"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 31 de março de 2017

A poesia lírica na Grécia Antiga

Safo e Alceu, Lawrence Alma-Tadema

A poesia épica definhou rapidamente, Mas outra nasceu, marcada ao mesmo tempo pela influência da música oriental e do individualismo dos gregos: a lírica. No que tange à música, tanto aos instrumentos quanto à melodia, o contato com a Lídia, por sua vez herdeira da Frígia, foi por certo determinante. O fato de os gregos atribuírem esta ou aquela inovação técnica a alguns de seus compatriotas não pode dissimular a realidade dos empréstimos que, sem dúvida, foram tomados aos legados da civilização cretense. Tudo isso lançou profundas raízes no patrimônio grego, penetrando o ritual das cerimônias religiosas. O lirismo coral, acompanhado das danças e evoluções ritmadas de grupos de homens, moças e crianças, em parte alguma recebeu maiores homenagens do que em Esparta. A música tornou-se elemento integrante da educação dos jovens gregos, por vezes até a idade de trinta anos.

Mas, além de terem inventado para sua poesia lírica metros de infinita variedade, os gregos ousaram utilizá-la a fim de exprimir sentimentos pessoais, defender-se de seus acusadores e passar à acusação, colocar-se em cena, por vezes despudoradamente, cantar seus ódios e seus amores, dores e alegrias. A partir do século VII a.C. foram inventados a elegia, o iambo e a ode, incessantemente aperfeiçoados e flexibilizados com uma riqueza inesgotável de ágeis combinações. Foram praticados por numerosos poetas, dos quais, infelizmente, nenhuma obra inteira nos resta. O legislador Sólon serviu-se da poesia para apoiar sua ação política e social. Teognis de Mégara derramou nela a sua cólera; Esparta encontrou nos estrangeiros os melhores de seus poetas cívicos. Mas a maioria dos líricos, nascidos ou tendo vivido nas cidades da Ásia Menor ou das ilhas, cantou, ora as alegrias, ora os ardores da vida sensual que a riqueza e a proximidade do Oriente aí faziam eclodir. Os dois maiores nomes são os de dois mitilênios do começo do século VI a.C., cujos fragmentos nos permitem conhecê-los de forma bastante precisa: Alceu e a poetisa Safo. Neles não se nota constrangimento algum; seu frenesi é indiferente às conveniências banais. Safo ostenta uma paixão que já parece escandalosa à Antiguidade, e Alceu celebra, por um apelo à embriaguez, a morte de um tirano detestado.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 119-120. (História geral das civilizações, v. 2)

quarta-feira, 29 de março de 2017

A herança dos micênios

Afresco micênico representando uma deusa ou sacerdotisa. 
C. 1250-1180 a.C. Artista desconhecido

Embora guerreira e forte, a civilização micênica defrontou-se com uma que era mais guerreira e mais forte: outros gregos, os Dórios, como se pensou por muito tempo, ou outros invasores, ou revoltas internas, ou, o que não é contraditório com as explicações anteriores, uma catástrofe natural provocam, por volta de 1 200, a destruição de todos os palácios, o abandono da maioria dos sítios habitados, o desaparecimento definitivo de uma sociedade e de sua escrita. Mas pode uma civilização desaparecer, legando aos seus sucessores apenas vestígios de ordem material?

Essa recolhera e mantivera grande parte da herança cretense. Nem tudo se desvaneceu na tormenta das novas invasões. A língua grega adotou certas palavras que não são indo-europeias nem semíticas; provém de um idioma talvez mais antigo do que o cretense; em todo caso, foram utilizadas por cretenses e micênicos. A religião grega não perdeu a divinização do princípio da fecundidade, a prática dos jogos esportivos. E os Aqueus asseguraram a transmissão de tudo isso.

Eles próprios não se limitavam ao papel de intermediários. Não lhes podemos atribuir tudo o que mais tarde se tornou helênico: pois devemos levar em conta os demais elementos constitutivos do futuro povo grego. Mas a lembrança de sua guerra contra Troia, de suas incursões pelo Mediterrâneo de suas riquezas, de suas armas e de seus enfeites, alimentou os poemas homéricos. Alguns chegaram mesmo a pensar que tais poemas, no tocante à métrica e estilística, sofrem a influência direta de precedentes micênicos; isso já é um avanço por demais ousado. Limitemo-nos, numa escala mais ampla, a uma observação. Os cretenses haviam aberto a rota transversal do Mediterrâneo oriental; mas isso redundava em proveito do Egeu e suas ilhas. Os micênios conservaram essa rota, mas em proveito da Grécia continental. Os gregos serão assaz numerosos, hábeis e ativos para permanecer etnicamente e, depois, se tornar economicamente, os senhores dessa rota: durante muito tempo ela apenas existirá em virtude deles e em seu favor, como nas eras dos reis de Micenas e Tirinto.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 52-3. (História geral das civilizações, v. 2)

segunda-feira, 27 de março de 2017

Aspásia

Aspásia e Pérciles, José Santiago Garnelo y Alda

Nos tempos de Péricles, Aspásia foi a mulher mais famosa de Atenas.

O que também poderia ser dito de outra maneira: nos tempos de Aspásia, Péricles foi o homem mais famoso de Atenas.

Seus inimigos não perdoavam que fosse mulher e estrangeira, e para acrescentar-lhe alguns defeitos atribuíam a ela um passado inconfessável e diziam que a escola de retórica, que ela dirigia, era um criadouro de mocinhas fáceis.

Foi acusada de desprezar os deuses, ofensa que podia ser paga com a morte. Diante de um tribunal de mil a quinhentos homens, Péricles a defendeu. Aspásia foi absolvida, embora em seu discurso de três horas Péricles tenha esquecido de dizer que ela não desprezava os deuses, mas achava que os deuses nos desprezam e arruínam nossas efêmeras felicidades humanas.

Naquela época, Péricles já havia expulsado a esposa de seu leito e de sua casa e vivia com Aspásia. E por defender os direitos do filho que teve com ela, havia violado uma lei que ele mesmo havia escrito.

Para escutar Aspásia, Sócrates interrompia suas aulas. Anaxágoras citava suas opiniões:

- Que arte ou poder tinha essa mulher, para dominar os políticos mais eminentes e para inspirar os filósofos? - perguntou-se Plutarco.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 50.

sábado, 25 de março de 2017

Contrato geral para a Grande Pirâmide

Memória de Gizé, Eugen Bracht

Uma das oitenta pirâmides remanescentes, a Grande Pirâmide de Quéops, em Gizé, é a maior estrutura em pedra de todo o mundo. Os antigos egípcios nivelaram sua base de cerca de 52 quilômetros quadrados - um quadrado perfeito - com tanta maestria que o ângulo sudeste é apenas um centímetro mais alto que o ângulo noroeste. O interior é massa praticamente sólida de lajes de calcário, o que exigiu excelentes técnicas de engenharia para proteger as pequenas câmaras mortuárias do peso maciço das pedras acima. O teto da Grande Galeria foi construído em camadas e escorado, enquanto a câmara do faraó recebeu um teto de seis camadas de granito sobre compartimentos separados, para aliviar a tensão e deslocar o peso dos blocos diretamente acima. Construída em 2600 a.C. para durar para sempre, permanece até nossos dias. Se você fosse construir a Grande Pirâmide, precisaria de:

Material
* 2.300.000 blocos de calcário, cada um pesando em média 2 1/2 toneladas
* Ferramentas rudimentares para cortar cobre e pedra
* Barcaças para trazer os blocos das pedreiras da margem leste para a margem oeste do Nilo
* Rolos de madeira, rampas temporárias de tijolos, pranchas de madeira para levantar as pedras no local da construção
* Calcário branco-perolado para revestir a superfície de uma pirãmide de 160 metros de altura

Pessoal
* 4.000 operários para mover blocos de até 15 toneladas, sem a ajuda de animais de tração, roda ou talhadeira

Tempo estimado
* 23 anos (na época, o tempo médio de vida era 35 anos)

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

quinta-feira, 23 de março de 2017

Onde há fumaça, há fogo 4

Em 1492, a  civilização mais complexa na América do Norte se encontrava no vale do México. Essas pessoas se autodenominavam mexicas, mas, em anos posteriores, os espanhóis se referiam a elas como astecas. Sua capital, Tenochtitlán, foi construída em uma ilha do lago Texcoco e era maior do que qualquer cidade europeia. Canoas deslizavam por canais em toda parte. Mercadores traziam produtos de milhares de quilômetros de distância. Havia papagaios à venda, mantos de algodão e chocolate quente, tortillas, peru, coelho, peles de animais, penas bonitas de todos os tipos e ouro em pó, cuidadosamente embalado dentro de bicos de penas de ganso. Tenochititlán ostentava zoológicos e jardins de museus cheios de plantas exóticas. Aquedutos traziam água potável à cidade, de montanhas a quilômetros de distância. A religião e a cultura astecas eram tão avançadas e únicas quanto as de qualquer civilização na Ásia ou na Europa.

Buffalo hunt, Karl Ferdinand Wimar

Por trás da cultura de todo grupo, há uma história - isto é, um relato de como um costume começou. Na América moderna, por exemplo, muitas pessoas usam calça jeans azul unida por rebites. Esse é um costume, e tem uma história. Na verdade, dois norte-americanos, Levi-Strauss e David Jacobs, tiveram a ideia em 1873. De maneira similar, alguém, ou talvez um grupo de índios, deve ter pensado em como confeccionar roupas melhores com pele ou uma lança mais afiada - ou teve a ideia de configurar um sistema político em que as pessoas "honoráveis" recebiam reconhecimento especial. Mas nenhum dos povos originários da América do Norte inventou a escrita. Por isso, não temos histórias contando de que modo os indivíduos contribuíram para a maneira como as pessoas viviam, ou sobre os vilarejos que construíram ou as guerras que travaram.

Indian canoe, Albert Bierstadt

Os arqueólogos assumiram a tarefa de descobrir o que aconteceu antes de haver uma história escrita. Seu trabalho de detetive é realmente impressionante, com novos conhecimentos adquiridos a cada ano. Ainda assim, restam muitos enigmas. O que aconteceu com o povo hohocan, que construiu canais? Antes de 1492, a região desértica do Arizona provavelmente abrigou mais índios do que qualquer outro lugar ao norte do império mexica. Por que os canais foram abandonados? O clima se tornou mais quente ou mais seco, dificultando a sobrevivência? Passou a haver pessoas demais vivendo em uma área pequena? Os índios vindos do norte atacaram esses povos? Não sabemos essa história.

Chippewas à la chasse au caribou, Cornelius Krieghoff

Há um enigma similar em torno da única cidade nos Estados Unidos de nossos dias a ter sido construída antes de 1492. Cahokia cresceu à margem do rio Mississíppi onde hoje fica St. Louis. Por volta de 1050, uma praça central, maior do que dez campos de futebol, foi construída à sombra de uma colina de quarenta metros de altura feita pelo homem. Milhares de pessoas viveram lá e ergueram mais de 120 colinas similares. Alguns arqueólogos acreditam que a cidade foi construída, em parte, do assombro religioso depois que uma luz resplandescente iluminou o céu noturno: uma supernova, a explosão de uma estrela morrendo, que foi vista pelos astrônomos chineses em 1054. Mas esta é apenas uma teoria. Tampouco sabemos por que os habitantes da cidade se mudaram, deixando-a deserta na época em que Colombo chegou à América do Norte. Não havia registros escritos.

The War Bonnet, Joseph Henry Sharp

Depois de outubro de 1492, os registros escritos chegaram à América do Norte. Os pássaros voando perto da ilha de São Salvador olharam para baixo e viram algo que nunca tinham visto antes. Sim, como sempre, havia fumaça subindo ao céu, e homens pescando em canoas de tronco. Mas, agora, três embarcações maiores apareceram no vasto oceano azul, com suas velas, gastas pela intempérie, bem estiradas nos mastros. Barcos estranhos com humanos ainda mais estranhos a bordo. As pessoas observando Colombo e seus marinheiros de baixo das árvores da ilha devem ter ficado perplexas. Que roupas estranhas eles usavam! Meias compridas e calças até os joelhos. Casacos acolchoados, quentes e pesados. Quem eram eles? O que sua chegada significava?

A história escrita estava chegando à América do Norte - história escrita, rabiscada em jornais, impressa em livros, armazenada em baús pesados ou enfiada em bolsos. Nada voltaria a ser como antes.

DAVIDSON, James West. Uma breve história dos Estados Unidos. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 13-5.

terça-feira, 21 de março de 2017

Onde há fumaça, há fogo 3

Três mil e duzentos quilômetros para o sul, onde hoje é Oregon, os mesmos gansos voam pelo vale do rio Wilamette. Abaixo, índios consertam uma armadilha para peixes - uma fileira de galhos fincados no fundo de uma corredeira de um rio. Os salmões subindo a correnteza só conseguem passar por umas poucas aberturas, e lá são capturados em cestas trançadas. O climea é mais ameno, e há muitas focas, lontras, moluscos, grandes botos e milhares de pequenos peixes tão gordurosos que podiam ser secos e usados como combustível em uma tocha.


An Indian Painting Pots, Henry F. Farny

Mais ao sul, pássaros atravessando o deserto de Sonora, onde atualmente fica o Arizona, podem ver linhas esculpidas na terra. Estas não são bifurcações de rios, pois as linhas correm retas demais. São feitas pelo homem. Nos séculos depois de 300 d.C., o povo hohocan cavou quase mil quilômetros de canais, alguns com mais de dezoito metros de largura, para trazer água para o feijão, a abóbora e o milho que cultivavam. Os pássaros em 1492 ainda podem ver os restos dos canais, mas os hohokan não estão em parte alguma. [...]

Aquatint by Karl Bodmer from the book "Maximilian, Prince of Wied’s Travels in the Interior of North America, during the years 1832–1834" by Prince Maximilian of Wied.

Em suma, os povos indígenas da América do Norte diferem muitíssimo uns dos outros, em parte porque o ambiente os forçou a inventar diferentes maneiras de sobreviver. No noroeste ameno e úmido à beira do Pacífico, quem pensaria em abrir canais para irrigar plantações? Por outro lado, nenhum índio do deserto inventaria canoas de tronco em uma terra onde não se conhecem árvores grandes.


Salmon Fishing on the Cascapediac River, Albert Bierstadt

O ambiente não é o único motivo pelo qual os índios de 1492 diferiam entre si. Mesmo em climas similares, humanos diferentes pensarão em soluções diferentes para os mesmos problemas. Em 1492, fazia milhares de anos que havia pessoas vivendo na América do Norte - tempo suficiente para desenvolver diferentes crenças, costumes e culturas. Nas terras áridas da Grande Bacia, onde a sobrevivência era difícil, cada pequeno bando era liderado por um caçador que houvesse demonstrado coragem e habilidade. As sociedades indígenas do sudeste tinham povoados muito maiores e sistemas políticos muito mais complexos. Os natchez, por exemplo, se dividiam em hierarquias diferentes, governados por um rei (conhecido como O Grande Sol) e seus parentes (Pequenos Sóis). Abaixo vinham os nobres, os honoráveis e, na base da pirâmide, uma classe mais numerosa chamada indesejáveis. Como o nome O Grande Sol sugere, o culto ao sol exercia um papel importante na vida religiosa dos índios do sudeste.

(Continua no próximo post)

DAVIDSON, James West. Uma breve história dos Estados Unidos. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 12-3.

domingo, 19 de março de 2017

Onde há fumaça, há fogo 2

Onde há fumaça, há fogo, diz o ditado. Bem acima do Mississíppi, a fumaça subia das fogueiras usadas na construção de canoas de tronco. O fogo queimava até que o interior do barco ficasse oco. No rio, dezenas de canoas brilhavam ao sol, com quarenta a sessenta homens em cada uma. Não era extamente uma pequena canoa de casca de bétula! Em um dia de cerimônia ou guerra, os barqueiros pintavam o rosto de marrom avermelhado, e muitas cabeças ostentavam cocares de penas brancas. Alguns índios se ajoelham ao remar; outros ficam atrás deles, seus escudos prontos para evitar um ataque. Uma cobertura na popa faz sombra para o comandante de cada canoa.


Indian Telegraph, John Mix Stanley

Nas Planícies, os índios fazem fogueiras para marcar búfalos e, na Grande Bacia, queimam pastos para eliminar lagartos do solo. Alguns povos queimam campos para encorajar o crescimento de mirtilos ou girassóis; outros tocam fogo para afastar hordas de mosquitos nocivos. Nas Rochosas. os índios usam fogo inclusive para celebrar. Abetos inteiros são queimados, seus galhos soltando fagulhas na noite como fogos de artifício. Humanos de uma ponta a outra do continente usam o fogo como ferramenta para moldar o território a seu gosto.

Equipment for curing fish used by the North Carolina Algonquins, John White

Em outros aspectos, os povos indígenas diferiam muitíssimo. De fato, podemos dizer que o lema da América do Norte em 1492 era o oposto de E pluribus unum. Não De muitos povos, um, mas De um continente, muitos povos. Dependendo de que pássaros você seguirt, verá enormes diferenças nas maneiras como os índios se adaptaram ao mundo à sua volta. Alguns viviam em bandos simples, caçando e coletando alimentos. Outras civilizações ostentavam campos cultivados, monumentos, templos, cidades, astrônomos, sacerdotes e governantes.


The Harvest Song, E. Irving Couse

Um bando de gansos partindo do Ártico ocidental avistaria grupos de inuítes caçando baleias em umiaks - embarcações abertas feitas de pele de morsa estirada sobre madeira flutuante. Os inuítes (também conhecidos como esquimós) possuem arpões fortes o suficiente para perfurar a pele grossa das baleias, uma fonte de alimento valiosa. (Gordura de baleia tmbém é um bom combustível em lamparinas a óleo). As mulheres inuítes desenvolveram a habilidade de costurar intestino de foca e pele de peixe para fazer roupas que se ajustam mais ao corpo e, portanto, aquecem melhor os que vivem nessas terras invernais.

(Continua no próximo post)

DAVIDSON, James West. Uma breve história dos Estados Unidos. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 11-2.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Onde há fumaça, há fogo 1

Em um dia agradável de outono, o sol aquece as encostas dos montes Apalaches. À medida que o ar quente sobe, cria uma corrente ascendente que um gavião usa para sobrevoar a terra à procura de uma presa. A visão de um gavião é incrivelmente aguçada. Empoleirado sobre uma árvore de dezoito metros de altura, ele pode avistar no chão um inseto do tamanho desde i.


Pipestone Quarries, George Catlin

Imagine o que você veria se acompanhasse esses pássaros em sua jornada rumo ao sul. A maioria das pessoas pensa na América do Norte em 1492 como um território vasto e intocado, cheio de animais selvagens. Imaginam que, de vez em quando, é possível avistar índios atravessando um lago a remo em uma canoa feita de casca de bétula ou perseguindo búfalos a cavalo. Mas tal imagem seria extremamente equivocada. Para corrigir um detalhe imediatamente, elimine os cavalos. Em 1492, fazia 13 mil anos que não se viam cavalos na América do Norte. De fato, alguns arqueólogos acreditam que os primeiros humanos na América do Norte exterminaram os cavalos, bem como muitos mamíferos gigantes que vagavam por essas terras, incluindo mastodontes e mamutes lanudos, preguiças gigantes mais altas que uma girafa e leões de mais de dois metros de altura.

Ceremony of Secotan warriors in North Carolina, John White

Mais tarde, porém, os colonizadores europeus relataram grandes números de animais selvagens na América. Os rios da Virgínia estavam tão cheios de peixes que os cascos dos cavalos os pisoteavam quando os colonos ingleses trotavam em águas rasas. Os pescadores de Nova York capturavam lagostas de trinta centímetros de comprimento, que eles preferiam para "servir à mesa" porque eram mais convenientes de comer do que as lagostas de um metro e meio que eles também pescavam. Bisões não só perambulavam pelas Grandes Planícies como também eram vistos na Pensilvânia e na Virgínia, muito mais à leste. Havia tantos pombos-passageiros escurecendo os céus que quando pousavam para dormir os galhos das árvores quebravam sob seu peso. Em 1492, portanto, certamente veremos vida selvagem em abundância. Ainda assim, tais relatos de abundância podem ser enganosos. [...] essa grande quantidade de animais pode ter sido, em parte, criada pela chegada dos europeus na América do Norte, por mais estranho que isso possa parecer.


The Silent Fisherman, N. C. Wyeth

Em 1492, cerca de 8 milhões de índios viviam na América do Norte. Esse número não é grande, especialmente para um continente inteiro. Mais de 8 milhões de pessoas vivem hoje na cidade de Nova York. Ainda assim, o número é significativo. Para comparar, as ilhas Britânicas tinham de 2 a 3 milhões de habitantes em 1492. A França, o país mais populoso da Europa, tinha em torno de 15 milhões de pessoas. E na Ásia, mais de 100 milhões viviam somente na China. Então, pensando em 8 milhões de índios espalhados pela América do Norte, juntemo-nos aos gaviões em seu voo. O que vemos abaixo é um continente que é menos selvagem do que esperávamos. Não importa onde sobrevoamos, quase em toda parte vemos nuvens de fumaça.

(Continua no próximo post)

DAVIDSON, James West. Uma breve história dos Estados Unidos. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 10-1.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Poesia indígena

Acampamento indígena, Albert Bierstadt

I

O que é a vida?
É o brilho de um vaga-lume na noite,
é a respiração de um búfalo no inverno,
é a breve sombra que corre sobre a grama
e desaparece ao pôr do sol...
Pé de Corvo, do povo Pés Pretos, Canadá

II

Ao som da cantiga,
Dormirás.
À meia-noite,
Eu virei.
Poema inca de autor desconhecido, século XVI

III

Passe com cuidado pela ponte.
Viva bem com os outros que partiram,
Assim como eles estão vivendo bem.
Você pode viver bem da mesma maneira...
Lá você verá muita coisa que já viu aqui na terra,
Assim como o gavião.
Teus parentes virão encontrá-lo na ponte
E te levarão para sua morada.
Canto fúnebre kaingang, século XIX

segunda-feira, 13 de março de 2017

O Extremo Oriente na Antiguidade: Religiões

Figuras pintadas em uma telha cerâmica de um túmulo da dinastia Han Oriental, Luoyang, província de Henan. Artista desconhecido. 

Nas sociedades extremo-orientais, a religião era profundamente ligada à filosofia. Dessa interligação, e a partir de elementos comuns originários das religiões primitivas - como o culto aos mortos e aos antepassados, culto e sacralização (às vezes divinização) de forças da natureza, principalmente as ligadas à fertilidade da terra, e deuses astrais ou celestiais -, surgiram importantes sistemas religiosos e filosóficos que perduram até hoje.

* Bramanismo-hinduísmo. Religião que se compôs pelo sincretismo entre as formas praticadas pelas populações indianas aborígenes e as que foram introduzidas pelos dominadores arianos. O bramanismo é a expressão e a fundamentação ideológica do sistema que divide a sociedade em castas.

* Budismo. Doutrina criada por um princípe do clã Sakya Muni, chamado Sidharta Gautama, que se tornou o Buda (o Desperto ou o Iluminado). Ele nasceu na segunda metade do século VI a.C. e viveu até quase o final do século V a.C. Sua doutrina expandiu-se na Índia a partir da época do rei Açoka (273-232 a.C.) e atingiu todo o Extremo Oriente, graças ao trabalho de missionários hindus e de peregrinos estrangeiros, sobretudo chineses que buscavam os ensinamentos do Mestre. O budismo prega a plena realização da natureza humana e a criação de uma sociedade perfeita e justa. Aberto a todos os grupos sociais e culturais e a diferentes nacionalidades, hoje se faz presente também no Ocidente.

* Taoísmo. Religião popular na China antiga, baseada em uma fusão de cultos aos espíritos da natureza e aos ancestrais e nas doutrinas de Lao-tsé (570-490 a.C.), sobre o qual as informações existentes são carregadas de componentes lendários. Sua doutrina pregava uma moral de salvação individual, sem preocupação social, como forma de cada um integrar-se ao Tao, concebido como o Elã Cósmico e a Energia Universal.

* Confucionismo. Confúcio (Kung-fu-tzu, Mestre Kung), que viveu entre 551 a.C. e 479 a.C., não foi um líder religioso, mas suas ideias exerceram profunda influência sobre a religião chinesa. Para ele, a realização de uma existência desenvolvida sob o signo de Tao só seria possível numa sociedade justa e civilizada.

* Xintoísmo. De xintó, palavra de origem chinesa, que significa caminho ou via dos deuses. Era a religião original do Japão, anterior à penetração do budismo. Preservou-se como crença popular nas divindades locais, em oposição à crença em Buda, de origem estrangeira. 

O pensamento religioso e filosófico produziu, no Extremo Oriente, uma vasta e rica literatura.

Uma das obras mais importantes é o conjunto de textos hindus, conhecido como Veda, que significa o saber. É o principal fundamento para o bramanismo e expressa a dominação ariana.

Na China, a literatura religiosa, tal como a religião propriamente dita, assumiu um acentuado teor filosófico.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. Sâo Paulo: Saraiva, 2002. p. 88-9.

sábado, 11 de março de 2017

O Extremo Oriente na Antoguidade: economia e sociedade

Na estrada para Dwarka, Abhimanyu e Subhadra encontram Ghatotkacha. Cena da história do casamento de Abhimanyu e Vatsala. Artista desconhecido

O Extremo Oriente é a parte do continente asiático que, durante a Antiguidade, viveu processos históricos independentes do conjunto mediterrânico.

Esse afastamento, ou mesmo desligamento, não significou, porém, ausência de contatos: a área dos atuais Afeganistão e Paquistão foi intermediária entre as culturas do Extremo Oriente e as do Mediterrâneo (Ásia Ocidental), propiciando assim mútua influência. Além disso, existiram, desde as épocas mais remotas, relações comerciais entre as duas grandes regiões.

[...] 

[...] essas civilizações, ao contrário do que ocorreu com as civilizações centradas no Mediterrâneo, não se extinguiram. Elas passaram, evidentemente, por profundas e radicais transformações. Contudo, a ruptura com as características que as situavam em uma Idade Antiga foi bem mais tardia, ultrapassando em séculos a era cristã. Mas, ainda mais importante, para efeitos de diferenciação, é que essa ruptura não significou, aos respectivos povos, perda de identidade em relação ao seu passado remoto.

Os impérios orientais, apesar das distâncias e do isolamento em relação ao mundo mediterrânico, estabeleceram contatos políticos e militares com o Ocidente. Os territórios dos atuais Afeganistão e Paquistão foram áreas atingidas pelas conquistas persa e macedônica. A China, por sua vez, a partir do século IV, foi periodicamente invadida por nômades altaicos: hunos, turcos e mongóis. Esses grupos, usando cavalos, expandiram-se também sobre a Ásia Ocidental e a Europa, criando grandes impérios.

Dos hunos de Átila, do século V, aos mongóis de Gêngis Khan, dos séculos XII-XIII, a história do Extremo Oriente integrou-se à história europeia.

As sociedades antigas do Extremo Oriente estruturam-se também em uma base agrária.

A partir da economia agrícola, organizaram-se rígidos sistemas de divisão e estratificação sociais. O exemplo mais expressivo foi o sistema de castas da sociedade hindu.

O sistema de castas, cuja origem remonta ao período de instalação dos arianos, formou-se progressivamente no século I da era cristã. A distinção inicial estabeleceu-se a partir dos componentes étnicos. A palavra usada para indicar as castas (varna = cor) distinguia o invasor ariano, branco, do aborígene de cor escura. Na Índia védica (XVI-VII a.C.), apresentavam-se perfeitamente distintos os quatro grupos fundamentais: brâmanes (sacerdotes), xátrias (guerreiros), vaixás e sudras (trabalhadores).

De distinção étnica, o sistema de castas tornou-se a expressão das diferenças socioeconômicas, apresentando-se cada vez mais rígido. Ele estabelecia, ou pressupunha, uma total separação entre os grupos sociais: era proibido o casamento entre membros de castas diferentes. Além da distinção das funções, as castas tinham tipos e condições de vida distintos, inclusive as práticas e os ritos religiosos.

Mesmo onde e quando a sociedade não se apresentou tão rigidamente estratificada como na Índia, prevaleceu uma divisão segundo a qual os proprietários de terra constituíam a categoria social privilegiada e poderosa por excelência, enquanto o camponês, ou seja, o trabalhador da terra, compunha o segmento mais explorado e dominado.

Em todos os Estados extremo-orientais havia, também, a escravidão. O trabalho escravo, explorado pelos senhores de terra e, sobretudo, pelo Estado, representado pelo rei ou pelos templos, era largamente empregado nas grandes construções e em outras tarefas que exigiam mão-de-obra numerosa, como a irrigação de terras.

Os Estados do Extremo Oriente constituíram-se na forma de monarquias despóticas, nas quais se fundiam o poder político e o religioso. O soberano era chefe de Estado e sumo sacerdote, sendo em geral divinizado ou considerado descendente ou mandatário de deuses.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 86-8.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Sabedoria indígena

Acampamento indígena, Henry F. Farny


“O homem sentado no chão de sua tenda, meditando sobre a vida e seu significado, aceitando o parentesco com todas as criaturas e reconhecendo a unidade do universo das coisas, este homem está instilando em seu ser a verdadeira essência da civilização.”

Cacique Urso em Pé, do povo sioux

terça-feira, 7 de março de 2017

Os últimos búfalos do Norte

O último búfalo, Albert Bierstadt

O búfalo já é uma curiosidade em Montana e os índios black-feet roem ossos velhos e cascas de árvores.

Touro Sentado encabeça a última caçada dos sioux nas planícies do norte. Depois de muito andar, encontram uns poucos animais. Por cada um que matam, os sioux pedem perdão ao Grande Búfalo invisível, segundo quer a tradição, e lhe prometem que não desperdiçarão nenhum pelo do morto.

Pouco depois, a Estrada de Ferro do Pacífico Norte celebra o apogeu de sua via que chega de costa a costa. Essa é a quarta linha que atravessa o território norte-americano. As locomotivas de carvão, com freios pneumáticos e carros Pullman, avançam na frente dos colonos rumo às planícies que foram dos índios. Por todas as partes brotam cidades novas. Cresce e se articula o gigantesco mercado nacional.

As autoridades da Estrada de Ferro do Pacífico Norte convidam o chefe Touro Sentado para pronunciar um discurso na grande festa de inauguração. Touro Sentado chega da reserva onde os sioux sobrevivem por caridade. Sobe ao palco coberto de flores e bandeiras e se dirige ao presidente dos Estados Unidos, aos ministros e personalidades presentes e ao público em geral:

- Odeio os brancos - diz. - Vocês são ladrões e mentirosos...

O intérprete, um jovem oficial, traduz:

- Meu coração vermelho e doce vos dá as boas-vindas...

Touro Sentado interrompe o clamoroso aplauso do público:

- Vocês nos arrancaram a terra e fizeram de nós uns párias...

O público ovaciona, de pé, o emplumado guerreiro, e o intérprete transpira, gélido.

GALEANO, Eduardo. Memória do Fogo: As caras e as máscaras. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 501-2.

domingo, 5 de março de 2017

As terras sagradas dos apaches

Acampamento dos índios Crow, Joseph Henry Sharp

Aqui, no vale onde nasce o rio, entre as altas rochas do Arizona, está a árvore que deu abrigo a Jerônimo há trinta anos. Ele acabava de brotar do ventre da mãe e foi enviado numa manta. Penduraram a manta num galho. O vento acalentava o menino, enquanto uma voz suplicava à árvore:

- Que viva e cresça para ver te dar frutos muitas vezes.

Essa árvore está no centro do mundo. Parado à sua sombra, Jerônimo jamais confundirá o norte com o sul nem o mal com o bem.

Ao redor abre-se o vasto país dos apaches. Nessas toscas terras vivem desde que o primeiro deles, o filho da tormenta, vestiu as plumas da águia que tinha vencido os inimigos da luz. Aqui jamais faltaram animais para caçar, nem ervas para curar os enfermos, nem cavernas rochosas onde jazer depois da morte.

Uns estranhos homens chegam a cavalo, carregando longas cordas e muitos bastões. Têm a pele como se fosse dessangrada e falam um idioma jamais ouvido. Cravam na terra sinais coloridos e fazem perguntas a uma medalha branca que lhes responde movendo uma agulha.

Jerônimo não sabe que esses homens vieram medir as terras apaches para vendê-las.

GALEANO, Eduardo. Memória do Fogo: As caras e as máscaras. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 461-2.

sexta-feira, 3 de março de 2017

O Faroeste

Acampamento indígena, Jules Tavernier

E por acaso alguém escuta o velho chefe Seattle? Os índios estão condenados, como os búfalos e os alces. Quem não morre de tiro morre de fome ou de pena. Da reserva onde definha, o velho chefe Seattle fala na solidão sobre explorações e extermínios, e diz sabe-se lá o quê sobre a memória de seu povo circulando pela seiva das árvores.

Zune o Colt. Como o sol, os pioneiros brancos marcham rumo ao oeste. Uma luz de diamante os guia lá das montanhas. A terra prometida rejuvenesce aquele que lhe crava o arado para fecundá-la. Num piscar de olhos brotam ruas e casas na solidão habitada por cactos, índios e serpentes. O clima, dizem, é tão, tão sadio, que para se inaugurar os cemitérios o único remédio é derrubar alguém a tiro.

O capitalismo adolescente, atacante guloso, muda o que toca. Existe o bosque para que o machado o derrube e o deserto para que o atravesse o trem; o rio vale a pena se tem ouro e a montanha se contém carvão ou ferro. Ninguém caminha. Todos correm, urgentes, impedidos, atrás da errante sombra da riqueza e do poder. Existe o espaço para que o derrote o tempo, e o tempo para que o progresso o sacrifique em seus altares.

GALEANO, Eduardo. Memória do Fogo: As caras e as máscaras. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 459.

quarta-feira, 1 de março de 2017

O fogo

Taos Pueblo - Luar, Eanger Irving Couse

As noites eram de gelo e os deuses tinham levado o fogo embora. O frio cortava a carne e as palavras dos homens. Eles suplicavam, tiritando, com a voz quebrada; e os deuses se faziam de surdos.

Uma vez lhes devolveram o fogo. Os homens dançaram de alegria e alçaram cânticos de gratidão. Mas de repente os deuses enviaram chuva e granizo e apagaram as fogueiras.

Os deuses falaram e exigiram: para merecer o fogo, os homens deveriam abrir peitos com um punhal de pedra e entregar corações.

Os índios quichés ofereceram o sangue de seus prisioneiros e se salvaram do frio.

Os cakchiqueles não aceitaram o preço. Os cakchiqueles, primos dos quichés e também dos maias, deslizaram com pés de pluma através da fumaça e roubaram o fogo e o esconderam nas covas de suas montanhas.

GALEANO, Eduardo. Memória do fogo: Os nascimentos. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 21-2.