"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Washington, a capital dos Estados Unidos e as multidões

[...] Washington foi construída para receber multidões, com suas longas avenidas e ruas espalhadas num grid quase perfeito. Uma cidade idealizada para ser democrática -e, no entanto, avessa as multidões. Nervosa com multidões: quer controlar, guiar, conter sua força, domar. Em 1836, a Câmara chegou a proibir qualquer protesto contra a escravidão em suas cercanias. A lei contra protestos não durou muito, mas os líderes do Exército de Coxey (militar que lutou na Guerra de Secessão) não tiveram muita sorte em 1894. Não podiam ser presos por protestar contra o desemprego, então foram para a cadeia por pisar na grama.

São negros quase todos os que estão na rua neste dia da posse presidencial. [...]


Martin Luther King discursa durante a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade

Os primeiros negros de Washington eram homens livres. Chegaram mais ou menos na época em que Jefferson era presidente. Haviam sido escravos nos estados vizinhos, mas lutaram na Guerra de Independência e garantiram sua liberdade. [...]

As primeiras comunidades negras de classe média dos EUA surgiram em Washington. Um dos gigantes do jazz, Duke Ellington, é da capital e sugeria que do burburinho cultural negro de lá veio sua maior influência. Em 1867, apenas dois anos após o fim da Guerra Civil entre norte e sul pela abolição, nasceu Howard, a primeira universidade que aceitava alunos negros na terra dos escravos. [...]

Washington foi a primeira grande cidade americana a ter mais negros do que brancos. A primeira cidade do sul a abolir a escravatura. E, ainda assim, em 1925, 35 mil racistas mascarados, vestidos com mantos brancos e chapéus de ponta, marcharam pelas ruas da cidade. Era a maior multidão jamais vista na cidade até então.

Estes não foram presos. [...]

Em 1954, a Suprema Corte proibiu a segregação oficial em todas as escolas públicas da cidade na esperança de que o exemplo se espalhasse. Não se espalhou.

O recorde da passeata da Ku Klux Klan em 1925 só foi batido em 28 de agosto de 1963, quando 250 mil homens, mulheres e crianças chegaram para a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade. Eram negros. Queriam o fim da segregação legal. Queriam reservas de mercado. Nas semanas anteriores, a nação entrou em debate. Mesmo partidários do movimento criticavam a marcha - ela atrapalharia o governo em seus esforços pelos direitos civis. [...]

Os líderes da marcha estavam dentro do Capitólio, negociando com deputados, quando a multidão, descontrolada como multidões costumam ser, decidiu sair caminhando. [...] Martin Luther King teve de descer às pressas a escadaria (do Capitólio) e pegar um carro para alcançar seu público. "Eu tive um sonho", ele disse, "sonhei que um dia este país viverá seu ideal tal qual redigido em sua declaração de independência: temos esta verdade por evidente, que todos os homens são iguais" [...].

A multidão de 2009 também não tem paciência [...].

A multidão, ombro a ombro. Um passo para o lado faz a diferença entre conseguir enxergar o telão ou ter uma árvore à frente, a cabeça de uma criança no ombro do pai. Ninguém se move. [...]

O presidente eleito dos Estados Unidos chega. Ovação. E aí, novamente, silêncio. A presidente da Câmara chama Barack Hussein Obama ao centro. O  presidente caminha. [...]


Posse do presidente Barack Hussein Obama

A multidão começa a ir embora. Não espera o discurso. Os rostos cansados. São, na esmagadora maioria, negros. Esperaram muito. Não precisam mais de discurso, ouviram tantos. Agora, aconteceu. Podem voltar para casa.

DORIA, Pedro. O Estado de S. Paulo, 2009

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