"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Os pintores de Nassau

Paisagem brasileira com uma casa de trabalhadores, Frans Post

Não foi exatamente como se Rembrandt ou Rubens tivessem desembarcado nos trópicos. Mas foi quase. A chegada dos pintores Frans Post e Albert Eckhout a Pernambuco, em 1637, assinala, de certo modo, uma das datas mais fulgurantes da história da arte no Brasil. Trazidos para o Recife por Maurício de Nassau – pessoalmente responsável pelo pagamento de seus salários -, Eckhout e Post legaram à posteridade um extraordinário tesouro cultural: a mescla entre arte e ciência que eles concretizaram plenamente, das plantas, dos animais e dos indígenas do Brasil. Quase quatro séculos depois, seus trabalhos preservam o mesmo frescor e a mesma qualidade.

Índia Tapuia, Albert Eckhout

Post e Eckhout eram os mais brilhantes, mas não os únicos pintores integrantes da comitiva que Nassau fez desembarcar no Recife. Outros seis artistas os acompanhavam. Todos tinham casa e comida, salário fixo e muito trabalho pela frente: seriam os primeiros europeus a registrar, in loco, a exuberante natureza do Novo Mundo em possessões que, até então, haviam estado sob domínio português.

Mocambos, Frans Post

Albert Eckhout (nascido em Groningen, na Holanda, em 1612) viveu no Brasil durante sete anos, de 1637 a 1644 – dos 25 aos 33 anos de idade, portanto. Sentava-se à mesa do jovem conde (que havia desembarcado no Recife com 33 anos incompletos), geralmente em companhia de Frans Post, que também chegara aos trópicos no fulgor de seus 25 anos. Eckhout foi um pintor naturalista com excepcional domínio do desenho de modelos vivos, dono de um estilo altamente individual e detalhista, disposto a documentar tipos humanos, plantas e animais que os europeus jamais haviam retratado.

Mulher Banto, Albert Eckhout

Eckhout era fascinado pelo exótico. Seus retratos em tamanho natural de indígenas, mestiços e negros lhes concedem, além de rigor antropológico e etnográfico, uma grande dose de altivez e dignidade: Eckhout pintou indivíduos, não meros exotismos tropicais. Sua obra foi magnificamente complementada pela de seu colega Frans Jansz Post, cultor das paisagens brasileiras que se deixou fascinar pela luminosidade e pelo viço do Novo Mundo – elementos que tão bem soube capturar em suas telas. Ao retornar para a Europa, Nassau doou os quadros de Post ao rei Luís XIV, da França, e os de Eckhout para Frederico III, da Dinamarca.

Fazenda, Frans Post

Outro artista cuja obra celebra o chamado “período nassoviano” é Zacharias Wagener. Mero soldado raso a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, seu nome não constava da lista original de artistas trazidos para o Brasil. Mas, desde sua chegada ao Recife, em 1634, esse alemão de Dresden demonstrou muita habilidade e um interesse permanente pela natureza tropical. Promovido a “dispenseiro-escrevente” e a escrivão particular de Nassau, Wagener, simples “pintor de domingo”, acabou produzindo centenas de aquarelas e litogravuras dos animais brasileiros. Ao retornar para a Europa, em 1643, levava consigo os originais do Thierbuch, ou Livro dos Animais, uma espécie de versão popular da Historia Naturalis Brasiliae, de Marcgraf. Mais do que isso: a obra de Wagener teve grande influência sobre Albert Eckhout. E, junto com Frans Post, Eckhout foi, definitivamente, um gênio da arte vivendo no Brasil.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 94-95.

Galeria de imagens 1: Obras de Frans Post

Vista de Olinda

Muro com cavalos e escravos

Casas de trabalhadores

Uma paisagem brasileira

Vista das ruínas de Olinda

Engenho de açúcar

Vila de Ipojuca

Vista da Ilha de Itamaracá

Paisagem brasileira

Igreja de São Cosme e São Damião em Igarassu

Engenho de Pernambuco

Paisagem do rio Senhor de Engenho

Paisagem ribeirinha com aldeia

Galeria de imagens 2: Obras de Albert Eckhout

Abacaxi, mamão e outras frutas

Índia Tupi

Cocos

Mandioca

Mameluca

Castanhas-do-Pará

Dança dos Tapuias

Cabaças

Cabaças finas

Mulato

Melão, repolho e outros vegetais

Homem Tapuia

Cabaça, frutas cítricas e cacto

Homem africano

Bananas, goiaba e outras frutas

Índio Tapuia

Abacaxi, melância e outras frutas

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A criação de gado no Brasil colonial

Rancho dos tropeiros, Charles Landseer

“Eu venho desde menino
desde muito pequenino
cumprindo o belo destino
que me deu Nosso Senhor:
eu nasci para ser vaqueiro
sou mais feliz brasileiro
eu não invejo dinheiro
nem diploma de doutor...”

“O dono quer ver
a terra plantada
diz de mim que vou
pela grande estrada:
deixem-no morrer
não lhe dêem água
que ele é preguiçoso
e não planta nada!”

Aí estão alguns versos da música Sina, dos cearenses Raimundo Fagner e Ricardo Bezerra, e de Plantador, do paraibano Geraldo Vandré. Percebemos que a situação do vaqueiro é retratada de uma forma totalmente diferente da do lavrador. Haveria uma explicação histórica para a felicidade do vaqueiro, tão contrastante com a vida do plantador?

Sabemos que a ocupação econômica do Brasil foi feita, principalmente, à base da agro-manufatura do açúcar. A força de trabalho que ampliava os canaviais e movimentava os engenhos era a do negro escravo. Trabalho pesado, obrigatório, sofrido e muito lucrativo para os donos das terras. Trabalho tão explorado que fez muito plantador sair pela “grande estrada”, em busca de coisa melhor.

Nas fazendas de açúcar havia criação de gado, necessário para a alimentação da população local e como força motriz. Com o tempo, esse “gado de quintal” foi considerado antieconômico: ele exigia pastos, tomando terras que poderiam ser muito mais rendosas se cobertas de canaviais. Os rebanhos cresciam, os lucros com a exportação do açúcar também.

[...]

Resistindo ao clima semi-árido, procurando os barreiros de sal, o gado desbravava o agreste e o sertão do Nordeste. Abria caminhos, que se tornaram importantes meios de comunicação na época, como os “Sertões de Fora”, que ligavam a região próxima a Salvador com as imediações de Fortaleza, sem se afastar demais do litoral.

A criação de gado nessa área está muito ligada ao extrativismo salineiro, desenvolvido principalmente no litoral do atual Rio Grande do Norte. O gado fez a prosperidade de Aracati, no litoral do Ceará, com a exportação, no século XVIII, da “carne-do-ceará”. Por sinal, foi um tropeiro cearense, José Pinto, que difundiu no extremo sul as técnicas de charquear a carne, no sal ou no sol.

As fazendas do interior da Bahia articulavam-se com a região maranhense próxima a São Luís, através dos “Sertões de Dentro”, cujos caminhos acompanhavam o curso do “rio dos Currais” – o São Francisco -, e, também, o Canindé, o Parnaíba e o Itapicuru.

Junto com o gado, o dono do gado. Surgiram as feiras. Elas e as muitas fazendas, também chamadas no Nordeste de “currais”, acabaram por dar origem a vários núcleos de povoamento, como Feira de Santana, na Bahia, Pastor Bons, no Maranhão, e Oeiras, antiga vila da Mocha, no Pará.

Como no litoral, certos homens poderosos, requerendo sesmarias ao rei, iam formando enormes propriedades sertanejas, de léguas e léguas [...]. Guimarães Rosa [...] ao percorrer as veredas do grande sertão, conta que “cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros”.

Onde estaria a felicidade do vaqueiro, cantada por Fagner? Talvez no fato de ele se sentir mais livre que o “cabra do eito” – o trabalhador dos canaviais do litoral. Talvez no fato de ele quase nunca ser escravizado e nem sempre estar sob a vigilância do proprietário. Além disso, “depois de quatro ou cinco anos de serviço começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazenda por sua conta”.

Tropa de mulas, Jean-Baptiste Debret

Uma fazenda não exigia mais que dez ou doze “fábricas” (vaqueiros). Sempre um se destacava, principalmente quando o proprietário não morava na fazenda. Este “chefe”, além de participar do produto, podia receber um pequeno lote de terra para produzir gêneros necessários à sobrevivência e um salário fixo anual.

Conduzindo os rebanhos, a vida do vaqueiro tinha características de seminomadismo. Claro está que para os descendentes dos indígenas essas tarefas estavam mais próximas do seu mundo: muitos deles eram boiadeiros.

No século XVIII, com a descoberta de ouro no centro da colônia, o gado vacum do Nordeste desce pelo curso dos rios São Francisco, Araguaia e Tocantins para a área do novo extrativismo. O gado ia realizando a integração de diferentes regiões econômicas por ser a única atividade do período voltada para o mercado interno.

A pecuária também reduziu as disputas dentro da própria classe dominante: os proprietários que não conseguiam manter os engenhos tornaram-se fazendeiros de gado.

Nesse processo pecuarista de colonização do sertão ocorrem novos choques com os nativos. Os derrotados são, mais uma vez, os donos naturais daquelas terras. Interiorizaram-se ainda mais, foram escravizados, refugiaram-se nas missões ou tornaram-se capangas dos novos poderosos da região. Em suma, poucos restaram como índios.

Tropeiros negociando um cavalo, Nicolas-Antoine Taunay 

A vida dos primeiros sertanejos era dura: fartura só de carne e leite. A matéria-prima principal para quase todos os utensílios era o couro: nas portas das cabanas, nos leitos, nas mochilas, nas cordas, nas roupas, nos carros de boi que puxavam material de aterro para os açudes, nos recipientes para carregar água, guardar comida ou pisar rapé.

[...]

No Sul, no planalto Meridional, os bandeirantes que arranhavam o litoral logo se estabeleceram, apresando o gado cimarrón – que se reproduzia naturalmente – depois de destruídas as missões dos jesuítas espanhóis. Descendo de São Vicente a Laguna, formam estâncias – sempre maiores que as três léguas de sesmarias estabelecidos por lei... – nos campos de Paranapanema, Curitiba, Guarapuava, Lajes, Viamão e Vacaria.

Descanso de tropeiros, Johann Moritz Rugendas

A mineração atrai as tropas de muares vindas do sul, que serão vendidas em Sorocaba, feira importante localizada no interior do atual Estado de São Paulo, de lá seguindo até as Gerais. Com a introdução do charque, segue também a carne desde Pelotas.

Na pecuária sulina os peões tinham uma vida difícil. Oprimidos por rígidos capatazes – como bem retrata a lenda do Negrinho do Pastoreio – esses índios de origem charrua ou minuana, mestiços ou escravos negros que tinham que estar sempre prontos para lutar pela conquista de novas terras – as “califórnias” – ou contra os ataques de espanhóis, contrabandistas e índios submetidos. Trabalho e guerra eram a tônica das vidas dos primeiros cavaleiros gaúchos.

Também no extremo norte a atividade criatória se desenvolveu, dirigida por jesuítas e mercedários. O gado da ilha de Marajó (o búfalo só foi introduzido em 1870, trocado por bovinos de corte com as Guianas) abastecia a população de Belém e o criado em Roraima sustentava o povoamento fronteiriço, sob constante ameaça de incursões holandesas. No século XVIII, com a expulsão da Companhia de Jesus e a extinção da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, essas fazendas passaram para o controle do Estado, que as vendeu a particulares.

Atividade constante, voltada para o mercado interno, com enorme irradiação espacial, unindo diferentes áreas geo-econômicas e quase não utilizando o trabalhador escravo, a pecuária diferiu muito de outras atividades do período colonial.


ALENCAR, Francisco [et all]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 53-56.

sábado, 25 de outubro de 2014

Poder e poderes no Brasil Colônia

O primeiro instrumento institucional de ocupação das terras americanas foi a feitoria. Através delas, faziam-se contatos com índios da terra e se explorava pau-brasil. Cabia ao feitor tentar impedir que se embarcassem, sem autorização, indígenas escravizados, sobretudo mulheres, evitar a deserção de marinheiros, além de receber produtos da terra que seriam enviados ao Reino. [...] Aos finais de 1520, acumulavam-se na mesa real pedidos de pessoas que queriam estabelecer-se aqui. A promessa de “ganhar uma terra que não tem nenhum proveito e conquistá-la” era muito utilizada. Outro argumento era o de que a instalação de algumas povoações evitaria que os índios vendessem pau-brasil a estrangeiros.

Família de botocudos em marcha, Jean-Baptiste Debret.
 [Uma cultura que foi vítima de uma guerra sem trégua]

O resultado da fórmula aplicada com sucesso nas ilhas do norte da África, Madeira e Açores fez com que D. João III optasse pela divisão das terras em capitanias. Uma vez demarcadas, com 50 léguas de costa cada, foram distribuídas entre fidalgos. Como donatários, cabia-lhes criar vilas e povoações, exercer justiça, nomear juízes e oficiais, incentivar a instalação de engenhos, marinhas de sal e moendas de água, arrendar terras do sertão. Uma série de vantagens e poderes funcionava como chamariz para os colonos. Em contrapartida recebiam um “foral dos direitos, foros, tributos e cousas que na dita terra hão de pagar”.

Uma família no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret

Povoar o Brasil fazia-se urgente, contudo, por outras razões. A concorrência no Oriente obrigava Portugal a repensar sua política colonial. O comércio com as Índias custara caro ao tesouro real, mas fizera a fortuna de muitos comerciantes capazes de aplicá-la em outros negócios que lhes parecessem rentáveis. A acintosa presença francesa no Brasil obrigava a uma tomada de posição.

O sistema malogrou, contudo, devido ao tamanho do território colonial, assim como em razão de ferozes ataques indígenas. [...] quando se fundou o Governo Geral e Tomé de Souza foi enviado para cá, apenas três, das 12 capitanias distribuídas, haviam sobrevivido. Chegado em 1549, o primeiro governador-geral ergueu a primeira vila com foros de cidade, São Salvador, e deu início a violento combate contra os tupinambás, “matando e castigando parte deles”, para dar exemplo, como registra um documento do período. Trouxe consigo os padres jesuítas e o plano para a instalação urgente de uma estrutura político-administrativa que evitasse o naufrágio completo da colonização: o Governo Geral. Na bagagem, Souza trazia ainda um Regimento – instruções para pessoas e instituições – cujas preocupações incidiam sobre questões militares e de povoamento: assentamento de colonos, distribuição de gado bovino, criação de órgãos locais de administração, as câmaras. Em 1588, outro Regimento foi aprovado. Nele, novas diretrizes apontavam para uma maior presença do Estado português na Colônia: defesa da costa, exploração de salitre para defesa da armada, prospecção de “minas de metais”, proteção contra ataques e reafirmação da escravização de indígenas por “guerra justa”, assim como instalação da Relação – ou seja, tribunal de instância superior, na Bahia -, na verdade só instituída em 1609.

Índios em uma fazenda de Minas Gerais, Rugendas

Ao longo do tempo, governadores e depois vice-reis trariam, cada qual, seus regimentos e instruções, ao sabor das diversas conjunturas. Não houve consistência nas diretrizes administrativas até meados do século XVIII. A fragilidade do sistema retardava a instalação de um governo centralizados, tal como se desejava no Reino, comprometendo, simultaneamente, os interesses fiscais, políticos e estratégicos da metrópole. Apesar disso, começava a formação de quadros burocráticos; formação, contudo, marcada pela precariedade. Num relatório datado de 1550, o corregedor Pero Borges faz menção à proliferação de funcionários metropolitanos, muitos deles degredados de “orelhas cortadas”, outros tantos “muito pobres e ignorantes”. O oitavo governador do Brasil, D. Diogo Botelho, por exemplo, encontrou um tal descalabro na figura de funcionários, que lesavam o fisco e exerciam tranqüilo contrabando, que efetuou várias demissões na capitania de Pernambuco. A incompetência judicial que, então, se instalava iria somar-se à distância física entre o centro de decisões administrativas, Lisboa e as cidades litorâneas. E entre essas e as vilas do interior. Mal se instalara, a máquina do governo começava a emperrar. O braço da lei não atingia as áreas remotas. As próprias leis eram “profusas e confusas”. Os magistrados, corruptos. A voracidade meirinhos, escrivães e juízes prevaricadores era insaciável. A administração judiciária concentrava-se em algumas cidades, deixando o resto da Colônia nas mãos da justiça privada e do mandonismo local. [...]

A Fazenda, por sua vez, era dominada pela necessidade de ampliar tributos, recursos e impostos para atender as urgências crescentes do Estado. No mais, controlava casas para a alfândega e nomeava funcionários necessários ao seu funcionamento nos portos. Composta por guarnições de Primeira, Segunda e Terceira linhas, a organização militar reunia tropas e regimentos de cavalaria, infantaria e artilharia. Foi, contudo, apenas no século XVIII, quando os conflitos com os espanhóis ao sul da Colônia se acentuaram, que tais “forças armadas” coloniais começaram a se profissionalizar.

Vista do Rio de Janeiro defronte a Igreja do Mosteiro de São Bento, Rugendas

A organização eclesiástica também se mostrou precária no século XVI. As razões? Havia dificuldade de recrutamento de sacerdotes, e a autoridade episcopal não se instalara entre nós. Quando criado na Bahia, em 1551, o primeiro bispado, a terra e os moradores eram tão pobres que não podiam arcar com as despesas de manutenção do corpo eclesiástico. Gastos com a instalação de colégios para a Companhia de Jesus faziam com que sobrassem poucas rendas, pagas pela Coroa, para o clero secular. Foram inúmeros os conflitos entre autoridades coloniais e bispos, entre membros do clero secular e as ordens religiosas, e na própria hierarquia de ordens e do clero secular. Esse se estruturou no bispado de Salvador, elevado à arquidiocese e sede da província eclesiástica do Brasil em 1676 ao mesmo tempo em que eram criadas as dioceses do Rio de Janeiro e Olinda (1676), e depois do Maranhão (1677), de Belém (1719), São Paulo e Mariana (1745). O clero regular, representado por diferentes ordens religiosas, era independente graças a doações vindas de matrizes européias, esmolas da população local e aos rendimentos de propriedades privadas. [...] O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição não se instalou jamais entre nós, malgrado [...] as visitas de seus inquisidores à Bahia, a Pernambuco e ao Pará, em busca de hereges, cristãos-novos, feiticeiros, sodomitas e outros pecadores que infringiam a moral e a fé católica.

Família de fazendeiros indo à igreja, Rugendas

[...] O familismo político vicejava nas cidades litorâneas, unindo prósperos senhores de engenho e funcionários metropolitanos. Ao longo do século XVII, os primeiros ocuparam postos de comando nas Câmaras e suas ações arbitrárias caíam sob as costas dos arrendatários, meeiros e lavradores, interferindo nos resultados dos julgamentos e das ações que corriam no foro da Relação. Os casamentos dentro de pequenos grupos de famílias permitiam que essas se revezassem em postos de prestígio. Nesses grupos era constante a manipulação de alianças de família para resolver, na esfera pública, problemas domésticos.

Tocador de berimbau, Jean-Baptiste Debret

Uma segunda camada de colonos, constituída por plebeus, lavradores, “homens de qualidades” (como se lê em algumas cartas de sesmarias), fixava-se silenciosamente com seus gados e escravos na hinterlândia. Vagava pelos ermos sertões toda uma população desajustada e apartada do trabalho regular. Era remediada, a princípio. Tais indivíduos eram considerados pelas autoridades “facínorosos e bravos”. Muitos viviam com suas famílias, isolados e solitários, nos roçados que cultivavam. Outros podiam ser ladrões de gado ou “formigueiros”, nome que se dava aos que roubavam bens de pouco valor. Não faltava quem se organizasse em bandos e quadrilhas, agindo em assaltos pelas estradas.

Porto Estrela, Rugendas

Contudo, não somente a população pobre proliferava. Por todo o sertão surgiram régulos abastados, que haviam criado fortuna e zonas de poder local e pessoal. Tais potentados não hesitavam em medir forças com autoridades e vizinhos. Confrontos sanguinários lavavam a honra de famílias inteiras e seus agregados durante gerações. Os donos de tais terras, apoiados em escravos e dependentes, sentiam-se impunes dentro de seus domínios e mesmo de uma região. Tinham por aliados parentes e amigos voluntários. Impensável contrariá-los. Só que o vizinho pensava da mesma maneira. Assim, nunca carecia motivo para desavenças, “bastando”, como explicava o padre Antonil em 1711, “um pau que se tire ou um boi que entre no canavial por descuido para declarar o ódio escondido e para armar demandas e pendências mortais”. Os dias de festa religiosa, momento em que a comunidade se juntava, eram os preferidos para acertos de contas: tiroteios dentro das igrejas, emboscadas durante a procissão, troca de punhaladas nas casas onde se vendia bebida. [...] A impunidade grassava e contaminava populações de vilas e vilarejos. [...] Poucas autoridades metropolitanas ousavam interferir nos “negócios do sertão”. [...]


DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 50-56.

NOTA: O texto "Poder e poderes no Brasil Colônia" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Colonialismo na Austrália e na Nova Zelândia

Os primeiros contatos europeus com a Austrália aconteceram no século XVII quando exploradores holandeses mapearam o litoral ocidental e setentrional do continente. Em 1642, Abel Tasman avistou a Tasmânia e seguiu parte da costa da Nova Zelândia. M 1769 e 1770, o navegador britânico James Cook mapeou o litoral da Nova Zelândia e desembarcou no leste da Austrália, reivindicando-a para a Grã-Bretanha. O povoamento europeu começou em 1788 quando o governo britânico fundou ali uma colônia penal. Cerca de 750 condenados e 200 soldados desembarcaram na baía Botany antes de serem transferidos para Port Jackson (a moderna Sydney). Nos 80 anos seguintes, mais 160 mil condenados foram enviados para colônias penais criadas no litoral leste, sul e oeste da Austrália.

Uma vista da Baía dos Assassinos. Desenho feito pelo artista Abel Tasman por ocasião de uma escaramuça entre os exploradores holandeses e o povo maori. Esta é a primeira impressão dos europeus do povo maori. Isaack Gilsemans

- Primeiros colonos. A princípio, os colonos viveram da pesca e da caça de baleias e focas, além de suprimentos enviados pela Inglaterra. Aos poucos, soldados desmobilizados e presos libertados começaram a cultivar pequenas roças. A terra em torno de Sydney não era boa para a agricultura, mas na década de 1820 desenvolveu-se uma rota para o interior que revelou vastas planícies adequadas para a pecuária. Os colonos livres recorreram à criação de ovinos e logo a exportação de lã para a Grã-Bretanha se tornou uma parte fundamental da economia da Austrália.

A necessidade de mais pastos provocou conflitos com os habitantes aborígenes locais. Quando estes tentaram resistir à ocupação das suas terras e recursos hídricos, os colonos realizaram ataques de vingança e houve massacres ocasionais, por causa disso e da exposição a doenças europeias como a varíola, a população aborígene declinou drasticamente. Em 1900, a população era cerca da metade do total de 1788.

Massacre de Boyd, 1809. Louis Auguste Sainson


- A febre do ouro. A partir da década de 1830, o governo britânico começou a estimular a imigração de colonos livres para Austrália. A população livre cresceu rapidamente depois de 1851 com a descoberta de ouro em vários locais. A população aumentou de 405 mil habitantes em 1850 para quatro milhões em 1900. A febre do ouro contaminou as colônias e acorreram garimpeiros às minas de Bathurst, Ballarat, Bendigo e Kalgoorlie na tentativa de fazer fortuna. Milhares de mineiros chineses e asiáticos foram enviados sob contrato de servidão. Os chineses foram alvo de um racismo feroz que provocou leis de imigração mais estritas.

A extração de ouro transformou a economia e a sociedade da Austrália. Também teve impacto sobre o seu desenvolvimento político. Cada garimpeiro precisava comprar uma licença antes de sair em busca de ouro. Os mineiros de Ballarat opuseram-se ferozmente à taxa de licenciamento e criaram um movimento de reformas que também exigia o direito de voto. Os protestos levaram a um massacre em 1854. No ano seguinte, a taxa de licenciamento foi abolida e os mineiros receberam o direito de votar.

A explosão da estela de Boyd. Louis John Steel

- Autogoverno. Com o aumento da população, também cresceu a reivindicação de independência. Em 1850, o governo britânico concedeu em princípio esse direito, e, em 1856, Nova Gales do Sul, Vitória e Tasmânia passaram a se autogovernar, seguidas por Austrália Meridional (1857), Queensland (fundada em 1859) e Austrália Ocidental (1870). Todos os Estados optaram por governos representativos com sufrágio masculino universal. Então, em 1894, as mulheres da Austrália Meridional estiveram entre as primeiras da história a conquistar o direito de voto. Em 1901, criou-se a Comunidade da Austrália para promover o comércio entre os estados e facilitar uma política de defesa comum.

Reunião de colonos e maoris na Baía de Hawke, Nova Zelândia. M. Jackson

- Exploração. O navegador e cartógrafo Mattew Flinders foi o primeiro a circunavegar a Austrália em 1802 e 1803, mas as condições inóspitas impediram durante várias décadas a exploração do interior do continente. Edward Eyre atravessou a Austrália Meridional de leste a oeste entre 1839 e 1841, e Ludwig Leichardt percorreu o noroeste da baía de Moreton até Port Essington em 1844 e 1845. Burke e Wills foram os primeiros a atravessar o continente inteiro, indo de sul a norte em 1860 e 1861. John Stuart encontrou o centro geográfico do continente em 1860, durante a sua travessia. Na década de 1870, novas expedições se concentraram na Austrália Ocidental e abriram para o pastoreio as regiões de Pilbara e Kimberley. As comunicações transcontinentais foram auxiliadas pela criação de uma rede de telégrafo em 1871 e o término da construção da ferrovia Transaustraliana em 1917.

Um grupo de jovens maoris pendurados em cordas presas do topo de um poste. Um grupo de adultos e crianças sentadas assistem. George French, Angas, Giles, Joseph Jenner e Merret

- Nova Zelândia. Os primeiros povoadores europeus foram caçadores de focas de Nova Gales do Sul que, em 1792, desembarcaram na Baía das Ilhas. Em troca de terra, eles deram aos indígenas maoris mosquetes que, a partir de 1818, levaram às “Guerras dos Mosquetes” entre grupos maoris rivais. Baleeiros e caçadores de focas australianos também fundaram povoados na Ilha do Sul. A guerra entre colonos e tribos maoris se tornou comum. A desobediência às leis obrigou o governo britânico a intervir. Em 1840, representantes britânicos e líderes maoris assinaram o Tratado de Waitangi, segundo o qual aos maoris cediam o controle da terra em troca de direito de propriedade, cidadania e proteção. Mal-entendidos quanto aos termos do tratado levaram a novos choques e a uma guerra de 1859 a 1863. A resistência maori persistiu até 1872, e a paz formal foi assinada em 1881. A descoberta de ouro em Otago, em 1861, estimulou a imigração na Nova Zelândia e o ouro logo substituiu a lã como principal produto de exportação. Em 1907, a Nova Zelândia tornou-se um domínio com governo próprio dentro do Império Britânico. 

WOOLF, Alex. Uma Nova História do Mundo. São Paulo: M.Books do Brasil, 2014. p. 236-237.

NOTA: O texto "Colonialismo na Austrália e na Nova Zelândia" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.