A Bíblia os descreveu como um povo belicoso e bárbaro, mas os arqueólogos têm
uma opinião bem diferente acerca desses antigos habitantes de Canaã
por Elisabeth Yehuda*
Para o senso comum, a palavra “filisteu” designa um indivíduo inculto e carente
de inteligência, com interesses vulgares e puramente materiais. Um sujeito
convencional, desprovido de toda e qualquer capacidade intelectual. Porém, para
os arqueólogos, o termo evoca algo muito diferente.
No templo Medinet Habu, inscrição retrata prisioneiros filistinos libertados
Ecron, Gath, Gaza,
Ashcalon e Ashdod são nomes que os estudiosos da Bíblia e da história de Israel
sabem de cor. Representam as localidades que constituíram, a certa época, a
aliança política e econômica entre cinco cidades-estado autônomas na costa sul
do Levante, conhecida como a pentápole filistina. A região era habitada por
povos oriundos do Egeu, os filisteus, que se estabeleceram definitivamente no
local durante a Idade do Bronze tardia.
De Josué a Jeremias, o Antigo
Testamento sistematicamente os descreve como inimigos mortais dos hebreus. São
apresentados como guerreiros incansáveis, que combatem e humilham cruelmente os
israelitas, oferecendo ao deus Dagan todos os bens alheios saqueados. Em uma das
inúmeras guerras travadas entre os dois povos, os cadáveres degolados do rei
Saul e de seus filhos ficaram friamente expostos diante das muralhas da cidade
de Beth Shean. Porém, a vingança dos israelitas, ou melhor, de seu deus Jeová,
não foi menos atroz: segundo a narrativa bíblica, o povo inimigo sofreu
moléstias, ulcerações e chagas. Davi, por ocasião de seu casamento com Michal,
filha de Saul, presenteou sua noiva com o prepúcio de 200 filisteus mortos. Nos
tempos em que ainda pastoreava as ovelhas de seu pai, Jessé, ele já havia sido
protagonista de um célebre embate, em que demonstrou ao amedrontado exército
israelita que bastava uma funda para dobrar a força filistina, encarnada no
gigante Golias. Outro personagem conhecido da querela, Sansão, escolhido de
Deus, viveu a amarga experiência de que nem sempre é vantajoso desposar uma
mulher da tribo inimiga.
Não fossem os autores do Livro Sagrado judaico,
os filisteus permaneceriam tão desconhecidos como inúmeros outros povos da
época. Mas os escribas bíblicos consideraram-nos dignos de nota e desde então,
graças ao caráter das descrições a eles dedicadas, os povos do mar gozam da
inglória fama de incultos e bárbaros. No entanto, os achados arqueológicos
trazem à luz a avançada cultura filistina e comprovam que a tribo sabia
perfeitamente se portar como povo civilizado.
Em finais do século XII a.C., o faraó Ramsés III ergueu o templo mortuário em
Medinet Habu. Ali, o governante quis perpetuar seu nome e feitos heróicos e,
para tanto, decorou as paredes externas do mausoléu com preciosos relevos,
representando as cenas de suas inúmeras glórias. Os frisos são acompanhados de
textos explicativos, que descrevem minuciosamente cada uma das batalhas
vencidas. Entre eles, a história das pelejas contra os povos do mar.
Por
volta de 1190 a.C., no oitavo ano de reinado de Ramsés III, o Egito foi atacado
por uma coalizão de povos marítimos. O faraó massacrou os invasores e
contabilizou uma retumbante vitória. Entre os derrotados, havia tribos de nomes
tão sonoros como Thekker, Shekelesh, Denyen, Wesheh e Peleset. Os estudiosos
concordam que estes últimos são idênticos aos filisteus da Bíblia.
O
quadro é complementado pelo Papiro Harris, uma crônica da época de Ramsés IV –
aproximadamente 1153 a.C. –, que detalha ainda mais os conflitos bélicos
ocorridos durante o reinado de seu predecessor. Os documentos relatam o massacre
empreendido por Ramsés III. Vencidos e aprisionados, os filisteus foram levados
à força para guarnições no Egito.
Mas a dúvida permanece: até que ponto
os construtores de Medinet Habu e os escribas do papiro foram fiéis à realidade?
Afinal, a narração de batalhas indecisas ou de vitórias dos rebeldes não seria
benéfica à gloriosa memória do faraó. A ciência concorda que a questão é
controversa. Há décadas, os estudiosos discutem o teor de verdade dos textos.
Parte dos pesquisadores argumenta que não há exageros nos relatos, e que o faraó
egípcio teria, de fato, trucidado os filisteus e colonizado as guarnições com os
sobreviventes. As imagens e a narrativa que chegaram à atualidade demonstram que
os povos do mar não avançaram rumo ao Egito somente com seus exércitos, mas com
carruagens cheias de mulheres e crianças. Porém, se populações inteiras se
mobilizaram em direção a terras estrangeiras, tendo sido interceptadas pelos
egípcios e obrigadas a se estabelecer nos domínios do faraó, algum vestígio
concreto dessa colonização deveria permanecer. E o Egito não guarda
remanescentes da cultura filistina, que aparece mais nítida em outros locais.
Um segundo grupo de estudiosos considera a tese de assentamento compulsório dos
povos do mar bastante plausível, mas argumenta que a descrição do local de
colonização é muito vaga. Esses pesquisadores ponderam que os filisteus podem
ter sido levados a algum lugar ao norte do reino egípcio. E como este era
bastante vasto, não é impossível que a Terra de Canaã, sob domínio do Egito nos
tempos de Ramsés III, tenha sido o local do desterramento. Os sepultamentos ao
estilo egípcio lá encontrados, possivelmente herdados pelos recém-chegados de
seus dominadores, e os objetos escavados na região juntamente com peças de
cerâmica moldadas à moda filistina depõem a favor dessa teoria.
Uma
terceira linha de pesquisa coloca em dúvida as conquistas e relatos de glória de
Ramsés III. Segundo seus defensores, os egípcios não saíram de modo nenhum
vitoriosos das batalhas contra os filisteus e estes teriam colonizado a região
de Canaã por conta própria. As marcas de destruição nos postos egípcios
avançados, como em Tel el-Farah, nos quais foi encontrada cerâmica tipicamente
filistina, parecem comprovar essa hipótese.
Fragmento esculpido em calcário encontrado no templo de Ramsés III
A origem dos povos do mar é
mais um assunto de disputa entre os estudiosos, que concordam apenas sobre o
espaço do Egeu como local de procedência. Alguns pesquisadores consideram a
região micênica como berço dos filisteus. Outros, mais cuidadosos, defendem uma
opinião conservadora: a pátria dos povos do mar seria Chipre. E há ainda os
audazes, que consideram que a colonização de Canaã se deu a partir da Anatólia.
Estes chegam a lançar mão da Ilíada de Homero como repositório de informações
sobre a origem filistina. Afinal, se o famoso arqueólogo alemão Heinrich
Schliemann conseguira encontrar Tróia guiado pelos versos do grande poeta grego,
então não parece impossível que Menelau ou Odisseu, que depois de intermináveis
périplos haviam atracado nas costas da Líbia e do Egito, tenham sido os
ancestrais dos filisteus.
Em Medinet Habu, o faraó perpetuou sua suposta vitória sobre os povos do mar
O registro arqueológico só reconstitui a origem
filistina até Chipre, a última estação inquestionavelmente pertencente aos povos
do mar em sua peregrinação rumo ao sul. Depois disso, qualquer tentativa de
relacionar os diversos achados fracassa em função da semelhança dos supostos
vestígios com os remanescentes de outras culturas oriundas do Egeu.
No Levante, os recém-chegados filisteus realizaram mais do que simplesmente
amedrontar os nativos. Traziam na bagagem sua própria cultura e esforçaram-se
por estabelecê-la no novo lar. Mas eis que surge nova matéria de controvérsia
entre os estudiosos. Uns acreditam que o desenvolvimento que se seguiu
representa mera assimilação, com a crescente dissolução dos costumes filistinos.
Outros consideram tratar-se de uma aculturação, isto é, uma troca ativa entre
duas ou mais culturas, resultando na modelagem de cada uma delas.
De
todo modo, o que parece certo é que, embora os filisteus tenham vindo como
conquistadores, logo trataram de se arranjar com os hábitos de Canaã. Adotaram
os elementos que consideraram bons e práticos e mantiveram aquilo que lhes era
caro. Assim, seus deuses são todos de origem cananéia, bem como os parâmetros de
guerra que passaram a usar, como se pode verificar pela armadura ostentada por
Golias no relato bíblico. A cerâmica, no entanto, foi considerada demasiadamente
simples, e os filisteus continuaram a moldar suas peças de acordo com suas
antigas técnicas e tradições. As escavações na pentápole filistina trouxeram à
tona uma enorme quantidade de peças em estilo micênico. Porém, um século depois
do assentamento inicial, parece haver ocorrido o reconhecimento do valor da
cerâmica cananéia e a incorporação de novos elementos estilísticos, levando a
uma produção que unia os estilos micênico, cipriota, cananeu e
egípcio.
Possivelmente, a ojeriza bíblica aos filisteus se relaciona
menos com sua propalada violência bélica e mais com os seus hábitos. Seu
cardápio incluía – além de boi, carneiro, aves e cabra – carne de porco,
ingrediente culinário impensável para os hebreus e não encontrado nas montanhas
vizinhas, habitadas pelos israelitas.
Se considerarmos que os filisteus
não veneravam um único deus patriarcal mas uma grande quantidade de deuses e
deusas, a indignação sacerdotal hebraica se torna ainda mais compreensível. A
segunda mais importante divindade filistéia respondia ao sonoro nome de
Baal-Zebub e os israelitas consideravam esse deus a personificação do paganismo.
Hoje, belzebu é um nome corriqueiro para o diabo.
Embora sua engenhosidade não tenha sido reconhecida pelos moradores da montanha,
os invasores destacaram-se na arte da construção naval, introduzindo grandes
inovações tais como a âncora de pedra com braços de madeira, a vela móvel para
as embarcações e o cesto da gávea.
A arquitetura também pôde se
beneficiar: até então, a construção fazia uso apenas de pedras brutas e tijolos.
Os povos do mar trouxeram a técnica de esculpir grandes blocos rochosos. Além
disso, desenvolveram e aperfeiçoaram o processamento de metais.
Em XI
a.C., as cidades filistéias floresceram e destacavam-se pelos espaços amplos e
pelas generosas construções. Os templos, erguidos em veneração a Dagan,
impressionavam pela vastidão de suas galerias, cujas pilastras sustentavam tetos
semi-abertos. Em seu interior, ardiam fogos sagrados, e altares móveis, nichos e
plataformas de oração guarneciam os locais de culto. Em Ashcalon, vinhos
exóticos eram produzidos e exportados. Numerosas garrafas foram desenterradas no
local, comprovando que os habitantes dessa cidade gostavam de consumir a bebida,
além da tradicional cerveja. Ecron, por sua vez, alcançou fama nacional e talvez
até internacional pela produção de outro líquido precioso: o óleo de oliva, que
se destacou na época pela excepcional qualidade.
No século X a.C., quando
da unificação das tribos israelitas sob o rei Davi, os filisteus foram colocados
diante de uma grande dificuldade, com a força multiplicada dos hebreus
ameaçando-os. Além destes, os arameus, babilônios e assírios foram de igual
importância para sua decadência. Os arameus, por exemplo, não mediram esforços
para conquistar a cobiçada Gath e, no século IX a.C., chegaram a sitiá-la,
escavando um poço com mais de seis metros de profundidade e sete de largura.
Após ser tomada, a cidade nunca mais se recuperou da destruição, desaparecendo
dos registros por volta do século VII a.C. A última menção a ela ocorre em 712
a.C., quando foi conquistada pelos assírios e obrigada a pagar pesados tributos
ao rei Sargão II, que no mesmo período dobrou Ecron ao seu jugo. Ashdod já havia
se tornado província assíria um ano antes. Em 701 a.C. , o soberano de Ecron, o
filisteu Padi, foi levado a Jerusalém por Hezekiah, rei judaico que se rebelara
contra os assírios.
A derrocada ocorreu ao final do século VII a.C. A
batalha de Karkemish, travada em 605 a.C., derrubou o domínio assírio sobre as
províncias da costa mediterrânea e abriu caminho ao rei babilônio Nabucodonosor.
Com sua chegada, Ecron, Ashdod e Ashcalon, sofreram a derradeira destruição. As
escavações testemunham o cenário de horror que se estabeleceu. Ashcalon, com
suas ruas de comércio, templos e palácios, foi inteiramente incendiada. Nada nem
ninguém foi poupado, e os sítios arqueológicos atestam a existência somente de
escombros de guerra. Em Ecron, o fogo dos conquistadores ardeu com tamanha
intensidade que arrebentou as pedras calcárias das construções. Nenhuma peça de
cerâmica permaneceu inteira, comprovando a violência do assalto que se abateu
como uma catástrofe natural sobre a cidade. Depois da completa destruição, os
poucos moradores sobreviventes foram aprisionados e deportados para a
Babilônia.
A cultura filistina chegava, assim, ao seu ponto final. E, ao
contrário dos israelitas, que haviam sofrido destino semelhante mas aos quais,
depois de 70 anos de prisão, foi aberta a possibilidade de retornar a sua
pátria, os filisteus que não haviam sucumbido ao massacre nunca mais voltaram à
Palestina natal. Deles resta somente o relato antipático da Bíblia e o papel de
personificação do mal e da estupidez.
* Elisabeth Yehuda é arqueóloga do Instituto Israelita de Arqueologia. In: Revista História Viva |
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