"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 31 de julho de 2012

O reino de Axum

O reino de Axum, onde atualmente se localiza a Etiópia, começou a se formar por volta do século V a.C., em uma área de solos férteis que estimularam a agricultura e a criação de animais. Entre os séculos II e III d.C., Axum dominou diversos reinos e cidades da África e cobrava-lhes tributos. O império estendeu-se também por grande parte do sul da península arábica, onde o controle axumita se manteve até o século VI.

Expedição egípcia ao Punt durante o reinado de Hatshepsut. Foto: Hans Bernhard

A facilidade de acesso ao mar Vermelho e ao rio Nilo colocou os axumitas em contato com egípcios, gregos, romanos, árabes, persas, sírios, indianos, judeus, com os quais mantiveram intenso comércio. As trocas comerciais possibilitaram também um intercâmbio cultural: a língua e a escrita de Axum assemelhavam-se às do sul da península arábica; seus costumes e tradições assemelhavam-se aos dos gregos e romanos.

Compravam e vendiam marfim, algodão, linho, seda, vidro, machados, adagas, vinho, azeite, pedras preciosas e objetos de luxo. No comércio popular circulavam mercadorias como sal, alimentos, cerâmica, tecidos rústicos e utensílios de ferro. Os pagamentos eram feitos com moedas de ouro, prata e bronze.

O desenvolvimento comercial estimulou as viagens pelo oceano Índico, pelo mar Vermelho e pelo mar Mediterrâneo e favoreceu a produção de conhecimentos técnicos sobre navegação. As embarcações eram feitas de pranchas de madeiras presas com cordas e resistiam a longas viagens.

A sociedade subdividia-se em nobres, mercadores, marinheiros, artesãos, soldados e numerosos escravos. Grande parte da riqueza axumita era produzida no comércio, na exploração do trabalho escravo e na criação de gado.

"Esse comércio - diz Alberto da Costa e Silva - era essencialmente de artigos de luxo, cujo alto valor compensava o transporte a distância. Em Axum, devia ser monopólio do rei, negócio de estado, apanágio da nobreza. O poder do soberano tinha nele um dos seus assentos, e outros nos seus incontáveis rebanhos e na numerosa escravaria. Certa atividade mercantil estava mais ao serviço do comum das gentes: a que se fazia em torno do sal, que vinha do deserto da Dancália, das barras e utensílios de ferro, dos tecidos rudes, da cerâmica, dos alimentos." 

A arquitetura caracterizou-se por amplos palácios, templos, monumentos, mercados, feitos com basalto, granito e mármore finamente trabalhados e esculpidos. Os templos eram erguidos com trabalho coletivo, por meio do qual blocos de pedra pesando centenas de toneladas eram retirados das pedreiras e levados até o local das construções.

"Em torno das comunidades agrícolas que se dedicavam à agricultura e ao pastoreio - diz José Rivair Macedo -, organizaram-se poderes centralizados para os quais foram edificados palácios, túmulos e altares com admiráveis registros iconográficos gravados em pedra, uma estatuária rica em motivos guerreiros e uma forma de escrita desenvolvida. Sinais evidentes de uma sociedade hierarquizada, diversificada e complexa, que estaria na origem da atual Etiópia." 

Os axumitas acreditavam na vida após a morte. Construíam monumentos como esse, chamados de estelas, em homenagem aos reis mortos. As paredes laterais continham entalhes de figuras divinas e na base ficava um altar com uma espécie de bacia para onde escorriam o sangue dos sacrifícios de animais e o vinho das oferendas.

No século IV teve início em Axum a divulgação da religião cristã. Ao que parece, ela chegou aos axumitas por influência de um conselheiro do reino que era cristão e viera da cidade de Roma [...], onde o cristianismo já havia sido difundido.

O rei Ezana, cujo governo ocorreu por volta dos anos 325 e 360, converteu-se ao cristianismo e o transformou na religião oficial de Axum. No entanto, a nova religião foi aceita aos poucos, convivendo por muito tempo com as crenças locais. Nos territórios do norte, por exemplo, o número de cristãos tornou-se significativo somente no início do século VI. Textos bíblicos foram traduzidos para o idioma falado pelos antigos etíopes; em numerosos mosteiros viviam monges que dedicavam sua vida às orações, à meditação e à caridade.

Rei etíope encontrando embaixadores da Pérsia. Franciszek Smuglewicz

Ainda no século VI, o Império de Axum foi se enfraquecendo devido a conflitos e disputas comerciais com outros impérios da época, sobretudo o Bizantino e o Persa.

MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 30.
PANAZZO, Silvia; VAZ, Maria Luísa. Navegando pela História. São Paulo: Quinteto Editorial, 2009. p. 81-83.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 204.

domingo, 29 de julho de 2012

O reino de Cuxe

Rainha Amanitore 

"A palavra Cuxe aparece, pela primeira vez, num texto egípcio, por volta de 2000 a.C. Refere-se a um reino que se entendia ao sul de Semna. Ali, terminava o "Ventre das Pedras" e abria-se a paisagem mais suave e mais propícia do Abri-Delgo, com suas planícies cultiváveis junto ao rio, a anteciparem as terras férteis de Dongola, mais ao sul [...]" ¹


Ao sul do Egito, localizava-se a Núbia. Embora fosse banhada pelo rio Nilo, essa região era bastante árida e seu povo precisou criar sistemas de irrigação que facilitaram a criação de gado e o cultivo da cevada, trigo, sorgo, lentilhas, pepino, melão, tâmaras. Por volta de 2000 a.C. lá se formou o reino de Cuxe, que manteve intensa atividade comercial: caravanas chegavam pelo deserto carregadas de mercadorias da Ásia e das regiões próximas ao mar Mediterrâneo; pelo rio Nilo, os comerciantes cuxitas levavam e traziam produtos do norte e do sul da África, como peles de animais, marfim, madeiras, ouro.


Faraós núbios. 25ª dinastia
"A presença núbia era constante ao longo dos milênios da história do Império Egípcio e é atestada nas pinturas das paredes das pirâmides, nas ilustrações dos papiros e na rica estatuária." [MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 25]

Nas pirâmides onde foram enterrados os soberanos cuxitas, eram feitas oferendas de artigos de luxo, o que demonstra o rico artesanato daquele povo.

As principais cidades do reino de Cuxe foram Querma, Napata e Méroe. Dentre elas, Méroe se destacou por ter se tornado um importante centro urbano e por atrair grande número de pessoas interessadas na agricultura, no comércio e na metalurgia. Foi uma das capitais do reino de Cuxe. Escavações arqueológicas revelam que em Méroe havia uma área cercada por muralha de pedra, onde viviam o rei e a nobreza e ficavam os palácios, os prédios públicos e alguns templos religiosos.

"Tinha essa gente enorme apreço pelos vasos de alabastro, pelas estátuas, estelas e outros objetos egípcios - encontrados em tal abundância nos seus túmulos, que o primeiro arqueólogo que trabalhou em Querma, G. A. Reisner, chegou a considerá-la uma feitoria dos faraós. [...]" ²


Príncipe Arikankharer matando seus inimigos.
Arte meroítica em arenito

Os contatos com diferentes povos favoreceram a criação de uma cultura material rica e diversificada. Confeccionavam peças de cerâmica, jóias e estatuetas de ouro, prata e bronze, faziam instrumentos musicais, criavam objetos de madeira, produziam adornos de vidro, de conchas e de pedras preciosas.


Cerâmica meroítica
"Da Núbia provinha uma série de produtos apreciados em Mênfis ou Tebas, como peles de animais e temperos, mas sobretudo minerais preciosos e cativos que seriam empregados como escravos em serviços domésticos e nos templos. O próprio termo "Núbia" deriva de noub, que significava 'ouro'". [MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 25]

As fontes históricas sobre os cuxitas indicam que a sociedade estava dividida da seguinte forma: rei e nobreza; altos funcionários públicos e chefes militares; sacerdotes, comerciantes, artesãos e soldados; camponeses (também chamados felás).

As pessoas ricas vestiam roupas brancas de linho e algodão com bordados coloridos e usavam jóias. Os mais pobres usavam roupas simples de couro e andavam descalços. Em todas as camadas sociais as pessoas usavam colares, pulseiras, braceletes e tornozeleiras.

"A riqueza de Cuxe permitiu que suas elites copiassem o modelo egípcio. Da mesma forma que o faziam os hicsos. Trabalhadores egípcios serviam em Querma e transmitiam suas técnicas aos artesãos cuxitas. Qualquer objeto egípcio era tido em alta estima e bem cuidado. E também - pode-se supor - os modos de vida, a etiqueta e o protocolo." ³


Estátua meroítica encontrada no “Santuário da Água”, Méroe, Núbia, Sudão

Geralmente as casas eram feitas de tijolos e nelas havia fogão, camas de madeira, potes de barro, cestos e diversos objetos, como enxadas, facas e tesouras de ferro, além de vasos, taças, tigelas, caixas de bronze, prata, vidro ou madeira. Quanto maior fosse a casa e maior a variedade de objetos que ela tivesse, mais alta era a posição social de seu proprietário.

Relevo cuxita

O povo de Cuxe era politeísta e adorava deuses antropozoomórficos, como Marduk e Apedemek. Na cidade de Napata foi construído um templo em homenagem a Amon, deus do sol, também cultuado no Egito.


Pirâmide de Khartoum
"Do esplendor e prosperidade da civilização de Meroé restaram diversos monumentos, entre os quais pirâmides de pequena proporção, templos em homenagens aos deuses, túmulos e sarcófagos de granito [...]" [MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 26]

Os túmulos dos reis e da nobreza tinham formas de pirâmides. Mulheres e escravos eram enterrados com o morto para servi-lo na vida após a morte. Além disso, eram colocados junto ao corpo jóias, objetos e oferendas variadas. Nas demais camadas sociais, os mortos eram mumificados e enterrados em cemitérios.


Esta lâmpada representa um prisioneiro nu cativo, as mãos amarradas aos tornozelos. 

Para facilitar as atividades comerciais, os cuxitas utilizaram a escrita hieroglífica egípcia e, posteriormente, a alfabética, por influência dos fenícios e dos gregos.


Escrita cursiva meroítica

Cuxe tinha uma monarquia teocrática. Os estudos revelam que essa forma de governo foi comum em grande parte dos antigos reinos africanos que praticavam a agricultura como uma das principais atividades.

O reino de Cuxe começou a se enfraquecer por volta do século IV, devido a uma série de razões: o empobrecimento do Egito, que passou a comprar menos mercadorias cuxitas, a insegurança nas rotas comerciais, que dificultava a travessia do deserto. Além disso, Méroe, principal cidade na época, foi por diversas vezes atacada por tribos nômades e também por outro reino africano, Axum. Nesses ataques, os invasores saqueavam os estoques de alimentos e mercadorias, empobrecendo a cidade e dificultando ainda mais a prática do comércio naquele reino.

MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 25-26.
PANAZZO, Silvia; VAZ, Maria Luísa. Navegando pela história. São Paulo: Quinteto Editorial, 2009. p. 78-81.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 109 (citações ¹ e ²) e p. 111 (citação ³)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Mesoamérica: Los grandes centros ceremoniales y su función

Teotihuacan

Además de concentrar las actividades administrativas, artesanales y comerciales, las grandes ciudades del México antiguo eran también, y principalmente, lugares de culto, centros ceremoniales con fines religiosos. La aparición de los primeros centros ceremoniales, entre los años 1200 y 200 a.C., indica la transformación de un culto religioso doméstico y sencillo a otro más elaborado, com dioses y rituales bien definidos.

En esa época de cambios, se difundieron por Mesoamérica el calendario, la numeración y la escritura jeroglífica. La sociedad se diversificó y se jerarquizó: se perfilaron campesinos, comerciantes y sacerdotes. Poco a poco, la religión se convirtió en el centro de la vida social. El pueblo comenzó a rendir culto a poderosos dioses creadores de la naturaleza. Como figuras principales en el culto religioso y en la dirección del gobierno, los sacerdotes ordenaron la construcción de los grandes monumentos que hoy conocemos.

Los estudios indican que los olmecas fueron los primeros en erigir grandes complejos de edifícios con fines religiosos. El centro de La Vienta, por ejemplo, se construyó a lo largo de un eje que corre de norte a sur, con un conjunto de monumentos en cada uno de sus lado: pirâmides de barro, altares tallados en piedra, tumbas, colosales cabezas de piedra basáltica y otras esculturas pequeñas.

La presencia de grandes plazas en esos centros parece indicar que las ceremonias se realizaban al aire libre. El el centro de las plazas se construían plataformas de tierra revestidas de piedra, los basamentos piramidales, cuerpos escalonados cuyas plantas podian ser regulares o irregulares, circulares y ovales. Los adoratorios se ubicaban en la cima de esos basamentos, quizá construidos con madera y techados con paja. Teotihuacan, en Valle de México, es el ejemplo clásico de una gran urbe planificada como centro ceremonial.

Los centros ceremoniales de Mesoamérica sirvieron también para realizar festividades y juegos rituales, de ahí la necesidad de plazas grandes, templos, santuarios y canchas para el juego de pelota. Un buen ejemplo es la ciudad de El Tajin, en el actual Veracruz.

GÓMEZ MÉNDEZ, Sergio Orlando. História 3: A través de los Tiempos de México. México: Prentice Hall, 1998. p. 19-20.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Washington, a capital dos Estados Unidos e as multidões

[...] Washington foi construída para receber multidões, com suas longas avenidas e ruas espalhadas num grid quase perfeito. Uma cidade idealizada para ser democrática -e, no entanto, avessa as multidões. Nervosa com multidões: quer controlar, guiar, conter sua força, domar. Em 1836, a Câmara chegou a proibir qualquer protesto contra a escravidão em suas cercanias. A lei contra protestos não durou muito, mas os líderes do Exército de Coxey (militar que lutou na Guerra de Secessão) não tiveram muita sorte em 1894. Não podiam ser presos por protestar contra o desemprego, então foram para a cadeia por pisar na grama.

São negros quase todos os que estão na rua neste dia da posse presidencial. [...]


Martin Luther King discursa durante a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade

Os primeiros negros de Washington eram homens livres. Chegaram mais ou menos na época em que Jefferson era presidente. Haviam sido escravos nos estados vizinhos, mas lutaram na Guerra de Independência e garantiram sua liberdade. [...]

As primeiras comunidades negras de classe média dos EUA surgiram em Washington. Um dos gigantes do jazz, Duke Ellington, é da capital e sugeria que do burburinho cultural negro de lá veio sua maior influência. Em 1867, apenas dois anos após o fim da Guerra Civil entre norte e sul pela abolição, nasceu Howard, a primeira universidade que aceitava alunos negros na terra dos escravos. [...]

Washington foi a primeira grande cidade americana a ter mais negros do que brancos. A primeira cidade do sul a abolir a escravatura. E, ainda assim, em 1925, 35 mil racistas mascarados, vestidos com mantos brancos e chapéus de ponta, marcharam pelas ruas da cidade. Era a maior multidão jamais vista na cidade até então.

Estes não foram presos. [...]

Em 1954, a Suprema Corte proibiu a segregação oficial em todas as escolas públicas da cidade na esperança de que o exemplo se espalhasse. Não se espalhou.

O recorde da passeata da Ku Klux Klan em 1925 só foi batido em 28 de agosto de 1963, quando 250 mil homens, mulheres e crianças chegaram para a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade. Eram negros. Queriam o fim da segregação legal. Queriam reservas de mercado. Nas semanas anteriores, a nação entrou em debate. Mesmo partidários do movimento criticavam a marcha - ela atrapalharia o governo em seus esforços pelos direitos civis. [...]

Os líderes da marcha estavam dentro do Capitólio, negociando com deputados, quando a multidão, descontrolada como multidões costumam ser, decidiu sair caminhando. [...] Martin Luther King teve de descer às pressas a escadaria (do Capitólio) e pegar um carro para alcançar seu público. "Eu tive um sonho", ele disse, "sonhei que um dia este país viverá seu ideal tal qual redigido em sua declaração de independência: temos esta verdade por evidente, que todos os homens são iguais" [...].

A multidão de 2009 também não tem paciência [...].

A multidão, ombro a ombro. Um passo para o lado faz a diferença entre conseguir enxergar o telão ou ter uma árvore à frente, a cabeça de uma criança no ombro do pai. Ninguém se move. [...]

O presidente eleito dos Estados Unidos chega. Ovação. E aí, novamente, silêncio. A presidente da Câmara chama Barack Hussein Obama ao centro. O  presidente caminha. [...]


Posse do presidente Barack Hussein Obama

A multidão começa a ir embora. Não espera o discurso. Os rostos cansados. São, na esmagadora maioria, negros. Esperaram muito. Não precisam mais de discurso, ouviram tantos. Agora, aconteceu. Podem voltar para casa.

DORIA, Pedro. O Estado de S. Paulo, 2009

segunda-feira, 23 de julho de 2012

As artes nas sociedades indígenas

Não obstante a grande variedade de sociedades indígenas que viviam no Brasil, nenhuma delas chegou a desenvolver uma produção artística comparável à criada por outras nações que habitavam o continente antes da chegada dos europeus.

Mesmo assim, o mundo indígena existente no Brasil pré-europeu desenvolveu variadas e ricas manifestações artísticas na música, na dança, na pintura, na cerâmica, na plumária, na cestaria...

Índio adornado com plumas: cocar, braçadeiras e uma pena no nariz.

A arte plumária, cujas realizações mais belas coube aos tupinambás, expressou-se mediante o aproveitamento de penas e plumas obtidas na rica avifauna brasileira. Podia se expressar através da colagem de penas coloridas no corpo ou por meio de adornos feitos de penas, como cocares, colares, pulseiras, braceletes, cintas e faixas com penas enfiadas. Penas coloridas eram empregadas em orelhas e narizes perfurados.

Pictogramas na Cachoeira Resplendor (Pará), mostrando paleoíndios adornados com penas.

Os indígenas chegavam até a criar algumas aves para arrancar suas penas coloridas. Privilegiavam as araras vermelhas, pois o encarnado era a cor preferida da maioria das tribos. Os tupinambás criavam a guarajuba, ou papagaio-imperial, em cuja plumagem predominava a cor amarela.

Índios bororo, Jean Baptiste Debret

Contudo, chegaram a processos diversos para alterar a coloração das penas e plumas, como aquecê-las ou friccioná-las com a gordura de certos peixes ou a seiva de plantas.

A cerâmica não era conhecida por todas as tribos. Todavia, os tapajós, com a chamada cerâmica de Santarém e a denominada cerâmica marajoara, desenvolvida pelas comunidades indígenas da ilha de Marajó, constituem exemplos da variada e magnífica cerâmica indígena.

Em suas primeiras manifestações, as criações em barro cozido tinham fins utilitários: produzir vasilhames e recipientes diversos. Em etapa posterior - além de tijelas, moringas e panelas - também produziram urnas funerárias, vasos, jarros, potes, cachimbos e até bonecos. Estes foram feitos pelos tapirapé e carajá, os conhecidos licocós. Essas figurinhas femininas são modeladas com coxas e nádegas desenvolvidas.

Muitos desses objetos eram pintados em cores diversas e ornamentados com formas variadas.

A música, associada ao canto e às danças rituais, foi amplamente utilizada por todas as sociedades indígenas. Todavia, à medida que a colonização avançou, tendeu a ser transformada e/ou desapareceu.

Por quê?

Porque foi considerada manifestação diabólica, sobretudo pelos sacerdotes.

"Os jesuítas, assustados com o caráter selvagem do instrumental da música indígena - trombetas com crânio de gente na extremidade, flautas de osso, chocalhos de cabeças humanas etc. -, trataram de iniciar os catecúmenos nos segredos do órgão, do cravo e do fagote, que melhor se adaptavam à música sacra. Com o aprendizado desses instrumentos a estrutura natural da música dos indígenas, baseada em escalas diferentes da europeia e, portanto, geradora de um esquema harmônico igualmente diverso, perdia sua razão de ser [...]". (TINHORÃO, José Ramos. Música popular dos índios, negros e mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972. p. 11.)

Os jesuítas, principalmente, perceberam que a catequese seria facilitada mediante o emprego da música. Por isso, usaram composições musicais europeias, escritas em língua tupi, para atrair os indígenas à Igreja católica. Um dos resultados foi o fim da original música indígena.

Mesmo assim, muitos dos 15 a 20 instrumentos musicais dos índios sobreviveram. Dentre eles, destacam-se trombetas, chocalhos ou maracás, tambores, assobios, rascadores de casca de tartaruga (reco-reco) e flautas (de osso, de cerâmica ou taquara).

Xamãs guaranis tocando maracás na dança que marcou a despedida do encontro de lideranças para lançamento da campanha "Povo guarani, grande povo"

O trocano era um instrumento de percussão usado como meio de comunicação. Tratava-se de um tronco de árvore percutido por varetas de borracha.

As máscaras constituíam impressionantes manifestações artísticas difundidas em cerimônias - rituais ou festivas - pelos tucanos, bacairis e demais tribos que viviam no Brasil.

"No princípio, talvez, a máscara tenha sido usada como disfarce para as caçadas.

[...] Em umas tribos, a máscara não permite o reconhecimento de seu portador por um espírito maléfico. Em outras, a função é inversa: a máscara serve para que a divindade reconheça o índio escondido e lhe transmita dons especiais.

Há certas cerimônias em que a máscara, no caso de iniciação (admissão dentro da vida adulta da tribo), representa um espírito obsceno, petulante, violento, que deseja se apossar do iniciando." (ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil - histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, 1990. v. 2. p. 243.)

Na realidade, para os índios, as máscaras tinham uma função mágica. Por isso, sua ornamentação variava em função do objetivo, podendo ser inclusive zoomórfica. Da mesma forma podiam ser de casca de árvore, de cerâmica ou de peles de animais.

Desde criança os indígenas aprendiam a pintar e, quando atingiam a idade adulta, embora todos soubessem utilizar as tintas, geralmente cabia às mulheres a preparação das tintas aplicadas em objetos de uso da comunidade. Muitas vezes empregando o sumo de cascas de árvores, pintavam suas máscaras, bonecos de palha ou de barro, os trançados e a cerâmica em geral.

Além disso, a pintura corporal, bastante difundida no mundo indígena, constituía uma forma de embelezamento. A boca e o queixo, contudo, não eram pintados.

Índios pataxós: cocares e pintura corporal

A pintura corporal estava ligada igualmente a formas de comunicação, podendo representar o luto, o resguardo de uma mulher, uma doença. Mas também servia para expressar os diferentes grupos existentes na comunidade. Predominavam figuras geométricas e abstratas. Havia uma tendência em empregar tintas pretas, vermelhas e brancas, ainda que usassem o amarelo, o roxo-escuro e o azul.

Pintura facial. Índia Tapirapé

Dava-se grande importância à cor vermelha, obtida de sementes de urucu, de folhas de carajuru ou de argilas ricas em óxido de ferro.

[...]

Trabalhos em madeira (batoques, banquinhos, pentes, animais e raríssimas estátuas) e de trançados de palha (cestas, esteiras) representam outras manifestações artísticas dos indígenas brasileiros.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 27-30.

sábado, 21 de julho de 2012

Trajetória do arqueólogo André Leroi-Gourhan (1911-1986)

André Leroy-Gourhan

André Leroi-Gourhan pode ser considerado o maior representante de um tipo diferenciado de arqueologia, muito próximo à etnologia, entendida à maneira francesa, como o estudo do modo como as pessoas vivem em sociedade. Leroi-Gourhan, nascido na França, aprendeu russo e chinês na Escola de Línguas Orientais, tendo ainda estudado no Japão na década de 1930. [...]

Atuou na Resistência à ocupação alemã e publicou importantes livros sobre o homem e suas técnicas, tendo forjado conceitos como o de gesto técnico. [...]

Professor de Lyon, depois da Sorbonne e do College de France, Leroi-Gourhan formou arqueólogos franceses e de muitos outros países, como o Brasil, ensinando uma técnica de escavação inovadora, de grandes superfícies [...]. Sua visão humanista tanto da disciplina como das culturas considerava todas as sociedades e povos dignos de valor. Essa postura que valorizava o ser humano foi fundamental, por exemplo, para que, no Brasil, surgisse uma arqueologia preocupada com os vestígios indígenas, que teve na pessoa do jornalista e intelectual Paulo Duarte um de seus principais pioneiros.

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 22-23.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Trajetória do arqueólogo Vere Gordon Childe (1892-1957)

Vere Gordon Childe

Childe seguiu trajetória muito diversa da de outros colegas de profissão. Nasceu na Austrália, então considerada quase o fim do mundo [...]. Filho de um pastor da Igreja Anglicana, estudou, como Wheeler, latim, grego e filosofia, mas logo entrou para o recém-fundado Partido Trabalhista da Austrália. Em 1914, conseguiu uma bolsa para cursar pós-graduação em Oxford, sob orientação do estudioso da cerâmica grega John Beazley. Em 1916, já voltava à Austrália, para atuar como ativista político [...].

Com seu domínio de muitas línguas, percorreu o continente e publicou livros de síntese que constituíram obras de referência por décadas. Em 1927, tornou-se catedrático de arqueologia em Edimburgo, na Escócia. Childe pode ser considerado, a um só tempo, o maior teórico e também o mais prolífico e bem sucedido divulgador da disciplina. Ele inspirou-se no marxismo para apresentar uma interpretação de toda a história da humanidade, desde muito antes da invenção da escrita até a atualidade, tomando por base a evolução tecnológica.

Com isso, procurou mostrar que cada época baseou-se numa determinada tecnologia e que sua superação sempre se deu por um avanço técnico [...]. Suas obras, até hoje, são os livros de arqueologia mais difundidos de todos os tempos. Childe dirigiu o Instituto de Arqueologia de Londres até 1956, quando se aposentou e voltou para a Austrália. [...]

Gordon Childe também foi feliz em sua definição do trabalho do arqueólogo:

"A arqueologia é uma forma de história e não uma simples disciplina auxiliar. [...]"

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 21-22. 

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Trajetória do arqueólogo Mortimer Wheeler (1890-1976)

Sir Mortimer Wheeler

Wheeler formou-se em estudos clássicos [...] em 1910. Logo concluiu mestrado (1912), para em seguida atuar no exército durante a Primeira Guerra Mundial, tendo obtido altas honrarias militares [...]. Na década de 1920, muito jovem, já era diretor do National Museum of Wales, em Cardiff, no país de Gales. Em 1926 voltou à Inglaterra para atuar no Museu de Londres, tendo lutado pela criação do Instituto de Arqueologia, concretizada em 1937. [...]

Em 1944, tornou-se diretor geral do Arquaeological Survey of India, de onde trouxe à luz vestígios importantes das antigas civilizações do rio Indo. [...] Desenvolveu o chamado "sistema Wheeler" das quadrículas [...]. Além disso, foi um grande comunicador, com colunas nos jornais e programas de rádio. [...] 

Wheeler tornou-se muito influente entre os pesquisadores por afirmar que o arqueólogo "escava pessoas, não coisas".

[...]

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 20.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Trajetória do arqueólogo William Mathews Flinders Petrie (1853-1942)

Sir William Mathews Flinders Petrie

O inglês William Mathews Flinders Petrie, com suas técnicas apuradas, foi um dos grandes pioneiros da moderna arqueologia. Petrie, ainda criança, já se preocupava em coletar moedas gregas e romanas [...]. Seu pai, muito religioso, pensava que a Grande Pirâmide de Gizé, no Egito, havia sido construída por inspiração divina e que suas medidas, se bem interpretadas, poderiam revelar todos os mistérios do passado e do futuro da humanidade.

O filho dispôs-se a tomar as tais medidas, partindo para o Egito em 1880. Petrie logo concluiu que essa história de medidas divinas não passava de crendice mas, por outro lado, apaixonou-se pelas antiguidades egípcias, que se deterioravam a cada dia. [...] Encontrou Amelia Blandford Edwards, uma grande novelista, apaixonada pelo Egito, que o ajudou a fundar, com dinheiro de pessoas de posses, o Egyptian Exploration Fund.

Petrie deu início às escavações científicas no Egito e foi, também, o primeiro a preocupar-se em estudar e classificar objetos domésticos, de uso cotidiano, mesmo quando fragmentados. Iniciou, ainda, as modernas escavações na Palestina [...]. Foi agraciado com uma cátedra em Londres [...]. Petrie estudou, também de forma pioneira, os vestígios anteriores ao período faraônico, antes desconsiderados.

Na geração seguinte, essa tradição arqueológica empírica, da qual Petrie foi um dos principais protagonistas, seria em grande parte muito alterada pela crescente importância do trabalho acadêmico. [...]

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. p. 19.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Os etruscos

Dançarinos. Tumba da necrópole de Triclinium, c. 470 a.C. Artistas desconhecidos

[...] Segundo alguns pesquisadores os etruscos teriam vindo da Ásia Menor, segundo outros seriam autóctones da atual Toscana, segundo outros ainda, originários das regiões alpinas. O que se sabe, ao certo, é que por volta do século VIII a.C. encontravam-se instalados na Etrúria, região da Itália central, correspondente mais ou menos à Toscana de hoje.

Sarcófago etrusco de Cerventeri, c. 520 a.C. Artista desconhecido

No decorrer dos séculos VII e VI a.C. conquistaram um vasto território, que no entanto acabaram perdendo no século V a.C., quando ficaram limitados à primitiva região.

Os etruscos dedicaram-se ao comércio terrestre e marítimo; no comércio terrestre alcançaram o norte da Europa, atravessando os Alpes; no comércio marítimo disputaram as rotas do Mediterrâneo à Grécia e a Cartago, com quem dividiram as zonas de influência: o sul do Mediterrâneo para os cartagineses e o norte para os etruscos.

* O comércio etrusco. A Etrúria era formada por numerosas cidades-estados, independentes, ligadas entre si por vínculos de raça e religião, constituindo uma confederação. Essas cidades, construídas em lugares naturalmente bem protegidos ou circundados de muros defensivos, foram importantes centros de comércio, graças sobretudo à habilidade de seus artesãos. Trabalhando o ferro, o cobre, o zinco e o estanho encontrados nas ricas minas de seu subsolo os etruscos dominaram o comércio de armas e de artefatos de metal, mantendo ativo intercâmbio com as colônias fenícias, particularmente Cartago, com a Itália do sul, a Sicília e a Grécia.

* A religião dos etruscos. Revelava aparentemente uma origem oriental, com regras de rito tão complexas que só podiam ser entendidas pelos sacerdotes. Aos sacerdotes também cabia interpretar a vontade dos deuses, examinando os fenômenos da natureza e o vôo dos pássaros, tarefa dos áugures, ou as entranhas dos animais, tarefa dos arúspices.


Músicos. Tumba dei Leopardi, Tarquínia, 500 a.C. Artista desconhecido

Os etruscos, acreditando na vida do além-túmulo, construíram grandes necrópoles, cidade dos mortos onde eram enterrados com seus pertences pessoais em túmulos simples ou em câmaras mortuárias subterrâneas, decoradas com afrescos e baixos-relevos, representando os prazeres da vida.


Cena de simpósio em tumba etrusca. Artistas desconhecidos

* A arte etrusca. A arte dos etruscos foi bastante original, de grande beleza e expressão da realidade, sobretudo nas pinturas e na escultura. Na arquitetura empregaram processos de construção característicos do Oriente, mais tarde largamente utilizados também pelos romanos: o arco (em pontes e arcos de triunfo) e a abóbada.

Músico etrusco. Tumba da necrópole de Triclinium, Tarquínia, 480 a.C. Artistas desconhecidos

Foram os romanos os maiores herdeiros da cultura etrusca. Sua arte e sua religião, sobretudo, estão na base da religião e da arte de Roma; e a influência da civilização etrusca continuou viva, mesmo quando a Etrúria desapareceu politicamente, absorvida pelo Império Romano em expansão.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p.45-47.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O conhecimento sobre a mulher produzido pela Igreja medieval

A doutrina da Igreja medieval sobre o casamento estava assentada sobre um saber produzido pelos seus membros ao longo da história da instituição.


Mulher engravida do próprio irmão. Iluminura medieval

A renovação católica iniciada com o papa Urbano II, no final do século XI, produziu uma atualização dos discursos sobre a mulher. Do final do século XII ao final do século XV os textos que tratavam da mulher, do casamento e da sexualidade se multiplicaram. Isso revelava a necessidade que os homens da Igreja sentiram de impor valores e modelos de comportamento à mulher.


Mulher tem três filhos do próprio tio. Iluminura medieval

Na nova economia que se esboçava nessa época, principalmente com o crescimento do comércio e da vida urbana, as mulheres participavam como produtoras e vendedoras de bens, mas a concepção de seus papéis - como os de mães, filhas e esposas - continuava imutável. Definir claramente esses papéis foi um dos objetivos principais dos homens da Igreja. Eles estavam empenhados em restituir a palavra de Deus, vale dizer, a autoridade do clero, onde ela se achava ameaçada. Uma forma de ociosidade intelectual e moral, que emanava principalmente das cidades, preocupava os pregadores.


Mulher engravida do eremita. Iluminura medieval

Os autores desses discursos sobre e para as mulheres são, principalmente, os homens da Igreja, mas não se identifica claramente quem são as destinatárias (as camponesas ou as habitantes da cidade). Aparentemente esses discursos são dirigidos a todas as mulheres, não importando a posição social, mas nota-se um esforço de classificação ao qual não estavam acostumados. Houve, portanto, uma passagem dos discursos à mulher para os dirigidos às mulheres.


Abadessa entrega criança após o parto. Iluminura medieval

A tentativa de classificação oscilava entre a categoria social, o tipo de atividade, a idade, entre outros requisitos. Assim temos as virgens, as casadas e as viúvas; as esposas e as mães; as monjas e as servas; as moças, as mulheres jovens, as de meia-idade e as velhas; as mulheres pobres e as meretrizes.


Mulher com criança amaldiçoada. Iluminura medieval

Os discursos têm como eixo a oposição entre o que as mulheres eram e o que elas deveriam ser. Não podemos esquecer que são discursos de clérigos. Além de serem homens discutindo sobre a condição feminina, eram também homens que estavam submetidos às regras do celibato e da castidade. Tendiam a ser tanto mais severos na censura da sexualidade, principalmente da feminina, quanto mais dela estivessem apartados.


Na Idade Média, acreditava-se na explicação religiosa para a criação da mulher, ou seja, que ela teria sido criada por Deus a partir de uma costela de Adão. Iluminura do século XIV

As mulheres das categorias sociais superiores seriam portadoras, ou deveriam ser, de valores mais elevados. Esperava-se que elas servissem de exemplo para as camadas subalternas e tomassem consciência dos seus altos deveres como nobres. As mulheres pertencentes às classes mais baixas foram vítimas das principais condenações morais nestes discursos.


Iluminura do século XV mostra mulher nobre escrevendo. Independentemente da categoria social, o espaço da mulher é o doméstico

Quando a mulher é referida sem a identificação do grupo social a qual pertence, aparece como uma criatura de extremos entre o bem e o mal: é a filha de Eva ou a virgem que imita Maria.


Tortura: queima de bruxas e prisioneiras. Miniatura do século XIV.

Mas, independentemente da categoria social, o espaço da mulher é o doméstico. A única que não pertence a ele é a meretriz, a qual só resta o arrependimento e a penitência.


Funeral de Anne de Bohemia. Miniatura. Cerca de 1483

Os textos mais impressionantes são os que falam sobre as mulheres e não para elas. Eles demonstram claramente o grande medo que elas despertavam. O medo da mulher é uma das principais características do pensamento medieval. Ele demandava por parte dos homens a imposição de um severo controle sobre as mulheres. Controlá-las e castigá-las era uma tarefa dos homens.


História de amor sem palavras. Jean Louise observa em um jardim. Miniatura do século XVI

Como há um predomínio do espírito sobre a carne, a pureza seria mais de pensamento do que do corpo, mas, na hierarquia da castidade, a virgem de corpo tem a primazia. Foram estabelecidos, então, três graus possíveis de castidade, de virtude e de perfeição. O ideal de mulher é a virgem que renuncia para sempre ao sexo. As viúvas que renunciam a ele por haverem perdido o marido e não se casam estão em um segundo plano. As casadas, que usam o sexo de forma casta e parcimoniosa com a finalidade de procriação, estão em terceiro lugar na escala dos méritos. A castidade vale mais do que a continência.


Casamento de Charles IV e Marie Luxemburgo. Miniatura, cerca de 1400

O convívio social seria, portanto, nocivo, pois faria a mulher perder a timidez que a protege dos homens. Ela seria semelhante a um animal selvagem que, ao se acostumar com a presença do homem, se deixa acariciar.


Mulheres caçando. Miniatura

A anatomia medieval confirmava o juízo depreciativo dos homens da Igreja em relação à mulher. A fisiologia da mulher foi objeto de longos debates. A conclusão era a de que ela trazia no próprio corpo as marcas da sua inferioridade, quando não dos seus malefícios.


Nascimento de Louis VIII. Miniatura

O Gênesis é citado para mostrar que a mulher seria um ser secundário, um apêndice do homem. Os órgãos femininos seriam menos aperfeiçoados e fracos, de certa maneira opostos aos masculinos. O corpo da mulher, portanto, foi submetido ao modelo masculino, e os seus órgãos classificados segundo o princípio de finalidade. Os seios, por exemplo, eram vistos apenas pela sua finalidade de aleitamento.

A mulher seria um tesouro a ser protegido e preservado, pois seria fácil de se perder. Daí a necessidade de reprimir, vigiar e enclausurar.

As mulheres que desejavam roupas cada vez mais formosas e caras preocupavam os pregadores. Esse cuidado com a aparência e com o corpo se aproximava da idolatria. A maquiagem e os adornos foram sistematicamente condenados.

Apesar de afirmarem que a mulher deve ser custodiada, os pregadores apelavam para o autocontrole da mulher. Aconselhavam-na a não se divertir muito, a mostrar-se desdenhosa, comer pouco, dançar com compostura e mover-se com moderação. Alertavam para o perigo da bebida e do ócio. Contra as tentações, prescreviam o trabalho e a caridade.

PEDRO, Antonio; SOUZA LIMA, Lizânias de. História sempre presente. São Paulo: FTD, 2010. p. 307-308. V. 1.

sábado, 7 de julho de 2012

Atividades agrícolas na América indígena


A agricultura intensiva desenvolveu-se nas regiões montanhosas do México e nos Andes centrais ao longo dos 3 mil anos anteriores à conquista espanhola. Tudo indica que essa atividade agrícola conheceu o seu apogeu no período compreendido entre 1200 e 1500, através da formação do "Estado" asteca (centralizado no vale do México) e do "Império" inca, no Peru. A tecnologia e produtividade desenvolvidas por essas duas civilizações culminaram com o estabelecimento de uma sofisticada agricultura intensiva de mão-de-obra responsável pela produção do milho, como principal gênero alimentício (nas regiões mais elevadas do Peru e Bolívia, a batata) e de colheitas auxiliares, favas, abóbora, tomate e pimenta-malagueta. Os hábeis agricultores do Vale do México superavam as desvantagens decorrentes de precipitações pluviométricas insuficientes e instáveis utilizando a água proveniente do degelo das neves nas montanhas e maximizando as amplas bacias naturais formadas pela interligação dos lagos; no Peru, os agricultores utilizavam os rios dos vales montanhosos e os cursos de água que percorrem os vales ao longo da árida costa do Pacífico. Empregou-se a água para fins agrícolas por meio de canais de irrigação que, em turnos, demandavam elevados insumos de mão-de-obra na construção de eirados, frequentemente em vales de declives fortemente marcados, e na construção e manutenção de canais. Observadores espanhóis do século XVI ficaram profundamente impressionados pela habilidade em engenharia demonstrada pelos povos dos Andes centrais, da mesma forma que agrônomos do século XX impressionaram-se com a evidência arqueológica de técnicas de mudanças de cursos de água, de vale a vale, postas em prática na era anterior à conquista. No vale do México, observadores espanhóis maravilharam-se com o sistema de diques criados e mantidos de modo a não permitir que a água salobra penetrasse nas áreas de água doce e de agricultura chinampa intensiva.

Uma economia agrícola assim estabelecida certamente favorecia o crescimento demográfico. Nos Andes centrais, a população ameríndia pode ter alcançado cifras entre 3,5 e 6 (10, segundo alguns) milhões de habitantes, por volta de 1525. Para o México central, a análise demográfica recente sugere um contingente populacional em torno de 25 milhões de habitantes (1519). No milênio anterior a 1500, o crescimento populacional periodicamente pressionava em busca de maiores quantidades de alimentos, gerando conflitos inter-regionais e a conquista e consolidação das comunidades agrícolas sob a forma de blocos, blocos esses que acabariam por criar expressões culturais próprias, na arquitetura, nos centros administrativos e cerimoniais urbanos, na cerâmica, na tecelagem e escultura, em métodos de contagem do tempo, em práticas religiosas. Os colapsos periódicos, experimentados por essas civilizações de regadio, eram seguidos pela difusão de sua cultura material e intelectual e pelo seu reaparecimento em padrões subsequentes, forjados por novos centros culturais.

A sofisticação agrícola refletia-se na crescente estratificação, isto é, na formação de hierarquias: nobreza, soldados e elite religiosa, um grupo de comerciantes e hábeis artesãos voltados para a produção de bens orientados pela demanda da elite, e a grande massa de agricultores. A expansão de uma comunidade às expensas das vizinhas, o estabelecimento da hegemonia sob a forma de pagamento de um tributo anual ou de incorporação a um império integrado explicitavam o exercício de pressões sobre os agricultores situados na base da economia e da sociedade, pressões essas responsáveis pela eclosão periódica de revoltas por vezes bem-sucedidas. No século anterior à conquista, as civilizações de regadio encontradas pelos espanhóis no Vale do México e nos Andes centrais achavam-se dominadas por uma elite militarista, expansionista e cruel face aos dissidentes, dentro e fora dessas sociedades. Os astecas adotavam a prática de periodicamente submeter áreas dependentes recalcitrantes através de expedições militares encarregadas da imposição (ou do reforçamento) de tributos; por seu turno, a elite inca simplesmente desmantelava as comunidades rebeldes e forçava o seu restabelecimento em outras áreas sujeitas a controle mais eficiente. Os padrões de expansionismo e militarismo, os indícios de estratificação social, as tentativas das elites visando mobilizar e se apropriar de excedentes econômicos de seus povos (e de outros, submetidos) levam-nos a crer que, no momento em que se inicia a conquista da América Central e do Sul, a tecnologia agrícola atingira o seu limite máximo e, como ocorrera no passado, amplos aglomerados de comunidades achavam-se a ponto de se desintegrarem e se reunirem em novas comunidades, decorrência lógica da expansão demográfica e de uma produção agrícola inelástica.

STANLEY, J. S.; STEIN, B. A herança colonial da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 34-35.