"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 31 de julho de 2016

Cotidiano das mulheres camponesas [Europa, final do século XIX]

Camponesas com silvado, Jean-François Millet

A vida das camponesas era regrada pela da família e dos ritmos dos campos. Numa rígida divisão de papéis, tarefas e espaços. Para o homem, o trabalho da terra e as transações do mercado. Para a mulher, a casa, a criação de animais, o galinheiro e a horta, cujos produtos [...] ela vendia na feira. De acordo com a idade e com a posição na família, elas trabalhavam no campo por ocasião das colheitas de todos os tipos, de batatas a vindimas, curvadas sobre a terra ou sob o peso de cargas. A velha camponesa é uma mulher recurvada. Elas cuidavam do rebanho, das vacas, que vigiavam e ordenhavam, das cabras, cujo leite servia para fabricação artesanal de queijo, que também era serviço delas. [...] A camponesa é uma mulher ocupada, preocupada em vestir (ela fia) e em alimentar os seus (autossubsistência e confecção das refeições) e, se possível, trazer para casa um suplemento monetário a partir do momento em que o campo se abriu para o mercado: mercado alimentar, mercado têxtil. Muito cedo ela fia para fora ou faz rendas [...] que são buscadas nas aldeias por estafetas. O luxo, na corte e na cidade, principalmente a partir do século XVII, aumentou a demanda com relação às mulheres, que assim entraram no circuito monetário.

A fiadeira, Jean-François Millet


Esse mundo rural, cujo pilar é o casal, é muito hierarquizado: entre os sexos (ele é o senhor); entre as mulheres. A dona de casa reina sobre a família e os agregados. Ela toma conta das filhas, preocupada com seus namorados e seu enxoval, modo de transmissão privilegiado entre mãe e filha. Cuida da roupa branca, cujas lavagens constituem verdadeiras cerimônias. Cuida dos parentes idosos, reclamando quando tem de trazê-los para morar em sua casa. Vigia as criadas, muitas vezes às voltas com as inconveniências dos cavalariços, ou do patrão, para ver se não estão engordando além do normal por baixo de seus blusões ou aventais. Essas criadas, filhas de famílias numerosas, que não podem sustentá-las nem empregá-las, pertencem à camada mais pobre e mais exposta do mundo rural.

As lavadeiras, Jean-François Millet


Essa vida rude tem seus ritos e seus prazeres para as mulheres, cujo poder oculto é, com freqüência, muito forte. Ele se exerce pelo olhar e pela palavra. Na igreja, onde elas são as mais fervorosas. Nas feiras, onde gerenciam o comércio a varejo. Na lavanderia, as mulheres falam entre si e lavar roupa branca é atividade propícia à confidência. Os homens temem o burburinho das lavanderias, que operam uma espécie de censura, desfazem uma reputação. À noite, nos momentos de vigília, as mulheres mais velhas contam histórias e transmitem as lendas e os acontecimentos da vizinhança. Mas logo os jovens forasteiros lhes furtam essa vantagem com seus relatos em que predominam os rumores da cidade. [...]

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 111-2.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Cuecas e calcinhas

Qual é a primeira peça de roupa que você veste todos os dias? Com certeza a calcinha. Ou a cueca. Peças íntimas são tão comuns hoje que é quase impossível imaginar que há pouco tempo mulheres saíam de casa sem nada por baixo da saia. Quando vestiam alguma coisa, eram peças largas, feitas de um tecido fino e que, no Brasil, ficaram conhecidas como anáguas.

Mosaico romano mostrando duas mulheres vestindo "calcinha" e "sutiã". Artistas desconhecidos

As roupas femininas íntimas ajustadas ao corpo, como conhecemos hoje, são um invento bastante recente e, mesmo depois de terem sido inventadas, não eram usadas por todo mundo. Nos anos 1700, por exemplo, calcinhas eram consideradas vestes de prostitutas e atrizes (palavras que, na época, eram quase sinônimos). O máximo que mulheres de bem usavam era uma espécie de calça que ficou conhecida como culote - era como uma calça cigarrete, só que larga na parte de cima e justa apenas nas pernas.

Já a cueca é um costume bastante antigo. Os homens do tempo das cavernas já usavam uma espécie de fralda, feita de tecido ou couro, para proteger as partes íntimas. Tribos africanas ou indígenas tinham uma outra maneira de esconder o pênis: enrolavam-no com um pedaço de tecido, até que ele tivesse completamente coberto. Até hoje, algumas tribos usam enfeites penianos como cueca. É o caso dos zo'és, uma tribo de índios da Amazônia que não aparece em público de jeito nenhum se não estiver usando o seu adereço.

São Domingos presidindo um Auto de fé (detalhe), Pedro Berruguette. Sacristia da Igreja de Santo Tomás, Ávila, ca. 1495

No ano 1300, os cavaleiros tiveram de abusar das cuecas. É que o uniforme da época eram as armaduras de metal e só um bom pedaço de linho amarrado entre as pernas e na cintura salvava-os da dor de ter o pênis encostando naquela armação de ferro durante uma batalha. Nessa época, cuecas eram tão importantes que muitas vezes apareciam por cima da roupa, demarcando a genitália. Nesse caso, elas incluíam até mesmo algum tipo de sistema abre e fecha. Assim, quando batia a vontade de ir ao banheiro, os homens não precisavam tirar toda a roupa para se aliviar. Bastava abrir o botãozinho da cueca exterior.

Com o tempo, tanto exibicionismo saiu de moda e os homens (principalmente os que viviam em países frios) trocaram os pequenos pedaços de pano pelos "macacões de meia", um macacão feito com um algodão fininho, que cobria todo o corpo.

No Brasil, que era bastante quente, a moda era a ceroula, uma cueca que ia da cintura até o tornozelo. Tanto o macacão quanto a ceroula ajudavam a esquentar e impediam que o suor do corpo chegasse às roupas - que não eram lavadas com tanta frequência. Essas peças íntimas também serviam para proteger a pele, já que os tecidos das roupas não eram tão macios quanto os de hoje.

Ou seja, até 1930 mais ou menos, qualquer roupa íntima tinha apenas um propósito: ser útil. Hoje, isso mudou. Calcinhas e cuecas passaram a ser vistas como um item de moda e procuram mostrar um pouco a personalidade da pessoa que as escolhe. Opção é o que não falta.

SOALHEIRO, Bárbara. Como fazíamos sem... São Paulo: Panda Books, 2010. p. 72, 74-75.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Casas e lares nas primeiras comunidades agrícolas

Vila aruaque.
 G.W.C. Voorduin

Desde os primeiros tempos, os seres humanos buscaram abrigo e proteção contra as intempéries. Os primeiros povos nômades aproveitavam o abrigo natural das cavernas, formações rochosas e florestas ou construíam choças de galhos cobertos com couro de animais.

Com a chegada da agricultura, os povos puderam se instalar em um só lugar e construir lares mais duráveis. Os celtas – antigo povo europeu – construíam casas redondas com paredes baixas de pedra ou de ramos e galhos entrecruzados e cobertos de lama. O telhado era uma estrutura de galhos coberta com feixes de palha amarrada.

Casas e lares nas primeiras comunidades agrícolas. 
Albert Bushnell Hart, William Scott Ferguson, Charles Howard McIlwain, Everett Kimball,  Matteson, David Maydole Matteson, Noah Webster


As comunidades neolíticas do Oriente Médio aprenderam a fazer tijolos pressionando a argila em moldes de madeira e deixando-a secar ao sol. Por serem fortes, duráveis e fáceis de produzir, os tijolos de argila se tornaram o material de construção mais importante da região.

Quando uma casa de arruinava, era logo derrubada e substituída por outra nova.


WOOLF, Alex. Uma Nova História do Mundo. São Paulo: M. Books do Brasil, 2014. p. 17.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A mulher e a sexualidade na Roma antiga: A posição da mulher na sociedade romana

Amo-te, ama-me, Sir. Lawrence Alma-Tadema

As informações que temos sobre a mulher na sociedade romana antiga se referem quase exclusivamente às famílias aristocráticas. [...]

A predominância masculina e a dominação da mulher pelo homem nas mais variadas sociedades têm sido muito destacados pelos estudiosos. Também a mulher romana estava submetida ao poder masculino.

No entanto, em nenhuma sociedade a dominação masculina é total e absoluta. Existem graus e modos variados de dominação. As decisões não são tomadas só pelos homens, e sua predominância não se efetiva em todos os assuntos.

Na política, no trabalho, nos negócios - quer dizer, no espaço público - o homem romano, aparentemente, decidia tudo. No entanto, em casa, no espaço doméstico, predominava a mulher, a administradora do lar.

Mesmo na política, a mulher romana tinha uma influência indireta, mas por vezes decisiva. Não faltam exemplos históricos de mulheres intuitivas e inteligentes, influenciando maridos e amantes que ocupavam posições de poder. Isso torna difícil para os historiadores saber com certeza a origem de muitas decisões.

Para entender uma sociedade, é importante ir além das leis e das regras sociais escritas. É preciso saber como essas leis e regras eram aplicadas e analisar episódios históricos concretos para entender a verdadeira posição da mulher na sociedade romana.

[...] os mitos são uma fonte importante para entendermos valores que orientam o comportamento das pessoas em uma sociedade. O mito [...] a seguir é um exemplo disso. Ele foi registrado pelo historiador Tito Lívio, que também viveu na época do imperador Otávio Augusto.

A história se passa na época do primeiro rei de Roma, o lendário Rômulo. Nesses primeiros tempos não havia mulheres em Roma - coisa só possível em uma lenda. Então, era preciso conseguir esposas.

Os povos vizinhos, entre eles os sabinos, não estavam dispostos a ceder suas filhas para os homens rudes e de origem incerta que habitavam Roma. Diante dessa dificuldade, Rômulo teve a ideia de raptar mulheres das aldeias vizinhas.

Os sabinos foram convidados para uma festa em homenagem aos deuses. Durante os festejos os romanos raptaram as moças que vieram para as comemorações. Após o rapto, os romanos tentaram, com a ajuda do próprio rei, consolar as jovens raptadas. Eles só tinham cometido o rapto por necessidade absoluta, movidos pela força da paixão e do amor. Elas seriam consideradas como verdadeiras esposas. O carinho e a atenção dos maridos fariam com elas esquecessem a dor, a violência e a separação das famílias.

Loucos de dor e ódio, os sabinos se prepararam para a guerra. Logo um poderoso exército se aproximou de Roma. Os romanos saíram ao encontro dos sabinos e travou-se um terrível combate, com muitas mortes de ambos os lados. Em um intervalo da batalha, irrompe no campo uma procissão das jovens esposas, que eram a causa da guerra, Com cabelos soltos e vestes em farrapos para demonstrar o seu desespero, elas imploram para que cesse a guerra.

Sensíveis aos apelos daquelas que mais amavam no mundo, os combatentes interromperam a luta. Por meio de um tratado, não só a paz foi restabelecida, como os dois povos decidiram se unir.

Bem de acordo com o espírito romano, o episódio teve consequências legais: os privilégios e as honras prometidas pelos maridos a suas esposas foram transformados em leis. Elas não fariam nenhum trabalho pesado e servil. Cuidariam dos filhos, fiariam a lã e administrariam o lar.

Que conclusões podemos tirar desse relato lendário? Em primeiro lugar ele mostra que os romanos atribuíam um papel muito importante à mulher na fundação da cidade. Roma teria nascido não apenas da coragem dos guerreiros, mas também do amor e da compreensão das sabinas, que consentiram no seu rapto, promovendo a união com os romanos. O mito mostra ainda que as leis romanas, no que se refere ao casamento e aos direitos da mulher, não foram resultado de um ato de imposição, mas sim da livre aceitação de maridos e esposas.

Outras lendas vão na mesma direção, colocando a mulher em uma posição honrosa e quase sagrada. Muitas dessas lendas ressaltam a vocação profética das mulheres, cuja intuição os homens não vacilavam em seguir. A mulher romana recebia uma veneração quase religiosa. O marido e os filhos devotavam a ela ternura, respeito e se comportavam diante dela com humildade receosa. Nas relações entre marido e mulher, mais do que a submissão, predominavam a cumplicidade e a colaboração.

Todavia, apesar dessa posição honrosa reservada à mulher romana, tanto a lei como os costumes procuravam limitar o seu espaço às fronteiras do lar. Fora de casa, sua influência se dava através da pessoa do marido, do pai ou do irmão. O documento ¹ abaixo mostra, entretanto, que a mulher não se conformou em ficar limitada ao ambiente do lar.

Juvenal ², o autor do documento, representando os valores da tradicional sociedade romana, satiriza as pretensões da mulher em participar de banquetes, de discussões intelectuais e da vida pública em geral.

Assim, as relações entre os sexos era marcada também por uma tensão: de um lado, havia o desejo da mulher de ir além do papel determinado a ela pela lei e pelos homens; de outro, a ação dos homens para impedir que ela ultrapassasse esses limites.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 215-219.

¹ Conselhos para as mulheres [...] Ainda mais exasperada é a mulher que, assim que se senta à mesa para um jantar, pede para falar em poesia e poetas, quer comparar Virgílio com Homero. Não dá chances a professores, críticos, advogados, leiloeiros ou mesmo a outra mulher. Ela faz tanto barulho que você pensaria em panelas e potes caindo no chão de uma cozinha ou que todos os sinos da cidade estivessem tocando ao mesmo tempo. [...] Ela deveria seguir o ensinamento do filósofo: "a moderação é necessária mesmo para os intelectuais". Ora, se ela realmente quer aparecer educada e eloquente, ela que se vista como um homem, faça sacrifícios para os deuses dos homens e se banhe nos banheiros públicos masculinos. Do meu ponto de vista, esposas não deveriam tentar ser oradores públicos, não deveriam usar a retórica, elas não deveriam ler os clássicos [...] Eu mesmo não entendo uma mulher que faz citações gramaticais sem cometer um erro e cita obscuros poetas. Os homens não se preocupam com tais atitudes. Se ela realmente quer corrigir alguém para aparecer, que o faça com suas amigas e deixe seu marido em paz.

² Décimo Júnio Juvenal nasceu no ano de 60 depois de Cristo e escreveu a maior parte de sua obra a partir do ano de 96. Era um autor satírico. A sátira é um gênero literário que tem como característica criticar, ridicularizando e ironizando, costumes, instituições e personalidades. Esse gênero literário era bastante popular na Roma Antiga. Nessas sátiras de Juvenal, a vítima é a mulher romana que quer fazer poesia, discutir filosofia e participar da vida pública.

sábado, 23 de julho de 2016

A mulher e a sexualidade na Roma antiga: Entre o amor e a pátria

Virgílio, famoso poeta da época do imperador Otávio Augusto (27 a.C. - 19 d.C.), escreveu Eneida, obra épica que narra a história de Roma. No relato de Virgílio, a origem de Roma e os tempos primitivos de sua história estão baseados em antigos mitos, contados e reelaborados ao longo dos séculos.

Os mitos e as lendas têm um valor inestimável para os historiadores. Podemos dizer que eles revelam os mais profundos valores, sentimentos e anseios de um povo. Dessa forma, estão mais relacionados ao momento em que são narrados do que à época a que se referem. Isso significa que a história escrita por Virgílio traz informações sobre os tempos remotos de Roma, mas principalmente informa sobre os valores romanos do século I do Império.

As duas lendas [...] a seguir permitem identificar as ideias romanas sobre a paixão e os deveres do cidadão para com a pátria e o destino traçado pelos deuses.

A primeira dessas lendas leva o leitor até a guerra de Tróia, ocorrida por volta do século XII a.C. Afrodite, deusa grega do amor, se apaixonou por Anquises, parente do rei de Tróia. Do namoro entre a deusa e o mortal, nasceu Enéias, que, tempos depois, se casou com Creusa. Desse casamento nasceu Ascânio.

A cidade de Tróia, cercada pelos gregos, estava condenada à derrota e à destruição. Enéias conseguiu fugir, salvando seu pai e o pequeno Ascânio, mas abandonou Creusa, a esposa amada. Apesar da crueldade do ato, ele se justifica pelo dever maior de Enéias: foi designado pelos deuses para fundar uma nova civilização na Itália. Para não pôr em risco a sua missão de dar continuidade à sua raça, ele sacrificou a mulher. Em outras palavras, Enéias não se deixou levar pela paixão. O que era a morte de uma mulher diante da tarefa de fundar Roma? Em outros momentos do mito, o dilema se repete, pois Enéias e seus descendentes são obrigados a sacrificar seus amores e sentimentos pessoais para cumprir a missão determinada pelos deuses. O desfecho da história é positivo.

Uma outra lenda narra o drama de Tarpéia, uma moça romana. Uma versão dessa lenda foi escrita por Propércio, que, assim como Virgílio, viveu no século I de nossa era.

Segundo essa lenda, durante uma guerra contra os seus vizinhos sabinos, os romanos ficaram cercados no Capitólio, a colina onde ficava o templo de Júpiter, no centro da cidade. Tarpeio, um dos líderes romanos, tinha uma filha muito bonita chamada Tarpéia, que se apaixonou pelo formoso Tácio, rei dos sabinos. Não conseguindo controlar os seus desejos, Tarpéia traiu o seu povo, indicando uma passagem secreta para o inimigo invadir a cidade. Em troca, o rei sabino aceitaria o amor de Tarpéia. Todavia, depois de obter a informação, o rei mandou matar a traidora.

Namoro - A proposta, Sir. Lawrence Alma-Tadema

Dessa vez o desfecho foi negativo. Segundo o impulso da paixão e esquecendo os deveres para com o seu povo, a jovem romana provocou a sua própria desgraça e colocou em risco a existência da cidade.

As duas lendas têm o mesmo sentido: os sentimentos e as paixões devem estar submetidos aos interesses da pátria. Enéias, o herói, obedeceu essa regra cívica, moral e religiosa. Tarpéia, a traidora, não seguiu esses princípios e foi castigada com a morte.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 213-214.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A mulher e a sexualidade na Roma antiga: Sexualidade, religião e razão de Estado

De acordo com a concepção cristã tradicional, o lugar "normal" de manifestação da sexualidade é o casamento, e a sua função básica é a reprodução. Em nossa sociedade, até recentemente, sexo com o objetivo de prazer era visto de modo negativo, até como pecado.

A sociedade greco-romana da Antiguidade era completamente diferente. Tanto que os primitivos cultos aos deuses e deusas romanos da fertilidade e do amor incluíam o uso de símbolos fálicos e relações sexuais entre os cultuadores desses deuses. Se o Estado romano procurou sempre controlar as manifestações de sexualidade da população, não foi porque ela era considerada um mal em si, mas porque se achava que o amor e o sexo levavam a ações apaixonadas e irracionais.

Confidências, Sir. Lawrence Alma-Tadema

[...] O amor era sagrado, misterioso, impulsivo, além de ser fonte de vida e de prazer. Mas, exatamente por ser tão poderoso, precisava ser controlado em nome da ordem e do interesse público.

A sexualidade é natural e instintiva, mas como os seres humanos são portadores de cultura, ela se manifesta segundo determinadas regras. A essas regras se acrescenta o controle das leis do Estado. Algumas manifestações religiosas que expressavam a cultura do povo romano foram reprimidas pelo Estado. Foi o caso das orgias, como eram chamadas as festas religiosas ligadas ao culto do deus Baco, nas quais aconteciam grandes bebedeiras.

Atualmente, na maioria dos países do mundo há uma separação entre religião e Estado. As pessoas são livres para praticar a religião que quiserem, e o Estado não obriga ninguém a ter uma religião. Ela é, portanto, um assunto privado. O casamento, embora tenha caráter sagrado para várias religiões, para o Estado é um contrato civil: duas pessoas assumem uma série de deveres e direitos recíprocos.

Na Antiguidade greco-romana não havia essa separação, pois o próprio Estado tinha um caráter sagrado. Dessa forma, era normal que o Estado controlasse a religião. A autoridade religiosa máxima em Roma era exercida por um funcionário público, o Sumo-Pontífice.

Em todas as sociedades o casamento tem uma importância geral e coletiva. É o casamento que constitui as famílias e cria a responsabilidade de determinados adultos em relação às crianças. Esses adultos ficam responsáveis pela educação e socialização das crianças.

Todavia, apesar de ser de interesse público, o casamento é visto por nós como assunto pessoal, de interesse privado. Conscientemente ninguém casa para cumprir deveres cívicos, servir a pátria e colaborar com o bem público. Nós sempre associamos casamento ao amor. Duas pessoas se casam porque existe um sentimento de amor entre elas.

Nesse aspecto, a sociedade romana antiga também era muito diferente, pois em Roma se casava mais por dever cívico e interesse político do que por amor. O desejo, o amor e a afetividade se davam mais fora do casamento do que dentro dele.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 211-212.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Os celtas: a expansão

Imagem 1: Estela funerária céltica.

[...] Heródoto, que escreveu em meados do século V a.C. [...] menciona a presença dos celtas na Península Ibérica, bem perto dos “últimos habitantes da Europa no Ocidente”. Sem dúvida, ele escreveu que o Danúbio nasce entre os celtas e mais precisamente no Roussillon atual. Mas este erro não condena sua dupla afirmação: o Danúbio nasce de fato em região celta e os celtas, antes mesmo do fim da civilização de Hallstatt, já se encontram na Espanha e em Portugal. Certos eruditos falam de celtas, ou pelo menos de protoceltas, na idade do bronze, atribuindo-lhes, desde este momento, migrações em direção a oeste. [...] Desde esta época, encontra-se nas sepulturas o colar aberto que, para os Antigos, foi o símbolo distintivo do celta: o torques, feito de uma haste torcida de ouro ou bronze e terminado por bolas. Quanto à civilização de La Tène, nenhuma dúvida se permite agora: ela é, por excelência, uma civilização celta [...].

Este nome de celta não pode corresponder a qualquer realidade étnica. Os escritores e os artistas da Antiguidade mostram-nos o tipo clássico do celta ou do gaulês: alto, vigoroso, olhos azuis, abundantes cabelos louros ou ruivos. Há nisso muito convencionalismo ou, ao menos, uma generalização abusiva do tipo predominante. Há muito, desde o princípio do I milênio a.C., já não existia, em parte alguma, uma raça pura, no sentido físico da palavra, e em todas as regiões, muito diversas e distantes umas das outras, onde se estabeleceram, os celtas misturaram-se, em maior ou menor escala, com as populações anteriores, por sua vez já muito mestiçadas. [...]

[...]

A lingüística determina que o céltico, pertencente ao grupo indo-europeu, encontra-se em relações diretas, de um lado, com o germânico, e com o itálico, de outro. [...]

[...] o estudo dos topônimos, hidrônimos e orônimos conduz os lingüistas ao reconhecimento de um máximo de densidade indiscutivelmente céltica na Alemanha Ocidental, entre o Reno e o Danúbio. Tomando apenas um exemplo, todos os afluentes da margem direita do Reno, do Neckar ao Lippe, possuem nomes célticos. [...]


Imagem 2: Epona, Senhora dos Animais. Arte céltica.

Ora, esse povo mostrou-se, durante alguns séculos ao menos, antes e depois dos meados do I milênio a.C., um dos mais expansivos que já existiram. Entre as grandes migrações dos indo-europeus para o Oriente, no II milênio a.C., e a dos bárbaros, a partir do século III de nossa era, as migrações dos celtas foram o maior fato humano desta categoria e produziram conseqüências históricas importantes, muitas das quais nos escapam, devido à falta de informações sobre a situação anterior. Transtornaram o povoamento de certas regiões e destruíram, ou, ao menos, enfraqueceram impérios, o poderio etrusco, por exemplo. Levaram a confusão e o terror a sociedades há muito sedentárias e a civilizações já muito evoluídas. Nossa documentação não deixa a menor dúvida sobre a amplitude dos danos praticados, bem como sobre a impressão de desassossego produzida na Itália e, principalmente, no mundo helenístico. O mundo civilizado de então experimentou, durante curto espaço de tempo, o mesmo sentimento trágico de sua fragilidade diante da barbárie desencadeada, que lhe caberia experimentar mais tarde diante do choque das grandes invasões contra o Império Romano. O sentimento de catástrofe suscitado pelo acontecimento foi o mesmo em todos os lugares? É possível, embora o risco ter sido menor nos países de menor densidade demográfica e de equipamento mais rudimentar. De qualquer maneira, o silêncio das fontes não nos permite julgar.

Gostaríamos de conhecer as causas da expansão céltica: excesso de natalidade provocando a necessidade de novos recursos, guerras civis, pressão dos povos nórdicos? [...] Gostaríamos de conhecer também as suas modalidades. Parece ter-se tratado, quase sempre, não de um deslocamento de todo um povo ou mesmo de uma tribo, mas sim da partida de bandos sucessivos em direções diversas: encontram-se Tectosagos na Ásia Menor e em Toulose, Tolistoboianos na Ásia Menor e Boianos na Boêmia – cujo nome provém deste povo – e ao sul do Pó. Conduzidos por chefes nobres, levando consigo mulheres e crianças em carros, esses bandos lançavam-se à aventura, não hesitando em desalojar os que os haviam precedido, não perdendo as ocasiões de pilhagem, mas procurando principalmente terras para se instalarem, prontos, tanto a conquistá-los pela força e pela chacina, como a obtê-las por acordos negociados.

[...]

Imagem 3: Bardo com cítara. Arte céltica.

Em direção ao Oriente, os celtas ocupam a Boêmia e o vale do Danúbio. Passando pela Transilvânia, penetram até a Ucrânia. Ao norte dos Bálcãs, acham-se, desde o início do século IV a.C., em contactos com os ilírios e os trácios, e dentro em pouco com os macedônios: algumas embaixadas célticas chegam a ser recebidas por Alexandre. Em 280 a.C., penetram na Macedônia e, no inverno de 279-278 a.C., os tesouros de Delfos só lhes escapam por milagre. Afastam-se, por fim, dessas regiões que contavam bons meios de defesa. Fundam, na Trácia, um Estado que dura até o fim do século III a.C. A partir de 276, principalmente, estabelecem-se no centro da Ásia Menor e, ao redor de Ancira (hoje Ancara), a Galácia, que lhes deve o nome, só perde a independência na época de Augusto.

Em direção ao Ocidente, espalham-se pela Gália. Sua última vaga, representada pelos belgas, finalmente instaladas até o Sena e o Marne, deve ter vindo pelo norte, no século III a.C., e continuado o seu avanço até meados do século II; mas eles desalojam os celtas chegados anteriormente. Da Gália, os celtas passam, em data desconhecida e sem dúvida em várias vagas, à Grã-Bretanha e Irlanda. É partindo também da Gália que alcançam a Península Ibérica, onde a indicação de sua presença por Heródoto já é válida para o século VI a.C.: acabam por dominar aí todas as regiões do Norte, do Ocidente e do Centro. Enfim, penetram na Itália, vindos talvez ao mesmo tempo da Gália e pelas gargantas dos Alpes Centrais. A partir do princípio do século IV a.C., instalam-se na Lombardia e ao sul do Pó, até os Apeninos e o Adriático: caídas em seu poder, as cidades etruscas de Melpum e Felsina têm como herdeiras Mediolanum (Milão) e Bononia (Bolonha), cujos nomes se encontram em muitas outras regiões do domínio céltico. Por vezes enviam bandos para o sul: pouco depois de 390 a.C., capturam e destroem Roma; surgem mesmo na Campânia e nas costas do estreito de Messina.

Todos estes territórios, submetidos de maneira mais ou menos total e duradoura pelos celtas, encontravam-se demasiadamente dispersos para que se possa imaginar, em dado momento, a existência de um império celta. Desenvolvendo-se por vários séculos, a expansão fez-se sem qualquer plano e sem apresentar coesão. Uma vez sedentarizados, estes povos, mesmo vizinhos, raramente socorreram-se uns aos outros. [...]

[...]

Pouco numerosos, talvez, desde o início, no momento da migração – as fontes gregas e latinas exageram muito os seus efetivos – enfraquecidos pela conquista e pelas guerras subseqüentes, os celtas do exterior jamais conservaram a integridade de sua própria civilização. Parecem ter sido, aliás, sempre muito receptivos às influências estrangeiras, seduzidos, particularmente, pelo luxo das jóias e pelos requintes do vestuário, mas também pelos cultos locais. Como a contaminação étnica auxiliava estas influências, compreende-se por que os antigos falam de celtocitas, celtotrácios, galo-gregos, celtiberos. O celtismo desses valorosos guerreiros que, ao acaso, haviam conquistado boa parte da Europa e tomado pé na Ásia Menor, reduziu-se pouco a pouco a tradições religiosas e lingüísticas de ínfima importância prática.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. Roma e seu império. O Ocidente e a formação da unidade mediterrânica. São Paulo: Difel, 1974. p. 62-66. (História geral das civilizações, 3)

sábado, 16 de julho de 2016

Os celtas: as origens

Guerreiros celtas, Antoine Glédel

Gauleses? O termo, imposto pela tradição, não é claro. César, quando da conquista, restringe-o a uma parte dos habitantes da Gália independente: entre o Sena e o Marne, de um lado, o Garona e o Ródano de outro. Estes, diz ele, “chamam-se celtas em sua língua e gauleses na nossa”. O que, aliás, não impedia os romanos de atribuir à palavra “Gália” uma extensão muito mais considerável [...] E os gregos empregavam o nome de “celtas” e, mais tarde, na época helenística, também o de “gálatas”, para distinguir homens que viviam em regiões bem diversas, desde a Península Ibérica até o coração da Ásia Menor.

[...] A Arqueologia e a lingüística fornecem dados mais sólidos [...]

[...] A idade do bronze corresponde mais ou menos, na Europa Ocidental, ao II milênio a.C. [...] As antigas civilizações dos megálitos (menires, dolmens, aléias cobertas) e das palafitas (cabanas sobre estacas das aldeias lacustres), não só sobrevivem, como também ganham terreno. [...] Ao mesmo tempo surgem outras civilizações, particularmente a dos tumuli, que sepulta os mortos, com objetos familiares, sob montículos de terra e pedra [...] Depois, nos fins da idade do bronze e do II milênio a.C., verifica-se a propagação [...] da civilização Urnenfelder (“compos de urnas”), que pratica a incineração e constrói cemitérios de tumbas planas.

Desaparece, assim, durante a idade do bronze, o isolamento geográfico das civilizações neolíticas. Os contactos, certamente, multiplicam-se e as crenças misturam-se, ao mesmo tempo que as técnicas. [...] Quanto à antropologia, embora consiga distinguir os tipos humanos dominantes, na maioria das vezes isso permite-lhe apenas comprovar a existência de mestiçagens, aliás, muito antigas.

A situação só começa a clarear um pouco no princípio do I milênio a.C., com o aparecimento do ferro. Parecem ter sido as da Alta Áustria as primeiras jazidas exploráveis deste minério. A região, além disso, estava apta a sofrer, por intermédio da Ilíria, certas influências provenientes do Mediterrâneo Oriental. Em todo caso, a mais antiga civilização do ferro recebeu a designação de Hallstatt [...] Constitui-se ela entre 900 e 800 a.C. e estende-se por um território muito vasto. Com facies diferentes, dispersa seus tumuli de inumação ou incineração e seu armamento, cuja peça mais característica é uma espada amolada e afiada. [...]

Na realidade, nada em seus progressos, tais como a arqueologia os revela, nos indica que esses fossem realizados de maneira brutal, por conquistas, chacinas e destruições. [...] devem ter correspondido a deslocamentos humanos, mas sob a forma de infiltrações lentas e sucessivas ao longo dos vales fluviais, deixando subsistir os estabelecimentos anteriores que sofreram apenas absorção progressiva.

O mesmo verificou-se [...] com a civilização que, a partir do fim do século V a.C., sucedeu à de Hallstatt. Atribu-se-lhe o nome de La Tène, estação suíça situada perto da extremidade setentrional do lago Neuchâtel. Ela ocupa pouco a pouco o território da civilização precedente, substituindo imediatamente a espada por um sabre feito para talhar e, mais lentamente, os tumuli por sepulturas subterrâneas. Suas joias e seu mobiliário são mais ricos, com coral, esmaltes, contribuições estrangeiras mais numerosas e vindas de mais longe. Evolui, aliás, no sentido do aperfeiçoamento técnico e do enriquecimento, e o fim de seu terceiro e último período coincide com o seu desaparecimento, na Gália, em face da civilização romana implantada pela conquista.

AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. Roma e seu império. O Ocidente e a formação da unidade mediterrânica. São Paulo: Difel, 1974. p. 59-61. (História geral das civilizações, 3)

quarta-feira, 13 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 9 - A lenta urbanização]

O ouro de Minas Gerais escoava pelas trilhas do sertão, chegava à Colônia do Sacramento, nas margens do rio da Prata, e daí seguia para os portos dos dois lados do litoral do Atlântico Sul. Por vezes, ao longo dessas trilhas nasceram povoados ou vilas, articulando regiões distantes.


Vista da Lagoa do Boqueirão e do Aqueduto de Santa Teresa, ca. 1790,  Leandro Joaquim

Em seu livro clássico Evolução urbana do Brasil (1500-1720), o historiador da urbanização e arquiteto Nestor Goulart Reis Filho assim definiu os traços gerais desse início de urbanização, em que as praças das aldeias, vilas e cidades centralizavam a vida social, econômica e religiosa da colônia:

"As praças acolhiam, desde o início, muitas das principais atividades dos núcleos urbanos; realizavam-se nelas reuniões religiosas, cívicas e recreativas e atividades de comércio, como feiras e mercados. As povoações mais humildes, como as aldeias de índios ou paróquias reunidas em torno de modestas igrejas isoladas, desenvolviam grande parte de suas funções nas praças, as quais, por isso mesmo, eram sempre seus locais de maior importância e muitas vezes a origem das próprias povoações. Em princípio, em frente às igrejas, onde a população se reunia após os ofícios religiosos, abriam-se largos, capazes de acomodá-la, e frequentemente se desenvolvia o comércio, que aproveitava dessas reuniões."

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 241-2.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 8 - O fisco e os monopólios / A cultura da evasão fiscal]

* O fisco e os monopólios. A manutenção da burocracia - civil, militar e eclesiástica - provou ser o mais pesado dos fardos carregados pelos colonos ao longo de séculos. Além de pagar o dízimo, os habitantes da colônia arcavam com o oneroso sistema de contrato-monopólio que incidia sobre certos artigos - sal, aguardente de cana, vinho, azeite, óleo de baleia, tabaco, escravos, entre outros. O fornecimento desses gêneros e a arrecadação dos impostos devidos eram arrematados pela Coroa a particulares.

Esses agentes exploravam a comercialização de tais produtos em troca de uma quantia fixa paga antecipadamente à Coroa. O mesmo acontecia com vários impostos: em vez de cobrá-los diretamente, a Coroa arrendava a cobrança, em troca de uma cifra predeterminada em contrato. os contratadores "financiavam", de certa forma, a Coroa. A população colonial foi, muitas vezes, vítima dos abusos cometidos por contratadores de monopólios. Disso resultava o encarecimento dos produtos e o empobrecimento dos habitantes da colônia.

Além disso, a Coroa ainda lançava mão das alfândegas, estabelecidas nos principais portos do Brasil, onde todos os produtos importados pela colônia pagavam impostos; e, também, todos os produtos embarcados nos portos coloniais. Além das alfândegas, havia as "entradas", os pedágios sobre estradas e pontes.

Esse sistema de cobrança de impostos foi um dos maiores flagelos da população colonial. As alfândegas tornavam os produtos mais caros. O dízimo, cobrado em dinheiro, reduzia a já escassa quantidade de moeda circulante. Além disso, o sistema de monopólio proibia a produção independente daqueles gêneros que apenas a Coroa poderia prover. O sal não podia ser produzido localmente - isso provocou, em 1711, uma rebelião em Salvador, a revolta do Maneta. Era obrigatório comprar o sal dos contratadores da Coroa. A aguardente de cana não podia ser vendida no mercado interno, para não prejudicar o vinho importado pelos contratadores da Coroa. A produção de manufaturas estava expressamente proibida. A Coroa reservava-se o monopólio do fornecimento de manufaturas de ferro e de tecidos.


Um funcionário do governo a passeio com sua família, Jean-Baptiste Debret

* A cultura da evasão fiscal. A contrapartida foi o contrabando, que contava com a solicita venalidade dos funcionários encarregados de supervisionar as atividades comerciais. Raro foi o burocrata que não participou de algum ilícito comercial para compensar os baixos salários pagos pela Coroa.

Fraudava-se o fisco sempre que possível. Ao longo do século, o comércio de contrabando foi assumindo proporções incontroláveis e, no fim do século XVIII. um complexo sistema de evasão fiscal desviava recursos, em volumes significativos, regularmente, dos cofres da monarquia.

Em Ajudá, no litoral africano, o intenso comércio de contrabando realizado pelos negreiros baianos chegou a provocar reações por parte da Coroa, que, para evitar a perda de recursos devidos ao tesouro, ameaçou proibir o comércio legal.

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 240-1.

domingo, 10 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 7 - A justiça do Antigo Regime / Os Regimentos de Linha]

* A justiça do Antigo Regime. Na colônia, a justiça era exercida por toda uma gama de funcionários a serviço do rei. A violência, a coerção e a arbitrariedade foram suas principais características. Entre esses servidores, tinha destaque o capitão-mor das ordenanças, que desempenhava o papel de delegado de polícia e era o braço da lei na colônia, encarregado de punir criminosos e prevenir infrações. Além disso, detinha o poder de julgar e punir os infratores.

A violência da justiça manifestava-se nas prisões arbitrárias, nos castigos exemplares que eram ministrados aos criminosos e na aplicação da pena de morte. Os rigores da lei afetavam especialmente a população mais pobre da colônia e aqueles que não eram proprietários. Os transgressores esperavam suas sentenças durante anos a fio, frequentemente porque não podiam pagar um escrivão. A população de cor - negros forros e mestiços - era castigada com maior severidade.

Nas regiões em que a presença da Coroa era mais distante, os grandes proprietários de terras exerciam considerável autoridade administrativa e judicial. No sertão, os potentados impunham seus interesses à população livrem do alto de seus postos de coronel e capitão-mor da milícia.


Soldado do Segundo Regimento do Rio de Janeiro, 1786,  Joaquim Lopes de Barros

* Os Regimentos de Linha. As unidades militares regulares só foram introduzidas no Brasil no século XVII. O primeiro regimento de infantaria regular chegou à Bahia, em 1625, para lutar contra os holandeses. Os soldados desses regimentos, os "terços regulares", eram profissionais recrutados na metrópole. No século XVIII, para policiar a região das minas, a Coroa criou o Regimento de Dragões, que formavam um corpo profissional e eram recrutados basicamente em Portugal.

Além das tropas regulares, havia também os regimentos locais. O recrutamento desses efetivos era feito entre a população disponível. O alistamento, efetuado para suprir necessidades do momento, era um dos temores da população, pois não havia critérios para escolher quem deveria prestar o serviço militar. Os habitantes da colônia fugiam do serviço militar e do recrutamento como fugiam do pagamento do dízimo.

O anglo-lusitano Henry Koster deixou um valioso relato sobre como se processava a recruta militar em Pernambuco no início do século XIX. As prisões estavam em péssimo estado, as execuções eram poucas, e o degredo era a pena mais comum. Os quartéis encontravam-se negligenciados, os soldados de linha eram mal pagos e "recrutados entre os piores indivíduos na província". O recrutamento consistia em prender "pessoas de mau caráter", de 16 a 60 anos, e mandá-las para o Recife. "É nessa ocasião que a tirania tem o seu esplendor, que o capricho e o arbítrio se aliam e que a mais injusta parcialidade prevalece, e se executa a mais intolerável opressão." Koster ressalta os efeitos perniciosos do recrutamento, momento em que a vingança, a fraude, a "quebra de confiança" eram estimuladas. Os recrutadores, homens pobres e sem soldo, fariam melhor se tivessem "permanecido muito calmamente nos seus trabalhos, em casa, sem cometer violências ou barbaridades que realizavam se as perversas instituições do seu país não os estimulassem e ensinassem a ser turbulentos com os direitos legais das pessoas".

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 238-240.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 6 - A alimentação na colônia / O mar e as "veredas"]

* A alimentação na colônia. No litoral, o peixe e os mariscos entravam na dieta dos moradores. A carne-seca também era um dos principais alimentos da dieta colonial. Mas o alimento básico da grande maioria da população colonial era a mandioca, o "pão da terra". Introduzida na dieta dos europeus pelos índios, ela era consumida em toda a colônia. No Sul, entretanto, o consumo de milho era maior: sua produção nessas regiões visava suprir também a alimentação dos animais de carga destinados às minas.


Engenho de mandioca, Modesto Brocos

Depois da mandioca e do milho. as principais culturas de subsistência da população colonial eram o arroz e o feijão. Já o trigo era cultivado no Sul. Outra fonte de sustento ingerida por grande parte da população colonial eram frutas, mas essas e as hortaliças, em geral, consistiam artigos de luxo na colônia, exceto as bananas (algumas, como a pacoba e uma espécie de "banana-prata", já existentes no Brasil antes do descobrimento) e as laranjas, de cultivo amplamente disseminado no litoral brasileiro na época colonial, iniciado com mudas ou sementes trazidas de outros continentes.

Por problemas alimentares ou, provavelmente, de higiene, brancos, negros e mestiços eram frequentemente vitimados pelas disenterias; aliás, as doenças faziam sofrer a população colonial de forma indiscriminada. O "mal do bicho" - cuja prevenção incluía uma dose de cachaça tomada logo de manhã - atacava em toda a extensão do território. Os vermes e as doenças venéreas acometiam ricos e pobres em igual proporção.

* O mar e as "veredas". O principal meio de comunicação da colônia era o mar. A via marítima articulava os principais centros comerciais do território. No Nordeste, as estradas seguiam as rotas traçadas pelas boiadas e pelos rios. No Centro-Sul, as comunicações com as minas faziam-se a partir de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia. As distâncias eram imensas e as comunicações por terra eram difíceis, lentas e perigosas. Bandidos, quilombolas e indígenas hostis atacavam com frequência os viajantes.

O desenvolvimento de alguma atividade lucrativa de exportação determinava a abertura de estradas. Não havia uma rede de conexões que integrasse a população das várias regiões. No período colonial, o que se poderia chamar de "rede" era muito fragmentado e favorecia a criação de sistemas de comunicação isolados e antônomos.

A lentidão nas comunicações ditava o ritmo do tempo na colônia. Às vezes um comunicado ou uma condenação demorava meses, se não anos, até chegar ao destinatário. Isso trazia prejuízos enormes para os colonos, que muitas vezes dependiam de ordens vindas de Portugal.

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 237-8.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 5 - Lazer e entretenimento]

As vilas e cidades da colônia concentravam os recursos econômicos e humanos, além de sediarem as instituições civis e religiosas, os tribunais, o tesouro, a burocracia civil e militar. Nelas também moravam os comerciantes, advogados, escrivães e artesãos.

A praça desempenhava importante papel na vida cotidiana, pois era local de encontro e servia de mercado. Em seus tabuleiros, mulheres livres e cativas vendiam produtos perecíveis; e escravos de ganho ofereciam seus serviços. Era também o lugar onde se realizavam as cerimônias públicas, as "festas reais", a comemoração de uma coroação ou o nascimento de um herdeiro do trono, e as festas religiosas. Nela se erguiam o pelourinho e a forca, símbolos do poder do Estado.


Uma família brasileira, Henry Chamberlain

As cidades eram divididas em freguesias - jurisdições eclesiais centradas nas igrejas paroquiais, marcos da vida civil e religiosa. A igreja era ponto de encontro, onde se celebrava a missa, procedia-se aos rituais de vida e morte, às festas do santo padroeiro e onde tinham espaço ainda outras atividades. As paróquias também eram encarregadas de serviços sociais, tais como o cuidado dos doentes e dos pobres, além de outros aspectos da vida cotidiana.

O chafariz era outro ponto importante das vilas e cidades. Lá, ao abastecer-se de água, escravos, criados e homens livres pobres encontravam-se para trocar informações de todo tipo. E a população pobre - tanto livre quanto escrava - também se reunia nas tabernas, onde se vendia cachaça. Em 1650, havia mais de duzentas delas em Salvador.

A vida dos colonos era pacata. Não havia grandes diversões, além da chegada de alguma embarcação, trazendo notícias do reino, ou da celebração de festividades religiosas. As missas eram a principal recreação da população urbana. E a Igreja também era responsável pela divulgação de notícias. Naquela época, por causa da inexistência de jornais, as informações eram obtidas por intermédio dos padres ou dos funcionários metropolitanos. Não é de estranhar que os colonizadores dedicassem tanta energia e dinheiro à construção de igrejas. Nas vilas mais prósperas, as igrejas eram ricamente decoradas.

As mulheres dos senhores não participavam da escassa vida social que havia na colônia. Viviam fechadas dentro de casa e só saíam para frequentar a missa. Calcula-se que, nas minas, apenas 5% das mulheres eram chamadas de "donas" ou "senhoras".

"Por mais enfadonha que fosse a vida das senhoras brancas, ainda assim era, sob a maior parte dos aspectos, mais digna de inveja do que a de seus escravos. [...] Um despacho régio de 1º de março de 1700. denunciando a barbaridade com a qual muitos dos senhores e senhoras de escravos os tratavam, declarava que tais atrocidades se tinham iniciado nas plantações do interior, mas ultimamente se estavam espalhando pelas cidades e vilas. A Coroa condenava particularmente a vergonhosa prática de viverem as senhoras dos ganhos imorais de suas escravas, que não só eram encorajadas, mas compelidas a entregar-se à prostituição. Tal prática mostrava-se censurável extensão do hábito mais comum pelo qual as mulheres escravas tinham permissão para trabalhar por sua própria conta como cozinheiras, costureiras ou vendedoras ambulantes, contanto que pagassem aos seus donos uma quantia fixa sobre ganhos diários ou semanais."

Nas camadas inferiores da população, muitas mulheres livres trabalhavam para garantir a sobrevivência e o sustento de suas famílias: eram cabeças da casa. A prostituição era meio de vida comum para as mulheres pobres. O casamento não era comum entre a população livre, pois, entre outras razões, a Igreja cobrava muito para formalizá-lo. As pessoas viviam juntas, mas não casavam. Enfim, a colônia não oferecia outras possibilidades de suprir as necessidades básicas dessa camada da população.

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 236-7.

terça-feira, 5 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 4 - Vilas e cidades]

Nas vilas e nas cidades, a vida era igualmente violenta. Era perigoso andar à noite pelas te ruas das grandes aglomerações urbanas da colônia. "Todas as manhãs cadáveres de vinte e cinco a trinta pessoas recentemente assassinadas eram encontrados pelas ruas, apesar da vigilância dos soldados que as patrulhavam durante a noite", conforme afirma o historiador inglês Charles Boxer, citando o depoimento de um viajante italiano que esteve em Salvador no ano de 1699.


Uma venda em Recife, Johann Moritz Rugendas

Em Pernambuco, a violência chegou a tal ponto que, em várias ocasiões, os governadores proibiram os moradores de entrar armados nas vilas e cidades. Nessa capitania, desde a ocupação holandesa, no século XVII, a vida era de uma insegurança crônica. Os homens livres andavam pesadamente armados a toda hora. Afirmava-se que mais pessoas tinham sido mortas no início do século XVIII do que durante toda a guerra contra os holandeses. Além disso, entre a população livre, era voz corrente que "matar não é assassinar". Cometiam-se crimes brutais por motivos fúteis, tais como vingança pessoal, adultério feminino e outras ofensas menores.

Nas regiões onde a principal atividade era a mineração, a violência era ainda maior. Os roubos e assassinatos eram mais frequentes, e a ação de quilombolas atormentava os habitantes das vilas e os tropeiros. A exploração das minas e a expansão da vida urbana facilitavam as fugas e a compra da própria liberdade, motivo pelo qual havia nessas áreas uma proporção maior de negros livres.

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 235.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 3 - Equilíbrio instável / Agricultura predatória]

* Equilíbrio instável. Os habitantes da colônia viviam num equilíbrio precário, e seu cotidiano estava sujeito às oscilações do preço dos produtos exportados do Brasil para o mercado europeu, além de todo tipo de infortúnio ditado pelos caprichos da natureza, tais como enchentes, secas e epidemias, que periodicamente dizimavam boa parte da população.

A penúria ou a prosperidade dependiam dos ciclos de preços dos gêneros tropicais. Nos momentos em que o mercado internacional mostrava-se favorável, as propriedades eram utilizadas exclusivamente para a produção de açúcar, tabaco ou algodão. Para aproveitar a alta dos preços, os senhores compravam mais escravos e ampliavam a força de trabalho empregada. A contrapartida era a queda drástica da produção de gêneros de subsistência, que ficava em segundo plano. Estes se tornavam escassos e caros.

Com frequência, a população urbana da colônia era atingida pela fome. O abastecimento foi um problema constante para os moradores das cidades, pois os principais centros agrícolas dedicavam-se à produção de gêneros tropicais para exportação. Nas cidades, os alimentos eram poucos, caros e de qualidade duvidosa. A falta de gêneros de subsistência provocou várias revoltas durante o período colonial. Nas minas, a fome contrastava ainda mais com a riqueza, a ostentação e o luxo das procissões religiosas. Os mais atingidos pelo desabastecimento e a carestia crônica eram os que faziam parte da população livre mestiça.


Derrubada de uma floresta, Johann Moritz Rugendas

* Agricultura predatória. Os engenhos de cana-de-açúcar lidavam ainda com outro inconveniente: dependiam de lenha abundante para purgar e refinar o açúcar. A lenha, principal combustível utilizado na agroindústria do açúcar, provinha das matas que cercavam os engenhos. Quando as matas mais próximas esgotavam-se, muitos engenhos simplesmente fechavam por falta de combustível. A agricultura colonial era, essencialmente, uma agricultura predatória, pois não repunha os elementos que mantinham a produtividade do solo. Três séculos de colonização resultaram em terras desgastadas e abandonadas, além de matas devastadas, apesar de todos os esforços da Coroa, no sentido de regulamentar um uso mais adequado da vegetação nativa, para evitar o desmatamento indiscriminado.

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 234-5.

sábado, 2 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 2 - O cotidiano na colônia: tensão permanente]

No final do século, o núcleo colonial luso-brasileiro contava com aproximadamente 4 milhões de habitantes espalhados numa rede extensa de vilas e cidades - pois, afinal, os portugueses e espanhóis eram seres essencialmente urbanos - dispersas no imenso território que corresponde ao Brasil atual. Os mais importantes desses polos urbanos eram, geralmente, os portos dos principais centros de exportação de produtos agropecuários, minerais e pedras preciosas.

Até os últimos anos do século XVIII, a maioria dos habitantes da colônia vivia no Nordeste, em torno dos núcleos açucareiros da Bahia e de Pernambuco. A descoberta de ouro em Minas Gerais alterou o equilíbrio demográfico da colônia, ao atrair um grande contingente de colonos para o interior das capitanias "de baixo". A mineração foi a grande responsável pela fixação de núcleos populacionais estáveis nas capitanias de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.

A partir da segunda metade do século XVIII, o Rio de Janeiro polarizou a vasta hinterlândia das Gerais e dos campos de São Pedro. No Norte, o algodão deu impulso significativo ao Maranhão, principal produtor dessa matéria-prima. Nessa região, negros e mestiços formavam a maioria da população, subnutrida e analfabeta.


Mulheres escravas, Carlos Julião

A violência registrada no cotidiano da vida colonial deve-se, em grande parte, à presença da escravidão em todas as atividades. Era comum os escravos serem brutalizados por seus donos e tratados como animais, podendo ser vendidos a qualquer momento ou punidos por mero capricho do senhor ou do capataz. A vida de um escravo era, quase sempre, sórdida, desumana e curta. As fugas, levantes e castigos eram frequentes. A tensão entre senhores e escravos era permanente, sobretudo no mundo rural, que concentrava o grosso da escravaria africana ou ameríndia. Nessa situação, senhores e escravos, homens e mulheres, brancos, negros e mulatos enfrentavam o dia a dia da casa-grande e das senzalas.

Feitas de pedra e tijolo, cobertas de telhas, as casas-grandes procuravam reproduzir os valores da nobreza europeia - daí a pretensão dos senhores de autointitular-se "nobreza da terra". Os numerosos cômodos da casa-grande eram habitados pela família e os agregados do senhor. Os escravos moravam nas senzalas, habitações precárias e insalubres. As condições de vida nas senzalas eram penosas, a falta de higiene e a promiscuidade faziam parte do "inferno" dos escravos no insuficiente repouso que lhes era permitido. Nos raros momentos de lazer, cantava-se e batucava-se. Rezava-se nos calundus. O trabalho era árduo durante quase todo o ano. Não havia fim de semana, nem feriados religiosos.

Nos meses de entressafra, verificava-se

"uma época de ócio e, para alguns, de volutuosidade, desde que a monocultura, em parte nenhuma da América, facilitou pequenas culturas úteis, pequenas culturas e indústrias ancilares ao lado da imperial, de cana-de-açúcar. Só as que se podem chamar de entorpecentes, de gozo, quase de evasão, favoráveis àquele ócio, àquela volutuosidade: o tabaco, para os senhores; a maconha - plantada nem sempre clandestinamente perto dos canaviais - para os trabalhadores, para os negros, para a gente de cor; a cachaça, a aguardente, a branquinha."

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 232-4.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

"O viver em colônias" [Parte 1 - Introdução]

"Não é das menores desgraças o viver em colônias."
Luís dos Santos Vilhena, 1801

"O viver no sertão [...]. Não há um homem capaz, e de probidade, que se queira sujeitar a viver nos sertões no meio de gente tão bruta [...]. A desordem nesta terra está já tão arraigada que até parece ser necessário deixá-la continuar no mesmo estado, assim como a um enfermo já muito arruinado. [...]."
José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, 1799

Feitor punindo escravo, Jean-Baptiste Debret 

Quando os europeus se estabeleceram no continente americano, trouxeram não só suas instituições mas também a religião católica, e impuseram seu rei e suas leis. Apesar disso - e a despeito dos mais de três séculos em que se formou a sociedade colonial -, os habitantes do Estado-nação que veio a ser chamado Brasil continuaram a diferir em tudo dos europeus. Em contrapartida, estes incorporaram elementos nativos e adaptaram suas leis e costumes a uma nova realidade, criada em situação colonial, que alterou profundamente a vida dos habitantes livres e escravos do Brasil. E que resultou no surgimento de uma cultura própria.

No fim do século XVIII, o que era o Brasil? No início desse século, segundo o provérbio registrado pelo jesuíta Antonil, "O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos, e das mulatas". No apagar de suas luzes, o diagnóstico do jesuíta ainda se aplicava à realidade brasileira. Pois foi diante de um pano de fundo como este que os habitantes da colônia desenvolveram e aprofundaram formas de relacionamento e comunicação específicos, fossem eles brancos, negros, indígenas ou mestiços. Todas permeadas pelo escravismo, pela brutalidade física e moral, sob o olhar vigilante do senhor de engenho, tal como o descreveu Gilberto Freyre em seu clássico Nordeste:

"Impossível imaginá-lo - a esse centauro - fora da rede patriarcal, sem ser o homem a cavalo, chapéu grande, botas pretas, esporas de prata, rebenque na mão, a quem a gente dos mucambos tomava a bênção como a um rei. Do alto do cavalo é que este verdadeiro rei-nosso-senhor via os canaviais que não enxergava do alto da casa-grande: do alto do cavalo é que ele falava gritando, como do alto da casa-grande, aos escravos, aos trabalhadores, aos moleques do eito. O cavalo dava ao aristocrata do açúcar, quando em movimento ou em ação, quase a mesma altura que lhe dava o alto da casa-grande nas horas de descanso."

Além disso, os colonos também criaram novas formas de resistência à opressão proveniente da metrópole e do governo do Vice-Reinado.

A conquista do interior ampliara e diversificara a sociedade por todo o território, cujas fronteiras delineavam-se agora com menor imprecisão. E novas formas de mandonismo e de violência firmavam-se onde a lei, per se autoritária, não alcançava.

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 231-2.