um símbolo de dominação das mulheres e de seu corpo. Eu te ponho um véu porque tu me pertences, Compreende-se que seja um objeto de discórdia, que, na França, está presente tanto no movimento de reivindicações Ni putes ni soumises [Nem putas nem submissas] quanto aos debates em torno da lei sobre a proibição do véu na escola pública, os quais dividiram as próprias feministas.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 56-58.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Os caminhos da luxúria

Moema, Victor Meirelles

Já no primeiro documento escrito em terras brasileiras, o europeu não escondeu o espanto e o maravilhamento. Em sua carta ao rei, o escrivão Pero Vaz de Caminha registrou aqueles “corpos formosos” e moças “tão bem feitas [...] que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições”, lhes faria vergonha “por não terem a sua como a dela”.

Mas um português daqueles tempos não poderia se limitar ao elogio da nudez. Pelo menos não numa carta do rei. Por isso, Caminha reagiu à tentação das índias tão bem feitas condenando a “falta de civilização” daqueles povos, apesar da “inocência” em mostrar as suas “vergonhas”. “O melhor fruto” que havia na nova terra, ele concluía, era “salvar esta gente”. Estava anunciada uma das funções da colonização: a imposição da fé católica. Mas este intuito oficial esbarraria em hábitos bem mais libertários, à medida que os colonos portugueses passaram a se relacionar com as índias.

Os jesuítas não demoraram a desconstruir a impressão inicial de Caminha, segundo a qual os indígenas seriam “folhas em branco” – prontos a receber e a aceitar o que os portugueses quisessem imprimir neles. Um dos empecilhos ao trabalho de catequização eram os costumes poligâmicos daquelas populações que muitas vezes incluíam casamentos entre chefes e as filhas de suas irmãs como suas principais esposas. Essas uniões simbolizavam a manutenção do poder de determinados clãs indígenas dentro das tribos, e eram tão importantes que os jesuítas pediram à Igreja Católica que permitisse a união entre tios e sobrinhos em alguns casos. Era uma forma de manter aqueles homens com apenas uma mulher (a mais importante), abrindo caminho para que aceitassem a monogamia – este sim, um princípio inegociável para os católicos.

Nos primeiros tempos, os próprios colonos utilizaram o casamento como meio de fortalecer as relações de poder, unindo-se às filhas dos homens mais respeitáveis das tribos. Exemplo desses pioneiros foi o lendário João Ramalho, um dos poucos portugueses que sobreviveram aos 30 primeiros anos de colonização. Ele havia deixado esposa em Portugal, mas não titubeou em casar-se com a filha do cacique Tibiriçá. Teve também outras mulheres e constitui uma grande prole, segundo relatou o Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570). Seguia os costumes indígenas, andando nu e mantendo relações sexuais com várias índias, o que era compreensível dentro da dinâmica da manutenção do poder das tribos. Outros colonos viviam comportamentos semelhantes. Embora ilícitas, as relações esporádicas eram alternativas atraentes para a população colonial em geral, principalmente entre casais mistos (escravos e livres), porque havia menos interferência dos senhores neste tipo de relacionamento e, portanto, mais liberdade para os cativos fugirem das rédeas do poder senhorial.

Pode-se imaginar a desaprovação da Igreja a esse estado de coisas. No século XVI, a Europa impunha-se uma vida regrada sob os poderes religiosos e laico, na qual os desejos deveriam ser refreados pela manutenção de regras de civilidade. Em relação aos hábitos das populações da colônia, valia a máxima de São Tomás de Aquino: era preciso ordenar “paixões e coitos” a fim de manter um equilíbrio indispensável para a conservação da espécie humana.

Na vila de São Paulo, os jesuítas não deixaram de observar – e de se escandalizar – com as relações temporárias e poligâmicas. Além do esforço em batizar e catequizar os indígenas, eles se dedicaram a converter as uniões informais ao matrimônio católico, nem sempre com sucesso. Mesmo sob a vigilância da Igreja Católica e da Inquisição, e sujeitos a sofrerem punições por seu comportamento, João Ramalho e muitos outros continuaram a viver com as índias. Cumpriam o importante papel de povoar um território ainda incipiente em nome da Coroa.

Curioso é que muitos dos primeiros colonos eram degredados por força da Inquisição: haviam sido condenados e enviados à nova terra para purificar seus pecados. Pior do que o degredo para o Brasil, só mesmo a pena de morte. Era um programa de salvação das almas, mas com o risco de que os condenados, em vez de se redimirem, acabassem difundindo suas más práticas e desvios no Novo Mundo. Muitos degredados caíram novamente nas malhas da Inquisição, quando houve a Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil, no final do século XVI (1591-1595). Entre eles, portugueses que se haviam amancebado com índias.

A violência da catequese jesuíta fazia parte da cartilha do colonialismo moderno. Os índios eram vistos como inferiores, demonizados, forçados a abandonar seus costumes. Seu mundo era desprezado, vigiado e punido pela contrarreforma europeia. “O pecado estava em todas as gentes e lugares”, em “ameríndios luxuriosos, colonos insaciáveis [...] senhores desregrados”, escreve Ronaldo Vainfas em Trópicos do pecado (2010). Os pecados relativos à sexualidade estavam presentes entre os mais perseguidos nas confissões, com a Inquisição buscando relatos minuciosos sobre a realização do “ato carnal” em suas mais variadas formas. Estavam em jogo relações de poder, com a Igreja Católica demonstrando sua supremacia e sua influência junto aos poderes do Estado. Contenção, ameaça e castigo eram as bases dessa política – um lógica bem distante do que viviam, na prática, colonos e escravos, portugueses e índios.

A legislação régia reforçava a necessidade de punição para os crimes sexuais, no sentido religioso do termo. O livro V das Ordenações Filipinas (1604) que incluía legislações de períodos anteriores, previa punições para os que cometessem “pecado de sodomia” (sexo anal), o “cristão que dormisse com infiel” (judeus, muçulmanos ou outros “não católicos”), aqueles, incluindo padres, que entrassem “em mosteiro” e tirassem “freira para dormir com ela”, e os que dormissem com suas parentas, com mulheres casadas, virgens, viúvas honestas, além dos bígamos, entre outros casos. As punições variavam: confisco de bens ou sua perda total, tortura até a morte, prisão, degredo ou queima, até os culpados serem “feitos por fogo em pó”. Mas tudo dependia da condição social dos envolvidos.

O sexo com escravas índias ou negras e com prostitutas era até permitido, ou tolerado, em função da falta de mulheres brancas nas terras recém-conquistadas. As poucas que chegaram até o final do século XVI também ficaram sujeitas à Inquisição, e as confissões sobre os seus “ajuntamentos torpes” indicam pedidos de perdão e misericórdia por terem sido, na maioria dos casos, “falsamente” enganadas por pessoas que, na verdade, lhes queriam mal. A Igreja utilizava as confissões também para conseguir delações. Em 1591, Paula de Siqueira, casada, confessou suas culpas ao visitador da Inquisição Heitor Furtado de Mendonça, afirmando que recebera “cartas de amores e requebros” de outra mulher casada, tendo com ela “ajuntamento carnal [...] como se propriamente [fossem] homem e mulher”. A mulher era Filipa de Souza, que lhe contara, após beber muito vinho, ter “usado o dito pecado com muitas outras moças [...] e também dentro de um mosteiro, onde ela estivera”. Mosteiros e padres eram elementos comuns nas confissões.

Os padres responsáveis pelas paróquias do Império português zelavam pela vigilância dos costumes, mas nem sempre conseguiam escapar dos pecados que deviam combater. Foi o caso do vigário Frutuoso Álvares, de Matoim, no Recôncavo Baiano, que cometera “tocamentos desonestos com algumas 40 pessoas pouco mais ou menos”, o que escandalizou o visitador Heitor Furtado de Mendonça (c. 1550?).

Fosse como fosse, na sociedade colonial, o sexo era uma válvula de escape em resposta àquelas relações opressoras, ora para manter o poder, ora para libertar-se dele.

Milena Fernandes Maranhão. Os caminhos da luxúria. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8 / Nº 93 / Junho 2013. p. 18-20.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A arte homoerótica de Charles Demuth

Banho turco com autorretrato, Charles Demuth

Dois marinheiros urinando, Charles Demuth

Três marinheiros, Charles Demuth

Três marinheiros urinando, Charles Demuth

Um ar distinto, Charles Demuth [Um casal homossexual, composto por um marinheiro e um distinto cavalheiro emociona os visitantes pela "ousadia"]

Banho turco, Charles Demuth

Quatro figuras masculinas, Charles Demuth

Marinheiros dançando, Charles Demuth

A cantora de jazz, Charles Demuth

Banho turco, Charles Demuth

Quatro figuras masculinas seminuas, Charles Demuth

Dois marinheiros urinando, Charles Demuth

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Proibido ter prazer: a origem do Brasil machista

Dança simbólica, Jan Ciągliński.

“Não existe pecado abaixo do Equador”, repetiam gostosamente nossos colonizadores, entusiasmados com a nudez das índias e africanas, presas fáceis de seus desejos reprimidos. Mas seria ilusão imaginar uma terra sem pecado. Ainda mais quando os próprios colonizadores traziam consigo uma tradição de forte repressão religiosa às práticas sexuais.

A sexualidade humana é sempre uma construção cultural, e a do povo brasileiro resulta da conjunção de três matrizes. O modelo sexual hegemônico dos donos do poder fundava-se na moral judaico-cristã, fortemente marcada pela “sexofobia” – uma espécie de medo dos prazeres sexuais. Do outro lado, os modelos indígena e africano caracterizavam-se pela grande permissividade sexual, nos quais os próprios deuses tribais reproduzem as práticas carnais dos humanos. Para evitar tais ameaças desestabilizadoras, diversas instâncias da Igreja no Brasil colonial se mobilizaram, impondo como modelo único a moral católica, baseada no Antigo e Novo Testamento e no Catecismo Romano publicado pelo Concílio de Trento (1545-1563).

A moral sexual católica tinha como traços fundamentais o tabu da nudez, a monogamia, a indissolubilidade do matrimônio sob o comando do patriarca, a virgindade pré-nupcial e a forte condenação da homossexualidade e do travestismo. De forma oportunista, tolerava-se o pecado mortal da prostituição, um mal necessário para garantir a pureza das donzelas casadouras. Na contramão de moral tão rígida, as culturas sexuais dos indígenas e africanos escravizados lidavam tranquilamente com a nudez, praticavam a poligamia generalizada e os tabus escandalosos do incesto para os cristãos. Além disso, conviviam pacificamente com praticantes do homoerotismo e do travestismo tanto masculino quanto feminino. “Os tupinambás são tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam: os quais sendo de muito pouca idade têm conta com mulheres... e em conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem cada hora. São mui afeiçoados ao pecado nefando (homossexualidade), entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza”, alertava, na Bahia de 1587, o senhor de engenho português Gabriel Soares de Souza.

Em meio à diversidade cultural das centenas de etnias da diáspora negra, a sexualidade dos africanos que vieram escravizados para o Novo Mundo incluía o livre exercício da poligamia, a prática da circuncisão nos meninos e das mutilações genitais nas donzelas e a aceitação da homossexualidade.

“Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime”, escreve Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1933), demonstrando que a exacerbada licenciosidade erótica observada no Brasil colonial deve ser explicada não por “defeito” dos africanos e indígenas, mas pelo abuso de uma raça por outra: “ao senhor branco, e não à colonização negra, deve-se atribuir muito da lubricidade brasileira”

O machismo ibérico assumiu no Novo Mundo uma feição muito mais agressiva do que a observada em Portugal e Espanha à época das Descobertas. Nas Américas, somente com extrema violência e autoritarismo a minoria branca senhorial conseguia manter submissa a enorme massa populacional de índios, negros e mestiços. Daí ter-se desenvolvido um código de hipervirilidade, que repelia entre os machos brancos, como se repele a peste, qualquer conduta ou atitude efeminada, pois ameaçava os alicerces da manutenção dessa sociedade profundamente hierárquica. Aí está a raiz do machismo e da homofobia à brasileira, filhos bastardos da escravidão.

Com vistas a evitar que a Terra da Santa Cruz se convertesse numa filial de Sodoma, a cruz e a espada se uniram para manter o rebanho obediente à tradicional moral cristã, tudo fazendo para garantir a primazia da única expressão permitida de canalização dos desejos da carne: o leito matrimonial visando à reprodução da espécie, cumprindo assim o decreto divino “Crescei e multiplicai-vos”.

Desde os primórdios da colonização, a primeira e constante cruzada dos jesuítas, franciscanos e demais missionários era combater a nudez de índios e africanos, obrigando os senhores a providenciar roupas para tapar as vergonhas de seus cativos. Também lutaram incansavelmente para limitar os tratos ilícitos e a mancebia dos brancos com mulheres de cor, erradicar a bigamia e a poligamia, além de reprimir os praticantes do abominável pecado de sodomia. Muitas foram as estratégias utilizadas pela hierarquia eclesiástica na repressão às sexualidades desviantes, interpretadas como ciladas do demônio contra a salvação dos filhos de Deus: o catecismo ensinado nas igrejas com ênfase no sexto Mandamento, “não pecar contra a castidade”, as pregações nos púlpitos e nas santas missões ameaçando os imorais com o fogo do inferno, as devassas episcopais e as visitações do Santo Ofício que percorriam de tempos em tempos grande parte da América portuguesa, estimulando denúncias e confissões de desvios da moral sexual.

Numerosos colonos foram denunciados à Santa Inquisição, não só por adotarem comportamentos sexuais condenados como pecados mortais – incluindo supostas cópulas com o próprio Demônio – mas também por desafiarem a moral divina, defendendo, por exemplo, que não era pecado manter relação sexual com índias, desde que se lhes pagasse nem que fosse com uma camisa. Outros defendiam proposições heréticas, como a de que casar era melhor do que ser padre e fazer voto de castidade, embaralhando a hierarquia celestial na qual as virgens e os religiosos celibatários estavam mais próximos do trono de Deus do que os casados, as viúvas e as ex-prostitutas.

Todas as pessoas eram obrigadas a se confessar ao menos uma vez por ano, por ocasião da Páscoa. O pecador tinha que desfazer uniões sexuais não permitidas sob o risco de não receber a absolvição e ir direto para o inferno após a morte. Era indispensável a todo católico o “certificado de desobriga”, podendo ser multado ou até degredado para a África caso se tratasse de um desviante sexual público e notório. Enquanto os párocos e os bispos reprimiam com advertência e multa os adúlteros e amancebados, os inquisidores perseguiam os bígamos, sodomitas e padres que assediavam sexualmente suas penitentes. Mais de uma centena destes desviantes sexuais foram presos e penaram rigorosos castigos nos cárceres secretos da Inquisição de Lisboa.

Para aterrorizar os faltosos e inibir novas delinqüências, a Igreja proclamava suas sentenças condenatórias na mesma freguesia onde viviam e onde cometeram tais escândalos imorais. Além disso, abusou da pedagogia do medo, aplicando castigos públicos, como o imposto em 1591 pelo visitador do Santo Ofício em Salvador contra Felipa de Souza, 35 anos, costureira, culpada de diversos namoricos com outras mulheres, “dormindo na mesma cama, ajuntando seus vasos dianteiros e deleitando-se”. O ouvidor da Capitania levou-a do Terreiro de Jesus até a Sé da Bahia, onde vestida simplesmente com uma túnica branca, descalça, com uma vela na mão, de frente para a Mesa Inquisitorial, ouviu sua ignóbil sentença. Em seguida foi açoitada publicamente pelas principais ruas da então capital da Colônia, enquanto o ouvidor lia o pregão: “Justiça que o ordena fazer a Mesa da Santa Inquisição: manda açoitar esta mulher por fazer muitas vezes o pecado nefando de sodomia com mulheres, useira e costumeira a namorar mulheres. Que seja degredada para todo o sempre para fora desta capitania”.

O Tribunal da Santa Inquisição seria extinto apenas em 1821. Só então a Igreja perdeu o poder de prender, açoitar, seqüestrar e queimar os delinqüentes sexuais. Três séculos desta ferrenha repressão deixaram seqüelas: o Brasil é destaque mundial em casos de abuso sexual, gravidez de adolescentes, altíssimos índices de contaminação pela AIDS por relações sexuais, crimes homofóbicos. A moral cristã errou em perseguir bígamos, sodomitas, libertinos e livres pensadores. Inquisição, nunca mais.

Luiz Mott. Proibido ter prazer. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 9 / Nº 100 / Janeiro 2014. p. 40-43.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Cotidiano das mulheres e sexualidade lisboeta na época dos Descobrimentos

Grupo de mulheres, Lovis Corinth

As mulheres portuguesas eram tidas pelos estrangeiros como as mais belas da Europa. Isso, é claro, para os padrões da época, nada semelhantes àqueles seguidos pelas esqueléticas top models de nossos dias. As mais bonitas eram aquelas mais “cheias”, de belos olhos castanhos, grandes e vivazes. Tinham a pele muito branca, pois andavam com o corpo todo coberto, inclusive a cabeça, protegida por um lenço, compondo um manto que ocultava o rosto sob sombras. Era considerado sinal de paquera uma mulher mostrar a face para um transeunte.

As damas da sociedade nunca andavam desacompanhadas pelas ruas. Saíam, comumente, em liteira, seguidas por um escudeiro e um cortejo de criadas e filhas, a pé. Apenas os homens, e de posição, podiam andar a cavalo pela cidade, algo regulamentado por decreto régio. Alguns fidalgos optavam por se deslocar sentados, em cadeiras carregadas por escravos.

A despeito de as mulheres casadas portuguesas serem tidas como extremamente fiéis no matrimônio, conseguir a companhia de uma senhora casada não era difícil, num país em que os esposos estavam, constantemente, viajando. Porém, havia o risco de o casal “em pecado” ser pego de surpresa pelo confessor da senhora, ou pelo próprio marido traído, já que o retorno do cônjuge era sempre imprevisível. Aqueles que não arriscavam levar a esposa consigo entregavam-na à vigilância de um pároco de confiança. Também não faltavam padrecos a se aproveitar da ocasião para liberar a libido com suas protegidas.

Em qualquer caso, o risco maior era assumido pela mulher, pois, em se tratando de adultério ou estupro, a legislação impedia a punição dos implicados se eles fossem fidalgos. Quanto aos marujos, no máximo, levariam algumas chicotadas em praça pública. Já a esposa podia sofrer os maiores abusos, sem que o marido fosse penalizado.

O medo da traição e os constantes casos, em que estiveram implicados nobres, fizeram com que o homem português se tornasse muito possessivo, deflagrando cenas de ciúmes contra as mais castas senhoras. Tornaram-se célebres vários casos de violência doméstica, ocorridos em Portugal entre os séculos XVI e XVII. Em certa ocasião, uma mulher teve a cabeça pregada ao assoalho, só por ter acenado ao cumprimento de um estrangeiro que passava, em uma procissão, defronte à janela de sua casa.

Justamente para evitar constrangimentos e a possibilidade de a amante ser martirizada pelo marido traído, muitos homens optavam por visitar os conventos, onde o trânsito era facilitado por um título de nobreza. Belas jovens esperavam ansiosas por um amante que pudesse lhes ensinar os prazeres da carne, pois haviam sido confinadas pelas famílias em ordens religiosas, contra sua vontade, como forma de evitar a divisão de bens da família, por ocasião do pagamento do dote devido a um futuro marido, ou para dar prestígio político a seus pais.

Rapto de mulheres, Lovis Corinth

Impedidos de participar do festim proporcionado pelos conventos, os marujos, em Lisboa, tinham poucas oportunidades de praticar os estupros coletivos que estavam acostumados a infligir, a bordo dos navios, a mulheres e garotos embarcados. Não obstante, em noites escuras, quando a lua estava oculta, as sombras lhes permitiam raptar e violentar mulheres humildes, principalmente ciganas. Algumas chegavam a ser carregadas à força para dentro dos navios, a fim de satisfazer o apetite sexual da marujada. Raptadas, não tinham escolha a não ser acompanhar seus carrascos em sua jornada pelos mares.


PESTANA, Fábio Ramos. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 46-48.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Hospitais, igrejas e prostíbulos na capital lisboeta na época dos Descobrimentos

As padeiras, José Malhoa

Havia vários hospitais na cidade, uma vez que eram mais do que necessários para abrigar, entre outros enfermos, alguns dos debilitados passageiros e tripulantes que chegavam nos 1.500 navios que demandavam, mensalmente, o porto lisboeta. O maior era o de Todos os Santos, construído no Rossio, em 1492, próximo à principal artéria da cidade, a rua Nova dos Mercadores, onde estavam instaladas as mais importantes casas de comércio de especiarias.

O fado, José Malhoa

A vida espiritual da população era orquestrada por várias igrejas, espalhadas pelas partes alta e baixa da cidade. A mais importante era sede do bispado, a sé de Lisboa, uma catedral gótica, construída em 1150, por ordem de D. Afonso Henriques, sob as ruínas de uma mesquita. Ela seria danificada por dois tremores de terra, no século XIV, e, finalmente, devastada pelo terremoto de 1755, que destruiria boa parte de Lisboa e obrigaria o marquês de Pombal a reconstruir suas ruas, no traçado reto que obedecem ainda hoje.

A religiosidade do povo português, expressa pela imensa quantidade de igrejas, tornava habitual cruzar pelas ruas com procissões ou festejos de santos, ao passo que comemorações profanas estavam terminantemente proibidas.

Os bêbados ou Festejando o S. Martinho, José Malhoa

Entretanto, a principal diversão dos fidalgos era freqüentar bordéis e tavernas. Recusar um convite de um nobre para ter com prostitutas era considerado uma ofensa grave. Outro público que freqüentava com assiduidade o ambiente eram os marujos, sempre famintos de companhia feminina, após meses no mar. A ampla demanda pelo serviço era acompanhada, igualmente, de uma numerosa oferta. Existiam bordéis em número igual ou superior ao de igrejas, enquanto as tavernas talvez somassem o dobro da quantia.

Cena de bordel, Brunswick Monogrammist

Sendo freqüente o vai-e-vem de forasteiros, existiam em Lisboa inúmeras hospedarias. A maioria delas era muito simples, confundindo-se com os bordéis, em cujos quartos não havia mais do que uma cama, uma pequena mesa, uma cadeira, uma bacia com água e um penico, para que os hóspedes mais exigentes cuidassem da própria higiene.

Artistas itinerantes em um bordel, Brunswick Monogrammist

Os fidalgos e marujos que compartilhavam as prostitutas quase sempre eram brindados com as mais diversas doenças venéreas, o que fazia muitos evitarem o contato com profissionais, apesar da grande quantidade de bordéis disponíveis. A alternativa mais “à mão” era cortejarem as muitas senhoras cujos maridos estavam ausentes, servindo nas colônias e nos navios portugueses.

PESTANA, Fábio Ramos. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 45-46.

domingo, 7 de dezembro de 2014

As perseguidas: as mulheres nos romances filosóficos no século XVIII

A refeição da tarde, François Boucher. As mulheres são retratadas como mães e figuras sacralizadas no ambiente familiar. Matrimônio e maternidade exigiam postura mais equilibrada das mulheres

Romance epistolar, com narrativa desenvolvida a partir de cartas trocadas entre os personagens, A Nova Heloísa marcou outro momento dos "romances filosóficos", com novas opiniões sobre o feminino. Nele, as mulheres não foram descritas apenas pelo ângulo das "paixões". O "belo sexo" passava a ser relacionado também a uma ideia de virtude, que estava estreitamente ligada a três pilares: à virgindade na juventude - afinal, "o amor nas moças é indecente e escandaloso e apenas um esposo autorizaria um amante" -, ao matrimônio e à maternidade. Segundo Rousseau, quando adulta, a mulher deveria saber qual é o seu lugar. A "mulher virtuosa" seria a esposa casta e submissa e a mãe que prepara os filhos para serem educados pelos homens: "Mas há um longo caminho dos seis anos aos 20; meu filho não será sempre criança e, à medida que sua razão comece a nascer, a intenção de seu pai é de realmente a deixar exercer. Quanto a mim, minha missão não vai até lá. Alimento crianças e não tenho a presunção de querer formar homens. Espero, disse olhando seu marido, que mãos mais dignas venham a se encarregar desse trabalho. Sou mulher e mãe, sei manter-me em meu lugar. Ainda uma vez, a função de que estou encarregada não é a de educar meus filhos, mas de prepará-los para serem educados".

Essas opiniões novamente se refletiram na caracterização das próprias personagens. Se nos romances anteriores à obra de Rousseau as heroínas não foram pensadas para viver a maternidade e o matrimônio, e sim para deixarem transparecer "os efeitos das paixões", na Nova Heloísa a situação se inverte. Neste romance, as personagens estão envolvidas com suas futuras obrigações de mãe e esposa durante quase toda a narrativa.

De Montesquieu a Rousseau, os "romances filosóficos" estiveram longe de propagandear uma emancipação feminina. Suas personagens bem demonstraram isso. Apaixonadas ou virtuosas, as mulheres foram sempre vistas nas obras como seres inferiores aos homens, tanto em sua capacidade psicológica quanto nos seus direitos perante a sociedade. A situação era bem difícil: se ousassem expor seus sentimentos, seriam encaradas como escravas de suas paixões. Se optassem  por não abraçar a maternidade e o matrimônio, estariam se afastando da virtude. Mas, apesar de tanta resistência, as mulheres, mesmo vivendo em tal contexto, conquistaram importantes avanços. E continuam conquistando. Apaixonados e virtuosas.

Renato Sena Marques. As perseguidas. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7 / Nº 79 / Abril 2012. p. 48-51.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Dos almofadinhas a Tarzã: ser homem!

Dois jovens descansando, Adolf Hölzel

Gilberto Freyre foi pioneiro em afirmar que, numa sociedade patriarcal, o corpo era marcado por diferenças de gênero. “Cada um como cada qual”, dizia o ditado popular. Nada de equívocos. Bordões como “a mulher que é, em tudo, o contrário do homem” sintetizavam as formas de pensar. Curvas, cabeleira comprida e adereços eram coisas femininas. Por seu lado, o homem moderno foi construir sua masculinidade. Masculinidade não mais fundada apenas na coragem e na honra, como no século anterior. Emergiam novos comportamentos: a palavra tomava o lugar do gesto, a competência se sobrepunha à dominação e a mediação substituía o confronto. Renunciava-se aos duelos, abandonava-se a faca, forjava-se um ideal novo: o homem educado, senhor de suas paixões, com hábitos burgueses deveria tomar a frente da cena, tornando-se um trabalhador útil ao país. Ele se vestiria de negro, impondo a formalidade. Acessórios? Só alfinetes de gravata, relógios, abotoaduras, chapéus e guarda-chuva. Nas mãos, a aliança. O bigode ou outras pilosidades faciais marcavam, nos rostos, a maturidade sexual. O esportista, no campo de futebol,  nas águas da piscina ou no ringue, ou o militar, em tempos de guerras, cada qual no seu uniforme, fazia suspirar as moças. Os espaços masculinos também se ampliavam. Escritórios, bares ou sindicatos alimentavam redes de sociabilidade e consumo. Jornais e revistas expandiam o espectro de possibilidades: idas ao Jockey Club ou aos estádios. Consumo de Dynamogenol ou NutrioN para aumentar as forças “nas lutas da existência”. Praias e piscinas esculpiam os corpos masculinos por meio do fisioculturismo, colorindo-os com “raios de sol”.

Levantando pesos com um braço, Eugène Fredrik Jansson 

A valorização da força física como fator de desenvolvimento da sociedade engendrava outras formas de práticas, agora também fundadas em conceitos estéticos. O corpo musculoso e forte tornava-se signo de beleza e era revelador de boa saúde. Entrava em cena halteres e pesos. Valores como resistência, autoridade e competição simbolizavam a afirmação da masculinidade.

Puxando peso com os dois braços, Eugène Fredrik Jansson 

Tais mutações escoravam-se nas mudanças econômicas. A prosperidade alimentava os sonhos de ascensão social. Junto a isso, havia a aspiração de alargar horizontes e formar melhores brasileiros. Na vida privada, a atenção crescente dada à família, aos filhos e ao casamento exige uma adequação entre a casa e a rua. Isso porque a imprensa promovia a nova masculinidade, associando-a a “caráter, trabalho duro e integridade”. O bom macho era também bom pai de família e provedor.

O trabalho, Pierre Puvis de Chavannes

Na contramão desse ideário encontravam-se os homens que fugiam às regras na conduta e na indumentária. Qualquer sugestão de feminilidade era ferozmente perseguida. Revistas como a Selecta ou a Fon-Fon, entre os anos 20 e 30, ridicularizavam as “figuras dúbias” de “almofadinhas e libélulas” com “cabelos lustrosos e rosto polvilhado”. Representantes de uma época decadente, tais homens eram vistos como doentios e indecorosos: “gostam de usar calças muito apertadas, para que lhes vejam o arredondamento das nádegas”, denunciava o médico Ernani de Irajá. Eram o oposto do “burguês bem-sucedido”.

Nu reclinado, Carlos Baca-Flor

Discussões sobre a origem ou as causas dos “estados inter-sexuais” apaixonavam médicos. Havia quem tentasse explicar os “missexuais” ou a mistura dos dois sexos em um. Mas não importavam as interpretações. A homossexualidade era considerada, além de imoral, uma anormalidade. Durante os anos 30, o médico Leonídio Ribeiro consagrou-se graças a estudos sobre endocrinologia, relacionando-a com as “anomalias do instinto sexual”. Estas seriam o reflexo de mau funcionamento das glândulas. O remédio era o transplante de testículos, inclusive de carneiros ou de grandes antropóides. Afinidades entre homossexualidade e criminalidade? Todas. O crime era uma decorrência da paixão que “invertidos” nutriam entre si. Num quadro de guerras mundiais e de reforço do nacionalismo, homossexuais transformavam-se em bodes expiatórios.

Nu masculino, Lucílio de Albuquerque

“O homossexualismo é antissocial. É a destruição da sociedade; é o enfraquecimento dos países [...] a maioria dos pederastas não se casa, não constitui família; portanto, não contribui para o engrandecimento, para o desenvolvimento da sociedade e do país. Se o homossexualismo fosse regra, o mundo acabaria em pouco tempo”, apregoava o médico Aldo Sinisgalli. A repressão e o preconceito contra a diferença só faziam aumentar.

O mundo masculino defrontava-se, assim, com novas dimensões que o obrigavam a adotar uma forma ideal. A exibição corporal incentivada pelos novos tempos deveria expressar os papéis sociais aceitos para homens e mulheres. Eles deviam demonstrar atitude, atividade, postura propositiva; elas, ao contrário, apenas leveza e suavidade. Elaborava-se a masculinidade contrastando-a com a feminilidade. E o cinema, notadamente o americano, só veio jogar água no moinho das diferenças de gênero. O espetáculo do herói e o culto ao corpo alimentavam códigos estéticos que bombardeavam os machos brasileiros com estereótipos.

Balneário naval, Eugène Fredrik Jansson

Segundo alguns autores, Hollywood ajudou a construir não só comportamentos adequados como também uma identidade nacional, no início do século X. Tratava-se da difusão de ideais e da utilização de heróis como força de expressão. Nas telas, eles encarnavam a revanche da guerra, a condenação aos desajustes da sociedade, os guerreiros virtuosos do esporte.

Atletas começam a participar de filmes como atores, entre os quais Johnny Weissmuller, ex-atleta de natação e o mais famoso Tarzã, além de alguns famosos lutadores de boxe. Encarnando a imagem de “lutadores”, ainda tinham que ser sexualmente ativos e sustentar financeiramente a família, exercendo a autoridade e o poder – quando não a força e a violência física – no meio familiar e no trabalho. Marcas corpóreas como cicatrizes, cortes, arranhões, tatuagens, mutilações comprovavam o desempenho do homem em sua trajetória de heroísmo; eram provas de uma história exibida com orgulho, impondo respeito. Eram as demonstrações concretas da valentia e da luta, base da cumplicidade entre machos e contraste com os corpos de pederastas e “missexuais”.

Nu masculino, Lucílio de Albuquerque

A questão da virilidade associada às lutas físicas ou morais expandia-se nas metáforas lingüísticas utilizadas constantemente nos conflitos: “mostrar o pau”, “meter o pau”, “botar o pau na mesa”. O órgão masculino era comumente definido como “pau”, “porrete”, “pistola”, “canhão”, “espada”.

Ginasta de anel, Eugène Fredrik Jansson

Essa ideia de virilidade surgia ainda nos esquemas maniqueístas típicos dos filmes de então. Neles, o oponente, representado como cruel, desonesto e supostamente mais bem treinado, mais forte e com mais condições de vitória, desfilava com um sem-número de mulheres retratadas como fúteis, mais interessadas em seu físico e em seu dinheiro do que em algo “sério”, como a constituição de um lar. Ao mesmo tempo, as mulheres “honestas” sabiam que seu papel era servir de apoio para a carreira do marido, um herói, e não se prestar ao papel de “pistoleiras”. Para a figura feminina, recuperava-se a velha oposição entre mães e prostitutas, dualidade característica da sociedade patriarcal.

Homem jovem nu, Eugene Frederik Jansson

Isso não foi tudo. A partir dos anos 40 e 50, revistas como O Cruzeiro apostavam nas notícias sobre esse novo homem identificado com as mudanças do tempo. Tópicos sobre concursos de fisioculturismo pipocavam: “Bonitões em desfile”, anunciava o Campeonato Nacional de Melhor Físico de 1949. A manchete “Músculos em revista” tratava do 1º Campeonato Nacional de Levantamento de Pesos e a escolha do Melhor Físico de 1950. As matérias eram ricamente ilustradas com fotos, ressaltando-se os “atletas” em diversas poses e em trajes mínimos, impressionantes até para os dias de hoje. A intenção da revista era explorar a sensualidade de corpos masculinos, algo, diga-se, definitivamente novo!

PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. p. 155-159