"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Os celtas: a expansão

Imagem 1: Estela funerária céltica.

[...] Heródoto, que escreveu em meados do século V a.C. [...] menciona a presença dos celtas na Península Ibérica, bem perto dos “últimos habitantes da Europa no Ocidente”. Sem dúvida, ele escreveu que o Danúbio nasce entre os celtas e mais precisamente no Roussillon atual. Mas este erro não condena sua dupla afirmação: o Danúbio nasce de fato em região celta e os celtas, antes mesmo do fim da civilização de Hallstatt, já se encontram na Espanha e em Portugal. Certos eruditos falam de celtas, ou pelo menos de protoceltas, na idade do bronze, atribuindo-lhes, desde este momento, migrações em direção a oeste. [...] Desde esta época, encontra-se nas sepulturas o colar aberto que, para os Antigos, foi o símbolo distintivo do celta: o torques, feito de uma haste torcida de ouro ou bronze e terminado por bolas. Quanto à civilização de La Tène, nenhuma dúvida se permite agora: ela é, por excelência, uma civilização celta [...].

Este nome de celta não pode corresponder a qualquer realidade étnica. Os escritores e os artistas da Antiguidade mostram-nos o tipo clássico do celta ou do gaulês: alto, vigoroso, olhos azuis, abundantes cabelos louros ou ruivos. Há nisso muito convencionalismo ou, ao menos, uma generalização abusiva do tipo predominante. Há muito, desde o princípio do I milênio a.C., já não existia, em parte alguma, uma raça pura, no sentido físico da palavra, e em todas as regiões, muito diversas e distantes umas das outras, onde se estabeleceram, os celtas misturaram-se, em maior ou menor escala, com as populações anteriores, por sua vez já muito mestiçadas. [...]

[...]

A lingüística determina que o céltico, pertencente ao grupo indo-europeu, encontra-se em relações diretas, de um lado, com o germânico, e com o itálico, de outro. [...]

[...] o estudo dos topônimos, hidrônimos e orônimos conduz os lingüistas ao reconhecimento de um máximo de densidade indiscutivelmente céltica na Alemanha Ocidental, entre o Reno e o Danúbio. Tomando apenas um exemplo, todos os afluentes da margem direita do Reno, do Neckar ao Lippe, possuem nomes célticos. [...]


Imagem 2: Epona, Senhora dos Animais. Arte céltica.

Ora, esse povo mostrou-se, durante alguns séculos ao menos, antes e depois dos meados do I milênio a.C., um dos mais expansivos que já existiram. Entre as grandes migrações dos indo-europeus para o Oriente, no II milênio a.C., e a dos bárbaros, a partir do século III de nossa era, as migrações dos celtas foram o maior fato humano desta categoria e produziram conseqüências históricas importantes, muitas das quais nos escapam, devido à falta de informações sobre a situação anterior. Transtornaram o povoamento de certas regiões e destruíram, ou, ao menos, enfraqueceram impérios, o poderio etrusco, por exemplo. Levaram a confusão e o terror a sociedades há muito sedentárias e a civilizações já muito evoluídas. Nossa documentação não deixa a menor dúvida sobre a amplitude dos danos praticados, bem como sobre a impressão de desassossego produzida na Itália e, principalmente, no mundo helenístico. O mundo civilizado de então experimentou, durante curto espaço de tempo, o mesmo sentimento trágico de sua fragilidade diante da barbárie desencadeada, que lhe caberia experimentar mais tarde diante do choque das grandes invasões contra o Império Romano. O sentimento de catástrofe suscitado pelo acontecimento foi o mesmo em todos os lugares? É possível, embora o risco ter sido menor nos países de menor densidade demográfica e de equipamento mais rudimentar. De qualquer maneira, o silêncio das fontes não nos permite julgar.

Gostaríamos de conhecer as causas da expansão céltica: excesso de natalidade provocando a necessidade de novos recursos, guerras civis, pressão dos povos nórdicos? [...] Gostaríamos de conhecer também as suas modalidades. Parece ter-se tratado, quase sempre, não de um deslocamento de todo um povo ou mesmo de uma tribo, mas sim da partida de bandos sucessivos em direções diversas: encontram-se Tectosagos na Ásia Menor e em Toulose, Tolistoboianos na Ásia Menor e Boianos na Boêmia – cujo nome provém deste povo – e ao sul do Pó. Conduzidos por chefes nobres, levando consigo mulheres e crianças em carros, esses bandos lançavam-se à aventura, não hesitando em desalojar os que os haviam precedido, não perdendo as ocasiões de pilhagem, mas procurando principalmente terras para se instalarem, prontos, tanto a conquistá-los pela força e pela chacina, como a obtê-las por acordos negociados.

[...]

Imagem 3: Bardo com cítara. Arte céltica.

Em direção ao Oriente, os celtas ocupam a Boêmia e o vale do Danúbio. Passando pela Transilvânia, penetram até a Ucrânia. Ao norte dos Bálcãs, acham-se, desde o início do século IV a.C., em contactos com os ilírios e os trácios, e dentro em pouco com os macedônios: algumas embaixadas célticas chegam a ser recebidas por Alexandre. Em 280 a.C., penetram na Macedônia e, no inverno de 279-278 a.C., os tesouros de Delfos só lhes escapam por milagre. Afastam-se, por fim, dessas regiões que contavam bons meios de defesa. Fundam, na Trácia, um Estado que dura até o fim do século III a.C. A partir de 276, principalmente, estabelecem-se no centro da Ásia Menor e, ao redor de Ancira (hoje Ancara), a Galácia, que lhes deve o nome, só perde a independência na época de Augusto.

Em direção ao Ocidente, espalham-se pela Gália. Sua última vaga, representada pelos belgas, finalmente instaladas até o Sena e o Marne, deve ter vindo pelo norte, no século III a.C., e continuado o seu avanço até meados do século II; mas eles desalojam os celtas chegados anteriormente. Da Gália, os celtas passam, em data desconhecida e sem dúvida em várias vagas, à Grã-Bretanha e Irlanda. É partindo também da Gália que alcançam a Península Ibérica, onde a indicação de sua presença por Heródoto já é válida para o século VI a.C.: acabam por dominar aí todas as regiões do Norte, do Ocidente e do Centro. Enfim, penetram na Itália, vindos talvez ao mesmo tempo da Gália e pelas gargantas dos Alpes Centrais. A partir do princípio do século IV a.C., instalam-se na Lombardia e ao sul do Pó, até os Apeninos e o Adriático: caídas em seu poder, as cidades etruscas de Melpum e Felsina têm como herdeiras Mediolanum (Milão) e Bononia (Bolonha), cujos nomes se encontram em muitas outras regiões do domínio céltico. Por vezes enviam bandos para o sul: pouco depois de 390 a.C., capturam e destroem Roma; surgem mesmo na Campânia e nas costas do estreito de Messina.

Todos estes territórios, submetidos de maneira mais ou menos total e duradoura pelos celtas, encontravam-se demasiadamente dispersos para que se possa imaginar, em dado momento, a existência de um império celta. Desenvolvendo-se por vários séculos, a expansão fez-se sem qualquer plano e sem apresentar coesão. Uma vez sedentarizados, estes povos, mesmo vizinhos, raramente socorreram-se uns aos outros. [...]

[...]

Pouco numerosos, talvez, desde o início, no momento da migração – as fontes gregas e latinas exageram muito os seus efetivos – enfraquecidos pela conquista e pelas guerras subseqüentes, os celtas do exterior jamais conservaram a integridade de sua própria civilização. Parecem ter sido, aliás, sempre muito receptivos às influências estrangeiras, seduzidos, particularmente, pelo luxo das jóias e pelos requintes do vestuário, mas também pelos cultos locais. Como a contaminação étnica auxiliava estas influências, compreende-se por que os antigos falam de celtocitas, celtotrácios, galo-gregos, celtiberos. O celtismo desses valorosos guerreiros que, ao acaso, haviam conquistado boa parte da Europa e tomado pé na Ásia Menor, reduziu-se pouco a pouco a tradições religiosas e lingüísticas de ínfima importância prática.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. Roma e seu império. O Ocidente e a formação da unidade mediterrânica. São Paulo: Difel, 1974. p. 62-66. (História geral das civilizações, 3)

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