A revolta do Cairo, Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson
A insatisfação diante do
estrangeiro se fazia sentir em vários níveis e em diferentes modalidades, desde
revoltas sociais, movimentos religiosos, até a organização de partidos e
sindicatos que pudessem representar o anseio das populações coloniais.
O preço do domínio colonial foi
ter que conviver todo o tempo num clima de tensão latente, e as revoltas
ocorriam por diferentes motivos. Houve levantes contra a fixação de impostos
nas comunidades de aldeia dos povos Mendes, em Serra Leoa (1889), dos povos
acholis, em Uganda (1911), dos povos holis, no Daomé (1914, 1920); contra a
requisição de mão de obra e a prestação de trabalho forçado nas comunidades dos
povos majanga, no Congo (1893-1894) e em toda a região do rio Zambeze. Mas
esses eram movimentos localizados, expressavam insatisfação mas não punham em
causa o funcionamento global do sistema de exploração.
Muitas vezes, as manifestações
religiosas canalizaram a insatisfação coletiva a se tornaram veículos
privilegiados de resistência social. Não dispondo de quadros políticos ou ideológicos
para conceitualizar e criticar a colonização, os africanos valeram-se do
discurso de cunho religioso para demonstrar sua inconformidade e materializar
formas concretas de contestação.
Os mais freqüentes foram os
movimentos messiânicos de matriz muçulmana e de matriz cristã.
Nas áreas de influência muçulmana
da África Ocidental, um foco importante de contestação na fase inicial da
colonização proveio da confraria dos múridas que, sob a liderança de marabus,
questionaram a presença francesa já no fim do século XIX. Movimentos similares
ocorreram na Mauritânia e na Somália.
Os feiticeiros e sacerdotisas, os
fazedores de chuva e xamãs das religiões tradicionais canalizavam a angústia
dos conterrâneos provocada pela presença estrangeira, e em alguns casos deram
origem a formas de contestação muito radicais. Como o movimento denominado
Mumbo, que se desenvolveu no Quênia a partir de 1913. Baseava-se na crença
difundida pelos feiticeiros locais de que uma grande serpente teria anunciado o
fim próximo dos brancos.
Outro foco de contestação tinha
origem no discurso cristão, tal qual o cristianismo tinha se desenvolvido na África.
Não um cristianismo alimentado pelos preceitos filosóficos, doutrinais e litúrgicos
europeus, mas uma crença superficial que se fundiu com antigas tradições das
religiões ancestrais africanas para dar origem a formas marcadas por um
profundo sentido messiânico.
Entre os movimentos religiosos de
cristianismo negro-africano, nenhum provocou tal impacto quanto o kimbanguismo.
Ele teve origem no Congo Belga, inspirado nas pregações de um profeta negro
chamado Simão Kimbangu (1887-1951), a quem se atribuía a capacidade de realizar
milagres e anunciar o futuro. O termo kimbangu
significa justamente “aquele que revela o sentido das coisas ocultas”.
Kimbangu anunciava aos “irmãos
negros” uma nova aliança com Deus, mesclando aos ensinamentos bíblicos
elementos dos cultos de possessão em honra aos antepassados, e elementos mágicos.
A prisão, condenação e deportação do líder em 1921 e a perseguição e prisão de
cerca de 37 mil adeptos apenas fizeram crescer a aura do martírio e fortalecer
o caráter salvacionista do movimento que, de resto, se mantinha forte no início
da década de 1950. A
Igreja kimbanguista continua a ter milhares de adeptos na República Democrática
do Congo e em Angola, na Europa e nos Estados Unidos.
Tudo indica que o impacto
provocado pelas duas guerras mundiais não foi pequeno para os africanos, que dela
participaram, na África e em outras frentes de combate. Nos domínios franceses,
soldados africanos passaram a ser recrutados de modo sistemático para servir ao
exército desde a Primeira Guerra Mundial. Eles participaram dos conflitos
travados dentro do próprio continente (nos Camarões, Togo e na África Oriental,
em conflito contra os exércitos recrutados pelos alemães), mas também foram
deslocados para a Europa, onde atuaram não só como atiradores, mas também como
parte da mão de obra necessária para a logística, como carregadores e
reparadores de armas e munições.
Nas duas guerras mundiais, foram
mobilizados mais de 250 mil homens nas colônias francesas, e 146 mil na África
Ocidental britânica. Parte desses efetivos foi enviada na Segunda Guerra
Mundial para lutar em territórios conflagrados na Ásia, experiência que viria a
se repetir, décadas depois, nos domínios franceses, durante a Guerra da
Indochina.
As guerras promovidas pelos
Estados europeus provocaram uma mudança profunda no comportamento dos
africanos. Elas alteraram a imagem do branco que até então, valendo-se da força
armada e da manipulação ideológica, tinha construído uma imagem de
superioridade racial e de um ser intocável. A convocação dos africanos para
integrar os exércitos europeus, mesmo que na condição de auxiliares, pôs em
causa uma regra que até então tinha sido mantida, pois aos negros foi
autorizado atirar e matar os brancos. Além disso, ao conviverem com os brancos
no front, os negros descobriram suas
fraquezas, seus defeitos, enfim, reconheceram sua humanidade: que eram homens
como quaisquer outros. Ao regressarem às suas terras, levaram consigo essas
experiências e contribuíram para a organização da luta anticolonial.
Dentro da Europa, movimentos
político-sociais de esquerda, sobretudo o movimento comunista, incluíam em sua
bandeira de luta pontos específicos contrários ao imperialismo e ao
colonialismo. Para os africanos que tomaram contato com tais movimentos, uma
das maiores dificuldades era a inexistência na África de um contingente
expressivo de proletários, de operários, a quem na ideologia marxista estaria
reservado lugar proeminente na luta política e na preparação de uma revolução. Faltava
também ali um movimento camponês com alguma estruturação que permitisse aos líderes
a organização de um movimento de libertação do tipo promovido pelo líder chinês
Mao Tse-tung nos anos 1930-1940.
Ainda assim, não foram poucos os
estudantes e intelectuais africanos que ingressaram nos partidos de esquerda e
começaram a se posicionar, dentro da própria Europa, nos movimentos de
contestação aos regimes associados ao imperialismo e ao colonialismo.
A invasão da Etiópia pelos
italianos a serviço do regime fascista de Benito Mussolini, em 1935, foi
severamente condenada por organizações integradas por africanos. Não obstante,
a ocupação durou até 194, quando as forças fascistas começaram a sofrer
derrotas dentro e fora da Europa.
Esse acontecimento constitui um
divisor de águas na história da consciência africana. A Etiópia era o mais
antigo Estado formado no interior do continente, o único que conseguira até então
manter sua independência e ser reconhecido no círculo das grandes nações. Era
um símbolo positivo, uma espécie de bastião da soberania africana. Em várias
partes da Europa e na América, as elites negras mobilizaram-se e organizaram
uma vasta campanha de protesto contra a Itália e um boicote aos produtos
italianos. Em toda parte aumentaram as pressões sobre os impérios coloniais e
seus agentes.
A crise etíope revelou a dimensão
da impunidade, a arrogância dos brancos e o tratamento desigual reservado aos
negros pelos representantes de instituições internacionais, como a Liga das Nações
– que pouco fez para impedir a ocupação daquele país soberano. Por outro lado,
contribuiu para a conscientização política de membros das elites coloniais, que
passaram a tomar parte mais ativa nas formas de contestação ao colonialismo.
A emergência dessa consciência
africana deve muito a movimentos intelectuais nascidos na América do Norte e na
América Central, dos escritos de intelectuais da diáspora negra. Desde os anos
1920, as obras do jamaicano Marcus Harvey (1887-1940) alimentavam o mito do
regresso à Mãe-África pelos afrodescendentes, integrando-se numa perspectiva de
valorização da “raça negra”. Maior impacto teriam as ideias do escritor
norte-americano William Edward Burghart Du Bois (1868-1963), que defendia a
igualdade das raças e a coesão e união dos povos negros espalhados pelos vários
continentes, no combate às desigualdades raciais e aos abusos do colonialismo. Foi
assim que, em 1919, realizava-se em Paris o primeiro Congresso Pan-Africano,
ponto de partida do movimento conhecido como pan-africanismo.
O pan-africanismo ganhou
importantes adeptos nas elites negras espalhadas na América do Norte e na
Europa e teve grande influência num movimento que viria a ter papel
significativo no contexto das independências africanas: o movimento da negritude, nascido em 1939. Este
resultou do conjunto de ideias de valorização da cultura negra e da profunda crítica
ao colonialismo, em obras de autores como o haitiano Jean-Price Mars, o
antilhano Franz Fanon, o martinicano Aimeé Cesaire e o senegalês Leopold Sedar Senghor
(1906-2001) – que viria a ser algumas mais tarde o primeiro presidente do
Senegal.
Tais ideias circulavam em
diferentes jornais e revistas que tiveram por objetivo congregar as populações
de africanos e afrodescendentes, como L’Étudiant
Noir, L’Action coloniale e Le libere, na França; Negro World, New Times and Ethiopia News, The
Crusader, na Inglaterra; O Negro
ou O Correio da África, em Portugal. Papel
de primeiro plano seria reservado à revista Presence
Africaine, fundada em Paris no ano de 1947 pelo filósofo senegalês Alioune
Diop. Ela se distinguiria nos anos 1950-1960 como canal de difusão da história
e da filosofia africana, da negritude
e do pan-africanismo na Europa.
MACEDO, José Rivair.
História da África. São Paulo: Contexto,
2013. p. 154-158.
NOTA: O texto "Anticolonialismo na África" não representa,
necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de
refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.