Foi em busca de uma vida de afetividade e
sociabilidade que Duarte Paranhos Schutel, desterrense, estudante de medicina
na cidade do Rio de Janeiro, em viagem pelas terras catarinenses, narrou o
vivenciado no romance A
Massambu (1861). Crônica
sobre os costumes do povo catarinense, o romance acompanha as transformações
urbanas que ocorriam nas cidades brasileiras no segundo império.
O dia mal tinha amanhecido, Duarte
paranhos Schutel, juntamente com alguns amigos, verificava as bagagens e os
apetrechos que os auxiliariam na viagem. O dia nublado, chuvoso e frio indicava
que o caminho seria cansativo, o que tornava o percurso ainda mais difícil e
perigoso. A festa do Divino Espírito Santo, em Santo Amaro da
Imperatriz, cidade distante, a 80 quilômetros de Nossa Senhora do Desterro -
atual cidade de Florianópolis - prometia fé e namoricos.
Os jovens amigos aventureiros iam com
alguns dias de antecedência, com o propósito de participar da folia que
antecedia a festa. De tradição açoriana, a folia do divino era uma pequena
companhia de músicos e cantores que percorria, dias antes dos festejos, as ruas
da cidade batendo de porta em porta a cantar, a comer, a dançar e a beber,
recolhendo dinheiro para a igreja e donativos a serem leiloados no dia da festa
do Divino Espírito Santo.
A travessia da serra do ubatão fora penosa
com muita chuva e trovões que clareavam a mata e o longo paredão de rochas
pontiagudas. O barulho da cachoeira com suas águas virgens a escorrer pelo
penhasco obtuso num bailar nômade deixava à mostra suas reentrâncias repletas
de languidez. Com habilidade e destreza, ao conduzirem suas montarias, os
jovens aventureiros foram conquistando a serra. Agora, a descida, com a trilha
iluminada pelos raios do sol, que atravessavam as copas da vegetação espessa,
surgia como redentora de todos os temores.
Na descida, já alcançando a pequena
planície, repleta de pés de limões, laranjas e mamões cercados por uma roça de
mandioca, os moços festeiros foram despertados pelo barulho de um carro de boi
que transportava uma família que se dirigia a Santo Amaro da Imperatriz para
participar dos festejos. Vinham famílias inteiras, uns a cavalo, outros em
carro de boi, e existiam aqueles que se dirigiam ao lugar das festas caminhando
pelas trilhas íngremes da região. Não demorou muito para que as pessoas
estabelecessem uma conversa cordial, aos poucos dando referências de onde iam
ficar na localidade. Nessas ocasiões, recorria-se ao abrigo de parentes
próximos e distantes, às casas dos amigos e aos compadres, ou se amontoavam no
interior da igreja em busca de proteção para as crianças e as mulheres.
Enquanto isso, as moças, todas faceiras, trocavam olhares, sorrisos e gestos
sorrateiros com os rapazes vistosos em busca de um enlace matrimonial. Era
tempo também de novas alianças políticas e econômicas, de jogos de cartas com
os amigos e de visitas a familiares.
E entre conversas despretensiosas, amenas
e singelas, Schutel narra uma cena em que o erotismo invade seus pensamentos ao
perceber que, distraidamente, uma das jovens sentada na beira da carroça de boi
[...] ia deixando um pezinho que, às
vezes com o balanço, parecia fugir e adiante então um tornozelo bem malicioso.
Nesse descuido da inocência a menina ria
conversando com os cavalheiros que pareciam não reparar nos desafios daquele
pezinho [...].
Atento à cena que seu olhar observa,
formula juízo de valor sobre a falta de atenção dos cavalheiros que cavalgavam
logo atrás da carroça e que estabeleciam diálogo despretensioso e ingênuo com a
moça. Na sua leitura, os cavalheiros não eram dignos de cobiçar os inocentes
pezinhos, pois o primeiro "pequenino e magro trazia nas costas uma enorme
bossa, que não era ao certo a da inteligência", enquanto o segundo,
"gordo como um vigário", se espalhava sobre a montaria, fornido de
barriga "para aguentar o peso desse monstro de cavalheiro".
Diante desse cenário bucólico que seu
olhar identificava como território da languidez, percebeu ser a feiura a única
coisa, em comum, a unir os dois cavalheiros que cavalgavam em conversação com a
delicada e angelical menina-moça a balançar seus doces pezinhos de um lado para
outro, criando essa despretensiosa inocência, "dando preferência ora à
abundância ora à parcimônia".
Estes dois contrastes tinham, contudo
uma cousa de comum, era a fealdade do rosto, nenhum se poderia gabar de mais
favorecido do que outro, e por isso reinava a mais perfeita harmonia em sua
amizade, onde não tinha entrado o ciúme.
O ciúme na província de Santa Catarina
quase sempre foi o motivo dos desafetos das festas. Na vila de Tijuca Grande,
distante 70
quilômetros ao norte de Florianópolis, o jornal O Campeão narra notícia dos filhos do senhor
João Guerreiro, que primaram numa noite de sábado pela libertinagem e
dissolução dos costumes. O motivo para o tumulto que se generalizou nas
dependências da residência do senhor Ethur, ilustre comerciante da vila, foi a
forma como o jovem Aristo dirigiu-se à namorada de um dos envolvidos.
[...] crê-se que levado por ciúmes, por
galanteios do recém-chegado à sua namorada, levou de mão, e sem tir-te nem guar-te,
descarregou -lhe uma brutal bofetada. Aristo assim ofendido ao baixar-se para
juntar a si o agressor e vingar ao insulto, foi filado na goela por José
Guerreiro. A este tempo, meteram-se de permeio outros moços ali presentes,
tirando da mão ao primeiro a faca com que se preparava para de novo cair sobre
sua vítima.
Engraçada e irônica foi a discussão
estabelecida entre Manuel José Ferreira e sua esposa Ana Joaquina na Vila de
São José da Terra Firme. Pelas páginas do jornal Correio Catharinense, Manuel e
Ana Joaquina travaram discussão sobre traição cometida por ela. Enquanto o
marido ultrajado acusava a esposa de adultério e de tê-lo abandonado com três
crianças pequenas, sua esposa o denunciava por não querer dar-lhe seu quinhão
de terras que possuíam no distrito de Picadas do Sul. O entrevero durou dias na
imprensa desterrense e, por onde se andava, não se falava de outra coisa.
Logo que a desavença familiar começou a
ser esquecida, a população da Ilha de Santa Catarina se viu envolvida em outro
caso amoroso. Para delícia dos moradores da pacata e aprazível vila do
Desterro, numa manhã de quarta-feira, um suposto amante preterido diante do seu
assédio, vendo-se não mais correspondido em suas intenções amorosas, faz
publicar na imprensa:
Recebi seu amável recado! Fiquei sabendo
que minhas cartas não terão mais a honra de serem recebidas pela senhora, mas,
peço, ao menos responda à que tive a honra de dirigir-lhe em 7 do corrente mês,
pedindo uma solução favorável aos nossos negócios.
O viajante Auguste de Saint-Hilaire, que
visitou a ilha de Santa Catarina, em 1820, e que aqui viveu algum tempo,
registrou que, no Desterro, os homens se privavam de muitas coisas em favor das
suas mulheres e amantes. Acrescentou ainda que não observou em outras regiões
do Brasil patriarcal uma desproporção tão acentuada do vestuário feminino e
masculino. Nos dias de festividades, elas se vestiam com elegância e bom gosto,
"e a maneira como se acham trajados os seus maridos faz com que eles
pareçam seus criados".
Se os maridinhos arrumadinhos da Ilha de
Santa Catarina se sacrificavam em nome de suas esposas e amantes, como
constatou Saint-Hilaire, não saberíamos asseverar. Contudo, com o sugestivo
título "Amor Perdido", o jornal Periódico
da Semana narra as artimanhas
que uma suposta amante encontrou por ter sido pega pelo amante nos braços de
outro.
Tendo um amante encontrado a sua bela
nos braços de seu rival, ela lhe negou atrevidamente o fato - Como! Disse ele
furioso, atrevei-vos a negar a desmentir aquilo que eu vi com os meus próprios
olhos?! Ah! pérfido! lhe disse ela, bem vejo que tu não me amas, visto que crês
mas no que tu vês do que no que digo.
Diante da enfermidade do senhor Genuíno,
alguém lhe sugere procurar o doutor Bovino, que possui um "meio fácil"
para curá-lo.
O senhor Genuíno está atacado de uma
moléstia conhecida pelo nome de corno Mania. Um sujeito a quem isto foi dito
lembrou um meio fácil para obter-se cura infalível. E era ser consultado sem
perda de tempo o doutor Bovino que cura pelo sistema de Rêlhopathia.
[...]
Ao difundir a economia dos gestos e das atitudes, a burguesia, em ascensão na província de Santa Catarina, tratava de patrocinar as clivagens das condutas. A representação do homem cortês, provedor e próspero tornara-se, no século XIX, a imagem a ser conquistada e construída.
Os rituais das ambiguidades e dos contraditórios buscavam a afirmação de si numa sociedade repleta de salões e palcos. A encenação das atitudes e gestos inventava uma corrente de signos e de simbologias. E seu itinerário evaporava-se nos impulsos de um mundo sem limites. Decifrar os códigos e dominar as etiquetas era a única oportunidade para o homem mensurar e distinguir as práticas de afetividade e de sociabilidade. [...]
[...]
Schutel, depois de devidamente instalado nas cercanias da vila, na residência de um parente distante, logo que chegou à festa do Divino Espírito Santo e diante da movimentação no adro da igreja, bem como no seu interior, perscrutou o burburinho de olhares, gestos e palavras sussurradas em segredos. Sinais identificados como espaço da libidinosidade e que, de acordo com seu juízo ético, "era justamente o prazer que os homens buscavam espalhar com essa festa".
Entre sua inocência e inocentes observações, descreve os homens presentes na festa - roceiros, matutos, mal-educados, magros, apatetados, mal trajados, viciados em jogos, feios, obesos - e, em várias oportunidades, não deixa de criticar, com certa ironia, o vestuário dos homens dessa paragem. [...]
[...]
Auguste de Saint-Hilaire, em sua expedição à província de Santa Catarina, ao visitar a ilha em 1820, viu alguma elegância no vestuário dos homens de maiores posses. Seus trajes eram constituídos de calça de algodão, chapéu de feltro preto e sapatos muito limpos.
Robert Avé-Lallemante, que andou por terras catarinenses em 1858, assevera ao seu indulgente leitor que falta à cidade de Nossa Senhora do Desterro "o verniz de certa elegância", porém encontrou na festa da romaria do menino Jesus "cavalheiros e senhoras muito elegantes a cavalo [...] e que tinham boa aparência".
[...]
John Mawe, que chegou a Nossa Senhora do Desterro no dia 29 de setembro, em plena primavera de 1807, participou de algumas reuniões sociais. Conta que "os habitantes, em geral, são muito urbanos e corteses para com os estrangeiros".
[...]
Ao desencadearem uma série de imagens da população masculina da capital da província de Santa Catarina, os viajantes estrangeiros quase sempre construíram as representações masculinas a partir de seu olhar europeu, que via, no novo mundo, o lugar da barbárie.
[...]
Antonio Emilio Morga. Masculinidade em Nossa Senhora do
Desterro e Manaós: territórios e ardis. In: PRIORE, Mary del; AMANTINO, Márcia
(Orgs.). História dos homens
no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2013. p. 213-218, 222-223, 230-232.
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