"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 31 de maio de 2011

Neonazismo e xenofobia na Europa

Pichação neonazista em cemitério judeu.
A incitação ao ódio e à violência racial vai virar crime na Europa

“Falando como cidadão e não apenas como historiador, [...] estou [...] preocupado com a junção de tantos movimentos turvos do passado em um só. [Atualmente], estamos confrontados com um problema gravíssimo, que diz respeito às relações entre democracia e ditadura. Receio, num futuro próximo, as ameaças dos totalitarismos e dos racismos. Ainda que o estudo do movimento da história possa me confortar, me tranqüilizar quanto à sua evolução. (Jacques le Goff, historiador francês)

Na semana passada, a Procuradoria-Geral de Dresden mandou apreender cerca de 150 cópias da revista "estudantil" Perplex, que promove a discriminação e exalta o nazismo. A ofensiva começou com a distribuição de CDs de rock neonazista para alunos de escolas da Saxônias, na Alemanha.

Esses são os exemplos mais recentes da campanha de marketing da extrema direita alemã, organizada sob o partido Nacional-Democrata alemão, o NPD. O público-alvo são estudantes das escolas de todo o país, mas principalmente na ex-Alemanha oriental.

À primeira vista, Perplex pode parecer uma "revista estudantil" qualquer, com palavras-cruzadas e outros jogos em páginas coloridas. No entanto, disfarçada na publicação está a mensagem de transformar as escolas em "zonas nacionais livres".

A revista "informa" aos estudantes também que o líder nazista Adolf Hitler foi um "emissário da paz durante a Segunda Guerra Mundial", ao contrário dos Aliados, apresentados como "agentes da guerra". Além disso, a publicação promove "preconceitos contra professores e colegas estrangeiros", segundo a Procuradoria.

Esse conteúdo foi suficiente para as autoridades de Dresden considerarem a publicação "perigosa para os jovens" e mandarem apreendê-la, já que ela violaria as leis do país.

Na última quinta-feira, a polícia impediu a distribuição de cerca de 150 exemplares que estavam em mãos de correligionários do NPD. O procurador geral, Jurgen Schäir, abriu um inquérito contra os responsáveis pela publicação, um grupo que se intitula "Jovens Nacionais-Democratas da Saxônia".

De acordo com a revista alemã Spiegel, a campanha de marketing nas escolas alemãs não se limita à Saxônia: em Berlim, o "jornal estudantil" de direita Der Stachel já tem uma tiragem de 40 mil exemplares.

Na cidade vizinha de Brandenburg, a publicação tira 10 mil cópias. Em outros Estados da Alemanha, existem jornais semelhantes. Desde 2005, regularmente o NPD distribui em escolas CDs de rock neonazista, com temas que normalmente exaltam a pátria e divulgam mensagens de ódio racial e nacionalista.

Para combater a ofensiva neonazista, os governos estaduais têm lançado diversas campanhas de informação, de acordo com a Spiegel, além de inquéritos como o aberto na semana passada em Dresden.

A chanceler alemã, Angela Merkel, também está sob intensa pressão no país para tornar ilegal o partido NPD, desde o mês passado, quando um grupo de feirantes indianos foi espancado por neonazistas na Saxônia.

Do ponto de vista legal, os ministros do Interior e da Justiça dos países da União Europeia chegaram a um acordo para transformar a incitação ao racismo em crime em todo o bloco europeu.

No entanto, a expectativa de aprovação de uma proibição total à negação de qualquer genocídio reconhecido por tribunais internacionais, incluindo o Holocausto, não se confirmou.

O acordo determina que negar genocídios deve ser considerado uma infração da lei apenas se o resultado disso for a incitação à violência ou ao ódio. O projeto prevê ainda que quem incentivar a violência contra indivíduos devido à origem étnica, nacional, racial ou religiosa estará sujeito a penas que variam entre um e três anos de prisão.

O acordo foi aprovado por consenso, mas reserva a cada país do bloco o direito de limitar as punições, casos esses tipos de manifestações sejam permitidos por leis nacionais de liberdade de expressão.

Os governos nacionais também terão autonomia para decidir por punir ou não expressões racistas ou xenófobas que não incitem a violência. Antes de a lei ser adotada pelo bloco, alguns países ainda terão que submetê-la à aprovação parlamentar e, a partir de então, terão dois anos para incluí-la na legislação nacional.

Em alguns países da União Europeia como França, Alemanha e Bélgica, negar o Holocausto já é considerado um delito. Essa é a primeira vez que os 27 países-membros da União Europeia chegam a um acordo desse tipo. O consenso só foi possível depois de seis anos de discussões e polêmicas. A Alemanha queria que o texto fosse mais explícito na referência ao nazismo e que os símbolos nazistas fossem proibidos em toda a Europa. Por outro lado, os países bálticos insistiam em que o acordo deveria englobar também os crimes stalinistas.

Por fim, os ministros do Interior e Justiça da União Europeia concordaram com um texto mais leve, a fim de evitar o risco de desestimular a produção de filmes e pesquisas sobre casos de genocídio.

"Conseguimos unir o respeito à liberdade de expressão e o castigo a qualquer ação criminosa, não a ideias. Castigaremos atos, comportamentos, incitações a ofensas ou a matar de um modo concreto", afirmou o comissário do Interior e Justiça, Franco Frattini.

Disponível no site da BBC News. Europa chega a acordo para punir incitação ao racismo.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Movimentos sociais conectados: o MST e o Exército Zapatista

Marcha revolucionária, Siqueiros

O protagonismo social e político dos movimentos sociais na América Latina ganhou uma nova forma de expressão com a utilização da internet como aliada e ferramenta de luta. Dois movimentos sociais fazem uso da rede mundial de computadores como arma estratégica: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, e o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), no México.

MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Brasil)

EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional, México)

Por meio do uso da Internet, esses dois protagonistas disponibilizam informações divulgando a "sua versão" dos fatos e dos objetivos da sua luta, na tentativa de construir novos canais para uma nova sociabilidade. Na construção do discurso dos sites "oficiais" dos dois movimentos foram desenvolvidas e utilizadas uma nova visão e uma nova representação das maneiras dos integrantes desses movimentos sociais lutarem por seus objetivos. Muitas vezes, esses sites - e todo o seu conteúdo - funcionam como principal instrumento de comunicação e como arma estratégica na elaboração das agendas dos movimentos sociais da atualidade. Funcionam ainda como contraponto ao discurso construído pelos meios de comunicação acerca das suas identidades. A construção de novos discursos que geram impactos na sociedade e se transformam em notícia é uma preocupação permanente da maioria dos movimentos sociais da atualidade, pois essa é uma maneira de legitimar suas ações e construir suas identidades.

Além disso, esses dois movimentos passaram a atuar em rede entre si e com outros atores sociais e construíram uma forma de luta, coordenando e conduzindo suas ações com o uso da Internet. Foram capazes de criar novas oportunidades de se apresentar ao mundo, de legitimar as ações, de divulgar as demandas pelas quais lutam, de pressionar os meios de comunicação tradicionais a noticiarem com menos parcialidade fatos ligados a eles e de eles próprios noticiarem fatos ligados às suas lutas.

O cotejo entre o discurso do MST e do EZLN mostrou que os dois movimentos sociais utilizam maneiras diferentes para atingir a sociedade por meio da rede mundial de computadores. O discurso emancipatório dos movimentos sociais, agora veiculado também pela internet, representa uma nova maneira de lutar pela mudança social. Enquanto os zapatistas preferem uma linguagem muito mais poética e metafórica, que resgata elementos da linguagem indígena dos Chiapas, mas que, mesmo assim, é simples e transparente, o MST investe na objetividade e em textos jornalísticos para alcançar o internauta. Numa época em que a linguagem adquiriu evidência e centralidade na constituição, manutenção e desenvolvimento das nossas sociedades, os sites dos movimentos se tornaram verdadeiros cartões de visita, apresentando e divulgando a bandeira de luta do movimento, seja pela realização da reforma agrária, seja por justiça social e por democracia. Graças à internet, eles obtêm visibilidade pública e angariam simpatizantes que se tornam adeptos das suas bandeiras de luta e apoiam suas causas.




Dessa forma, aprenderam a utilizar a internet como ferramenta para criar novas conexões que buscam diminuir as fronteiras entre eles e a sociedade, vinculando a sua luta particular a uma luta maior contra as velhas e as novas formas de dominação.

ORRICO, Neblina. "Movimentos sociais conectados: o MST e o Exército Zapatista", períodico Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2009.

domingo, 29 de maio de 2011

Revolução Neolítica: uma nova relação homem-natureza

Revolução Neolítica: uma nova relação homem-natureza

Texto 1
"Durante todas as prolongadas Épocas Glaciárias, o homem não realizara nenhuma modificação fundamental em sua atitude para com a natureza exterior. Limitava-se a colher o que lhe era possível conseguir, embora tivesse aperfeiçoado muito os métodos de coleta e aprendido a selecionar o que colhia.

Pouco depois do término das Épocas Glaciárias, a atitude do homem (ou melhor, de umas poucas comunidades) em relação ao ambiente sofria uma transformação radical, com consequências revolucionárias para a totalidade da espécie. (...) O homem começou a controlar a natureza, ou pelo menos conseguiu controlá-la cooperando com ela.

Os passos pelos quais esse controle se efetivou foram gradativos, e seus efeitos, cumulativos. Mas entre eles podemos distinguir alguns que se destacam como revoluções. A primeira revolução que transformou a economia humana deu ao homem o controle sobre o abastecimento de sua alimentação. O homem começou a plantar, cultivar e aperfeiçoar, pela seleção, as ervas, raízes e árvores comestíveis. E conseguiu domesticar e colocar sob sua dependência certas espécies de animais, em troca de alimento, de proteção que podia oferecer. (...)

Como revolução, a adoção de uma economia produtora de alimentos influiu na vida de todos os interessados, refletindo-se na curva populacional. É claro que não existem 'estatísticas vitais' para provar que esse possível aumento de população tenha ocorrido realmente. Mas é fácil ver que assim foi. A comunidade dos coletores de alimentos havia sido limitada, no tamanho, pelo abastecimento de alimento existente - pelo número de animais de caça, do peixe, das raízes comestíveis e das frutas que cresciam em seu território.

Nenhum esforço humano podia aumentar esse suprimento, qualquer que fosse a opinião dos mágicos. Na verdade, os melhoramentos na técnica ou intensificação da caça e coleta, além de um determinado ponto, resultam no extermínio progressivo da caça e numa diminuição absoluta do suprimento. E, na prática, as populações caçadoras parecem ajustar-se perfeitamente aos recursos de que dispunham. O cultivo do alimento derruba imediatamente os limites até então impostos. Para aumentar o abastecimento, basta semear mais e colocar mais terra em uso. Se houver mais bocas a alimentar, haverá também maior número de mãos para cuidar dos campos." CHILDE, Gordon. A Evolução Cultural do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1966. p. 77-80.

Texto 2
"Quando, ainda na Pré-história, o homem trocou a vida nômade pela vida em pequenas aldeias, aprendeu a acolher e domesticar pequenos animais, iniciando-se na vida pastoril. Dispunha, então, de carne, leite, tirava manteiga, coalhava o leite, fazia queijo, fiava a lã, tecia agasalhos. (...)

Com o desenvolvimento da inteligência, o Homo faber passou ao artesanato e descobriu como guardar e conservar os alimentos. Da pedra polida fez instrumentos de caça e objetos domésticos, moldou o barro e endureceu-o na brasa, fazendo tijolos, figuras de divindades e vasilhames. (...)

Entre duas pedras moeu o grão, fez a farinha, amassou o pão e assou-o no forno. Fermentou a cevada e fez a cerveja. (...) Com os progressos dessa chamada Revolução Neolítica fundiu o bronze, o cobre, o ouro. O crescimento demográfico obrigou o Homo economicus a descobrir novas técnicas de produzir e conservar alimentos." ORNELLAS, Lieselotte Hoeschtl. A alimentação através dos tempos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003.

Texto 3
"Continuamos ainda a ignorar quando e como é que os rebanhos deixaram de ser propriedade comum da tribo e passaram a pertencer aos diferentes chefes de família. Com o aparecimento dos rebanhos e outras riquezas novas, aconteceu uma revolução na família.

Os rebanhos eram uma nova fonte de alimentos e utilidades. A sua domesticação e a sua criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias que obtinha em troca dele. Todo excedente, isto é, o que era produzido além do necessário à subsistência, pertencia ao homem. A mulher participava no consumo, mas não na propriedade.

O 'selvagem' - guerreiro e caçador - tinha se conformado com o segundo lugar que ocupara. O pastor, envaidecido com a riqueza, tomou o primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo plano. O trabalho doméstico da mulher perdia agora a sua importância, comparado com o trabalho produtivo do homem. Esse trabalho passou a ser tudo; aquele (o da mulher), uma insignificante contribuição." ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Global, 1984. p. 217-218. Adaptado.

Texto 4
"As civilizações históricas do Oriente Próximo se centralizaram sobre os grandes rios: Eufrates e Tigre, Nilo e, um pouco mais tarde, o Indo. Mas a arqueologia, apoiada pela verificação do carbono radioativo, deixa claro que as fases antecedentes, testemunhas da gênese da agricultura, metalurgia, aldeamento urbano e de uma complexa hierarquia social, ocorreram antes em alguma outra parte.

O nascimento da agricultura e as origens da vida fixa no Oriente Próximo ocorreram em algum ponto entre a zona que se estende da Palestina, Síria, norte do Iraque e Irã (...). Enquanto as terras aluviais tinham um clima árido e necessitavam da irrigação para se tornarem férteis, os territórios altos gozavam de uma precipitação que hoje excede a 40 cm por ano, e mesmo nos períodos mais secos devem ter sido relativamente mais favoráveis aos agricultores primitivos.

Além disso, foi precisamente nesses últimos territórios que os protótipos das colheitas e das criações relevantes floresciam, em estado selvagem. Pelo menos, tal ocorreu com o Triticum dicoccoides e o Hordeum spontaneum, pais respectivamente do trigo e da cevada, os dois cereais que dominavam a agricultura dessa zona, ambos encontrados em estado selvagem nessas regiões, ainda hoje. Não há indícios de que nenhum deles existisse no Egito antes de serem ali introduzidos pelo homem (...).

Somente quando o avanço social estava relativamente adiantado é que a ocupação dos territórios aluviais, com a irrigação do solo e importação total de matérias-primas básicas, tornou-se possível pela primeira vez." CLARK, Grahame. A Pré-História. Rio de Janeiro: Zahar, 1962. p. 82-83.

O encontro entre culturas e a resistência indígena


"Lendo as cartas dos jesuítas dirigidas aos seus superiores na Europa, podemos notar a preocupação que tinham em mudar os hábitos indígenas. 

O padre Nóbrega, que veio com o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza (em 1548), diz:

'A lei que lhes hão de dar é defender-lhes de comer carne humana e guerrear sem licença do governador, fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois têm muito algodão, ao menos depois dos cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos: fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre os cristãos [...]'

É claro que o padre Nóbrega acreditava estar fazendo o melhor para os índios, trazendo-lhes aquilo que considerava ideal para qualquer povo. Mas todos os hábitos mencionados na carta faziam parte da cultura indígena e, portanto, a mudança deles significaria a destruição do seu modo de vida e da sua identidade enquanto povo.

Para entender melhor essa situação, imagine se, de repente, sofrêssemos uma invasão de outros povos e tivéssemos que aprender a falar uma outra língua, abandonar certos costumes, como jogar futebol ou dançar no Carnaval, para fazer coisas que não tivessem nenhum significado e que nenhum brasileiro compreendesse. [...]

É importante notar que houve reação por parte dos indígenas. Assim que passou o momento de surpresa entre a chegada daqueles homens diferentes que vinham do mar e logo que os índios perceberam a intenção de dominar dos europeus, a resistência começou a se dar.

A união de tribos em confederações para guerrear contra os europeus e o ataque constante [...] foram fatos habituais daquele período. Entretanto não foram suficientes para impedir a conquista [...]

No Brasil, os conhecimentos indígenas, tão úteis aos europeus durante o primeiro contato, não foram valorizados durante a colonização, período em que os nativos eram vistos apenas como seres ignorantes e infiéis. Também são pouco reconhecidos na atualidade os hábitos e costumes indígenas que foram incorporados a nossa cultura, como, por exemplo, a forma de plantar e preparar certos alimentos.

Desde o início algumas pessoas se mostraram contra a crueldade a que os índios eram submetidos e com os seus direitos. Muita coisa mudou até os nossos dias em relação aos direitos indígenas. Mas essa é uma luta que continua, pois ainda hoje as tribos sobreviventes continuam envolvidas em questões de posse de terra e das riquezas nela contidas.

A dificuldade de olhar o diferente continua existindo até hoje. A referência para avaliar o outro tende a ser o que nós somos. Conhecer os usos e os costumes de vários povos, comparar uns com os outros pode-nos ajudar a entender que as culturas não devem ser julgadas melhores ou piores, mas que apenas são diferentes.


A gravura acima, de Théodore de Bry, refere-se aos hábitos alimentares de índios na Bahia, e foi feita com base nas descrições do aventureiro alemão Aldenburg, que aqui esteve a serviço dos holandeses. Observe que a imagem foi construída do ponto de vista europeu.

A grande aventura que se pode viver através da história é perceber a diversidade cultural existente no mundo."

SCATAMACCHIA, Maria C. Mineiro. O encontro entre culturas. São Paulo: Atual, 1994. p. 38-40.

sábado, 21 de maio de 2011

Cancion por la unidad de Latino America (ou, Quem tem medo da História?)

"Manifestação", Berni

A História anda mal contada entre muitos estudantes. Acham que ela "não serve para nada", que "parece um faroeste: de um lado os mocinhos, de outro os bandidos", "só se interessa pelo passado", "é matéria pra dar uma lida rápida, decorar e esquecer..."

Descontados os exageros naturais, esses comentários têm sua razão de ser. O ensino da História há muito vem sendo criticado pelos próprios professores e historiadores e por todos os que se ocupam do assunto. Essas pessoas têm advertido  com frequência para o fato de que somos um país sem memória, que não respeita suas tradições, não preserva seu patrimônio cultural e tem uma cultura histórica de fazer chorar. "De quinze em quinze anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos quinze anos", afirmou, perplexo, na década de 1970 o jornalista Ivan Lessa.

[...]

E quem garante que a História
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória?

(Cancion por la unidad de Latino America, Chico Buarque de Hollanda e Pablo Milanez)

[...]

Questionamentos e lembranças são vitais para se reduzir o grande desencontro entre a História e o povo brasileiro. Diminuir esse abismo é necessário para compreendermos melhor (e até mudar) o país em que vivemos. Quais as razões deste desencontro, que afeta especialmente os estudantes, um segmento da sociedade particularmente interessado em conhecer a verdade?

Uma das principais razões é que durante muito tempo nossa História foi mal contada e nossa memória mal preservada. Boa parte dos nossos antigos historiadores, influenciada pela ideologia do colonizador e ligada às classes dominantes do seu tempo, interpretou com noções conservadoras, elitistas e preconceituosas a realidade brasileira e latino-americana em geral.

Elitismo e preconceito em relação aos índios, negros, operários, sertanejos, colonos imigrantes - a todos aqueles, enfim, que foram "escalados" para participar da vida social apenas com o trabalho braçal. E conservadorismo em relação a praticamente tudo que pudesse significar a mudança da estrutura social.

Ao tratar a História como matéria destinada essencialmente a glorificar acontecimentos e personagens, esses historiadores difundiram a ideia de que o papel da História era transmitir aos jovens os "bons exemplos" legados pelos "heróis nacionais", o que deveria ser feito através, basicamente, da memorização dos grandes feitos das elites dominantes. A velha História limitava-se assim a exaltar e a justificar a supremacia dos poderosos, ao passo que desvalorizava e até omitia a presença das classes e grupos sociais dominados. Era uma História que não fazia menção a desigualdades, injustiças e conflitos sociais. Uma História, enfim, sem povo ativo e criativo: de um lado (é o faroeste!), havia os "heróis da pátria"; de outro, estava um povo, ora passivo (portanto ausente da cena histórica), ora "desordeiro", povo-bandido, uma mera perturbação na vida das elites.

Era inevitável que esta História, ao invés de ampliar o conhecimento dos brasileiros a respeito de si próprios, provocasse um distanciamento crescente entre si mesma e o povo. Esse último, em consequência, não se reconhece inteiramente na sua História, nem a valoriza como devia. A falta de consciência histórica somava-se, assim, a tantas outras faltas (de direitos, informação, saúde etc.), dificultando ou mesmo impedindo a consolidação em nosso país de uma cidadania plena.

Um bom exemplo disto é a incapacidade de grande parte do povo brasileiro para agir como sujeito da sua história até hoje, ou seja, como soberano, o que é um dos pré-requisitos básicos para haver democracia em qualquer país.

Mas a História (e o seu ensino) mudaram no Brasil nas últimas décadas. Hoje, os historiadores a consideram - tal como as demais "ciências" do homem: a Sociologia, a Antropologia, Ciência Política etc. - como um meio importante para se compreender e problematizar o processo de constituição e transformação das sociedades. [...]

[...]

Num país como o Brasil, de profundos contrastes e injustiças, entendemos o processo educativo, tal como propõem alguns de nossos melhores educadores, essencialmente como um ato de amor. [...]

Hoje, a meta principal da educação em História no Brasil não é buscar o "conteúdo crítico" (isto há muito já foi iniciado), nem "descobrir" as técnicas milagrosas de ensino e aprendizagem. Urgente é trilhar os caminhos que propiciem, antes de tudo, a identificação dos estudantes com a História do seu país. Esta, a nosso ver, a condição indispensável para que prosperem tanto o conhecimento, quanto o amor pelo que é ensinado, valores fundamentais no trabalho dos verdadeiros educadores, e que infelizmente andam em falta.

ALENCAR, Francisco et al. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. 

Ouça e reflita:


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Era do rock' n' roll: 1950-70

Movimento hippie

[Anos 60, a época que mudou o mundo] A década de 1960 foi marcada por guerras, pela emancipação política de países da Ásia e da África, pelo advento de movimentos civis de reivindicação e por uma grande mudança comportamental. Uma revolução que modificou a vida de várias gerações.

"Nessa época, Londres havia se tornado o centro das atenções, a viagem dos sonhos de qualquer jovem, a cidade da moda. Afinal, estavam lá, o grande fenômeno musical de todos os tempos, os Beatles. [...] No Brasil, a Jovem Guarda fazia sucesso na televisão e ditava moda. Wanderléa de minissaia, Roberto Carlos, de roupas coloridas e como na música, usava botinha sem meia e cabelo na testa (como os Beatles). A palavra de ordem era 'quero que vá tudo pro inferno'.

Os avanços na medicina, as viagens espaciais, o Concorde que viaja em velocidade superior à do som são exemplos de uma era de grande desenvolvimento tecnológico que transmitia uma imagem de modernidade. [...] Nesse contexto, nenhum movimento artístico causou maior impacto do que a Arte Pop. Artistas como Andy Warhol, Roy Lichtenstein e Robert Indiana usavam irreverência e ironia em seus trabalhos. Warhol usava imagens repetidas de símbolos populares da cultura norte-americana em seus quadros, como as latas de sopa Campbell, Elvis Presley e Marilyn Monroe. [...]

No final dos anos 60, de Londres, o reduto jovem mundial se transferiu para São Francisco (EUA), região portuária que recebia pessoas de todas as partes do mundo e também por isso berço do movimento hippie, que pregava a paz e o amor, através do poder da flor (flower power), do negro (black power), do gay (gay power) e da liberação da mulher (women's lib). Manifestações e palavras de ordem mobilizaram jovens em diversas partes do mundo.

A esse conjunto de manifestações que surgiram em diversos países, deu-se o nome de contracultura. Uma busca por um outro tipo de vida, underground, à margem do sistema oficial. [...]

Os 60 chegaram ao fim, coroados com a chegada do homem à Lua, em julho de 1969, e com um grande show de rock, o Woodstock Music & Art Fair, em agosto do mesmo ano, que reuniu cerca de 500 mil pessoas [...]". GARCIA, Claudia. Anos 60. A época que mudou o mundo. Disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br


[The Rock' n' Roll Era: 1950s - 70s] Rock' n' roll took the international music scene by storm. The phrase was coined in 1951 by Cleveland, Ohio disc jockey Alan Freed, whose radio show Moondog Rock' n' roll Party began broadcasting black music to white teenagers in that year. The same year brought the release of Ike Turner's "Rocket 88", the first rock' n' roll record, while the first jukebox playing 45 r.p.m. records appeared on the market. Within four years, the sale of 45 r.p.m. records had overtaken that of 78s.



The origins. Early rock' n' roll music was a fusion of rhythm and blues, soul, jazz, gospel music, and country and westerm. It took th youth of America by storm, bringing some of the immediacy and sexuality of socalled "race music" to the nations white heardlands and it epitomized the age-old rebellion of teenagers against their parents. With its solid rhythm, heavy beats, and defiant lyrics, the new music inspired new kinds of dancing and performing that survive to this day.

The first rock' n' roll stars included Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Little Richard, and Carl Perkins, and each new star brought a new twist to the evolving genre, whether it terms of showmanship or musical influence. In 1952, Sam Phillips founded the iconic Sun Records with the declaration: "If I could find a white man who sings with the Negro feel, I'll make a million dollars." Within the next year, rock' n' roll brightest star was born in Mississipi, when truck driver Elvis Presley made his first recordings in Phillip"s studio. Over the coming years, the Presley sensation rock the world by storm: from gospel ballads to pounding rock, between 1956 and 1963 his every record was a hit.


Elvis Presley: a photograph promoting the film Jailhouse Rock

New faces. The 1960s brought a new direction for rock' n' roll in America, with the likes of Smokey Robinson and the Miracles, the Temptations, and Diana Ross and the Supremes introducing what would become the "Motown" sound. Meanwhile, in the United Kingdon, Carl Perkins and Elvis inspired the coming together of perhaps the most famous four-piece act in the musical history: the Beatles. Theis fame soon spread beyond the British Isles, with first Europe then America falling for their innovative music, compelling stage personalities, and trend-setting haircuts. A spare of Beatles-influenced groups followed: the Searches, the Yardbirds, the Kinks, and the Rolling Stones.

Taking the genre back toward in rebbelious roots, the Rolling Stones put the "rock" into "rock' n' roll", bringing a dramatic new vigor and anger to the '60s musical scene.

By the end of the decade, musical recording techniques and the psychedelic influence of the swelling drug culture ushered in a spate of long, complex songs of an often abstract nature, from bands including the Doors, the Jimi Hendrix Experience, and the Grateful Dead. The Beatles, too, took this path, producing the landmark Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band album in the summer of 1967.

Throughtout the following decade, rock' n' roll continued to evolve, taking on influences from folk music, country music, and jazz music, culminating in the "new wave" music of the Clash, the Police, and Elvis Costello. COWPER, Marcus. History Book: an interactive journeyNational Geographic. Carlton Books Limited, 2010. p. 156-157.

Operação Condor / Mercosul do terror


Aspecto pouco conhecido da sociedade brasileira foi a Operação Condor, oficializada em 1975 e conhecida na Argentina como Mercosul do terror. Com a adesão do Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, estabelecia o compromisso de cooperação entre os órgãos de repressão desses países para a captura ou eliminação de opositores políticos dos regimes ditatoriais nos Estados signatários e baseados na Doutrina de Segurança Nacional, elaborada pelo National War College (Colégio Nacional de Guerra), em Washington, logo após a Segunda Guerra Mundial.

Os fundamentos da Doutrina de Segurança Nacional foram repassados aos militares latino-americanos que fizeram cursos na Zona do Canal do Panamá ou em fortes nos Estados Unidos. Esses fundamentos nortearam a criação dos Estados de Segurança Nacional dirigidos por ditaduras militares. Considerando que combatiam um inimigo comum - acusado de comunista -, os militares desses países permitiram que em seus territórios pudessem atuar agentes repressores para capturar os chamados subversivos ou comunistas.

Com essa integração militar repressiva, sucederam-se operações conjuntas de sequestros, torturas, prisões, fuzilamentos... Com a atuação desse verdadeiro sindicato internacional do terror, multiplicou-se a figura do desaparecido político: alguém que era sequestrado na rua ou em casa e desaparecia, anonimamente.

Segundo reportagem de O Globo, de 3 de janeiro de 1999,

"O general João Baptista de Figueiredo, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e que posteriormente se tornaria presidente do Brasil, foi um dos elementos vitais à coordenação da caçada aos opositores no Cone Sul."

A descoberta, no Paraguai, de centenas de documentos (cerca de duas toneladas) depositados nos chamados Arquivos do Terror, trouxe inúmeras certezas e conduziu a diversas questões polêmicas.

Comprovou-se que, efetivamente, houve estreita colaboração entre as comunidades de informação e segmentos das Forças Armadas do Brasil. Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai.

Essas operações envolveram espionagem, sequestros, torturas e assassinatos de exilados políticos, dentre os quais personalidades de expressão. Foi o caso de Orlando Letelier e Carlos Pratts, antigos ministros no governo de Salvador Allende, presidente socialista chileno.

Segundo depoimentos constantes em órgãos da imprensa brasileira, até mesmo as mortes de Juscelino Kubitschek e João Goulart, apresentaram indícios suspeitos, sendo levantada a hipótese de ambos terem sido assassinados. De acordo com o Jornal do Brasil, de 7/05/2000,

"a família do ex-presidente [JK] foi pressionada pelo SNI a não investigar as causas do acidente, usando como arma de pressão as páginas finais de seu diário, que relatavam um romance secreto de Juscelino e brigas com sua mulher, Sara [...]. Assim como a morte de Juscelino, a de Jango também está cercada de fatos nebulosos, como a não realização de autópsia [...]."

Além do mais, foi suspeito o comportamento das autoridades militares brasileiras que sequer permitiram a abertura do caixão onde estava o corpo de Jango.

"O caixão estava fechado. Não se permitiu, nem às irmãs, nem à viúva, nem às autoridades políticas, nem a ninguém que abrisse o caixão." (Pedro Simon, senador PMDB-RS, in: Jornal do Brasil, de 13/05/2000.)

Também veio à baila informação da presença de militares brasileiros nos golpes que levaram à deposição de Juan José Torres, na Bolívia (1971), e de Salvador Allende, no Chile (1973).

Depoimentos de antigos exilados brasileiros confirmam torturas e sequestros realizados por militares que falavam português, seja no Uruguai, seja na Argentina, seja no Chile. Assim aconteceu em 1973 com o ex-major do Exército Joaquim Pires Cerveira, sequestrado em Buenos Aires e visto pela última vez, com vida, em dependências do DOI-CODI-RJ.

Segundo documentos dos arquivos da polícia secreta paraguaia, no período de 1975 a 1979 funcionou em Manaus, no Amazonas, um centro de treinamento de agentes da repressão. No local, havia cursos de especialização em inteligência, inflitração, perseguição e tortura.

Sabe-se ainda, que, no Colégio Militar, em Belo Horizonte, presos políticos eram usados como cobaias em aulas de aprendizagem de tortura.

Deve ficar claro que a Operação Condor envolveu um conceito estratégico-chave: a defesa do hemisfério sem levar em conta fronteiras territoriais. Na verdade, houve a aplicação do conceito de existir apenas uma fronteira ideológica.

Diante de tantas vidas ceifadas brutalmente, lembrando práticas nazistas na Europa, vem-nos à memória um poema de Pedro Tierra.

"América, 
de tuas veias abertas
arrancarei meu ritmo:
grito de meninos traídos,
pássaros,
vulcões,
desertos,
ruas de medo, 
povos saqueados!

Na pele, a parede guarda
histórias inúteis,
massacres sem testemunhas.

A parede cerca
de silêncio
a dor do povo [...]

Golpeio a memória da terra.
Recolho o sangue dos esquecidos.
Com cravos escuros martelo
A margem da lembrança
Nos olhos vazados da América."

("Tempo subterrâneo", poema de Pedro Tierra, in: Poemas do povo da noite. São Paulo: Editorial Livramento, 1979. p. 117.)

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 794-797.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O tempo na sociedade industrial e no mundo medieval

Calendário medieval do século XV. Dezembro: a caça de um javali.

Pôster do filme "Tempos Modernos", de Charles Chaplin, 1936. No filme, o ator e diretor Charles Chaplin elabora uma reflexão sobre o que significou para a nossa vida a organização de uma sociedade regida pela disciplina da fábrica e pelo controle do relógio.

Os três textos a seguir evidenciam duas visões diferentes do tempo do trabalho. No primeiro texto, do século XV, o trabalho segue o tempo da natureza, pontuado pelo ciclo agrícola e por todas as conotações poéticas e emocionais associadas ao campo. Já o segundo texto, do século XIX, mostra como o tempo de trabalho, medido pelo relógio mecânico, é controlado e manipulado numa fábrica moderna, tornando-se fonte de opressão. O terceiro texto, do escritor anarquista canadense George Woodcock  (1912-1995) faz uma análise crítica sobre a onipresença do relógio na vida cotidiana das sociedades industriais.

Texto 1
"Janeiro, olha para o ano passado e para o que está por vir
Fevereiro, o mês mais duro, em que a vida parece parar
Março, em que começam os trabalhos da vinha
Abril, colhem-se as primeiras flores
Maio, 'o tempo está belo e amoroso'
Junho, os trabalhos das terras
Julho, o corte do feno
Agosto, a ceifa
Setembro, a sementeira
Outubro, a vindima
Novembro, mandam-se os porcos às bolotas
Dezembro, mata-se o porco."

GIAUVILLE, Barthelemy de. Le proprietaire des choses [1485]. In: LE GOFF, J. (org.). Enciclopédia Einaudi: memória-história. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 284.

Texto 2
"[...] Na realidade não havia horas regulares: os mestres e gerentes faziam o que queriam conosco. Os relógios nas fábricas eram frequentemente adiantados de manhã e atrasados à noite e, em vez de serem instrumentos para a medição do tempo, eram usados como capas para dissimular a trapaça e a opressão. Embora isso fosse conhecido pelos operários, todos tinham medo de falar, e um trabalhador tinha medo de usar relógio, na medida em que não era incomum despedir qualquer um que pretendesse saber demais sobre a ciência da horologia."

Anônimo. Capítulos na vida de um garoto de fábrica de Dundee [1887]. In: THOMPSON, E. P. Time, Work-discipline and industrial capitalism. Disponível em http://libcom.org.

Texto 3
"Não há nada que diferencie tanto a sociedade ocidental de nossos dias das sociedades mais antigas da Europa e do Oriente do que o conceito de tempo. Tanto para os antigos gregos e chineses quanto para os nômades árabes [...], o tempo é representado pelos processos cíclicos da natureza, pela sucessão de dias e noites, pela passagem das estações. Os nômades e os fazendeiros costumavam medir - e ainda hoje o fazem - seu dia do amanhecer até o crepúsculo e os anos em termos de tempo de plantar e de colher, das folhas que caem e do gelo derretendo nos lagos e rios. O homem do campo trabalhava em harmonia com os elementos, como um artesão, durante tanto tempo quanto julgasse necessário. O tempo era visto como um processo natural de mudança e os homens não se preocupavam em medi-lo com exatidão. Por essa razão, civilizações que eram altamente desenvolvidas sob outros aspectos dispunham de meios bastante primitivos para medir o tempo: a ampulheta cheia que escorria, o relógio de sol inútil num dia sombrio, a vela ou lâmpada para onde o resto do óleo ou cera que permanecia sem queimar indicava as horas. Todos esses dispositivos forneciam medidas aproximadas de tempo e tornavam-se muitas vezes falhos pelas condições do clima ou pela inabilidade daqueles que os manipulavam. Em nenhum lugar [...], havia mais do que uma pequeníssima minoria de homens que se preocupassem realmente em medir o tempo em termos de exatidão matemática.

O homem ocidental civilizado, entretanto, vive num mundo que gira de acordo com os símbolos mecânicos e matemáticos das horas marcadas pelo relógio. É ele que vai determinar seus movimentos e dificultar suas ações. O relógio transformou o tempo, transformando-o de um processo natural em uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e medida como um sabonete ou um punhado de passas de uvas. E, pelo simples fato de que, se não houvesse um meio para marcar as horas com exatidão, o capitalismo industrial nunca poderia ter-se desenvolvido, nem teria continuado a explorar os trabalhadores, o relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida do homem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador isolado ou do que qualquer outra máquina.

[...] A princípio, esta nova atitude em relação ao tempo, este novo ritmo imposto à vida foi ordenado pelos patrões, senhores do relógio, e os pobres o recebiam a contragosto. E o escravo da fábrica reagia, nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres no início da era industrial do século XIX.

Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da bebida ou do culto metodista. Mas aos poucos, a ideia de regularidade espalhou-se, chegando aos operários. A religião e a moral do século XIX desempenharam seu papel, ajudando a proclamar que "perder tempo" era um pecado. A introdução dos relógios, fabricados em massa a partir de 1850, difundiu a preocupação com o tempo entre aqueles que antes se haviam limitado a reagir ao estímulo do despertador ou à sirene da fábrica. Na igreja e na escola, nos escritórios e nas fábricas, a pontualidade passou a ser considerada como a maior das virtudes.

E desta dependência servil ao tempo marcado nos relógios, que se espalhou insidiosamente por todas as classes sociais no século XIX, surgiu a arregimentação desmoralizante que ainda hoje caracteriza a rotina das fábricas.

O homem que não conseguir se ajustar deve enfrentar a desaprovação da sociedade e a ruína econômica - a menos que abandone tudo, passando a ser um dissidente para o qual o tempo deixa de ser importante. Refeições feitas às pressas, a disputa de todas as manhãs e de todas as tardes por um lugar nos trens e nos ônibus, a tensão de trabalhar obedecendo a horários, tudo isso contribui, pelos distúrbios digestivos e nervosos que provoca, para arruinar a saúde e encurtar a vida dos homens.

[...] O critério passa a ser de quantidade e não de qualidade e já não há mais o prazer do trabalho pelo trabalho. O operário transforma-se, por sua vez, num especialista em "olhar o relógio", preocupado apenas em saber quando poderá escapar para gozar suas escassas e monótonas formas de lazer que a sociedade industrial lhe proporciona; onde ele, para "matar o tempo", programará tantas atividades mecânicas com tempo marcado, como ir ao cinema, ouvir rádio e ler jornais, quanto permitir o seu salário e o seu cansaço." (WOODCOCK, George. "A rejeição da política")

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os bastidores da 2ª Guerra Mundial (1939-1945)

A batalha industrial - tanques prontos para embarque no exterior, Albert Richards

Texto 1. 
* O cotidiano e a população civil nos Estados Unidos - A guerra também trouxe mudanças sociais significativas para as mulheres e para os negros norte-americanos. As mulheres ocuparam a maioria dos postos de trabalho na indústria bélica, atendendo, em massa, à convocação do trabalho feminino feita pelo governo. Para se ter uma ideia, na cidade de Detroit, em 1943, 91% das vagas criadas na indústria da guerra eram ocupadas por mulheres. Os negros, contingente importante das tropas norte-americanas, passaram a lutar contra o preconceito e a discriminação nas forças armadas, marcando o início do movimento afro-americano pelos direitos civis, que teria maior repercussão na década de 1950.

A população civil também era convocada a cumprir o seu "dever patriótico" quer doando toda sorte de metais, quer reciclando materiais como o alumínio - utilizado na produção de aviões -, ou ainda doando dinheiro para o esforço de guerra. Essas práticas eram estimuladas pelas campanhas publicitárias feitas no rádio e no cinema, as formas mais populares de entretenimento durante a guerra. Aliás, a grande expansão econômica dos Estados Unidos no período contribuiu para incrementar a produção cinematográfica.

O crescimento da economia não impediu o surgimento da necessidade de racionar certos produtos como gasolina, café, açúcar e carne, considerados indispensáveis na frente de batalha. A política de racionamento gerava filas intermináveis no dia a dia das cidades. Por outro lado, esse infortúnio também estimulava a criatividade, como, por exemplo, no caso da moda. O racionamento de tecido e a dificuldade de acesso às mercadorias europeias estimularam o nascimento de uma moda tipicamente norte-americana e adequada às necessidades da guerra.


Kiirung, Formosa – Exterior de um campo de prisioneiros japoneses, James Morris

* O cotidiano na terra do sol nascente - Do outro lado do Oceano Pacífico, as dificuldades eram bem maiores. A economia de guerra japonesa era essencialmente uma "economia da escassez". No início de 1942, cada cidadão recebia uma cota de arroz de apenas 330 gramas por dia. É preciso lembrar que o Japão dependia das importações de alimentos para suprir as necessidades da população. A escassez de alimentos trouxe consequências desastrosas, sobretudo para as crianças e os idosos. Nas grandes cidades, houve surto de tuberculose e de outras doenças que vitimaram a população. À medida que a guerra avançava e o território japonês era constantemente assolado pelos bombardeios norte-americanos, a falta de alimentos no país agravava-se ainda mais.* ALVES, Alexandre; OLIVEIRA, Letícia Fagundes de. Conexões com a História. São Paulo: Moderna, 2010. p. 145.

* "Os bombardeios norte-americanos jogaram mais de 160.000 toneladas de bombas explosivas e incendiárias em 66 cidades japonesas, destruindo cerca de quarta parte das residências e 42% das áreas industriais e matando mais de meio milhão de civis". (WILLMOTT, H. P. e outros. Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 129.)


Texto 2.
* A violência presente na Segunda Guerra Mundial - A Segunda Guerra Mundial atingiu um grau de crueldade até então desconhecido, de que as populações civis foram as principais vítimas. O massacre de Katyn e os crimes cometidos pelo Exército Vermelho em território alemão, o bombardeamento inglês de Dresden em 13 de fevereiro de 1945, a profunda interrogação moral que continua a pairar sobre a utilização da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, demonstram que a barbárie não é monopólio de nenhum dos campos. Contudo, na medida em que corresponde a um programa sistemático de sujeição e de extermínio, a barbárie nazi não tem comparação com qualquer outra. As populações do leste foram as primeiras a sofrê-la, em nome da inferioridade eslava e do ódio ao comunismo; é o caso do tratamento dos prisioneiros polacos e soviéticos, da deportação de populações civis, do desaparecimento de toda uma elite política e cultural. Posteriormente, a multiplicação das organizações e dos atos de resistência vai estender a repressão a toda a Europa ocupada, com o seu triste cortejo de prisões, torturas e execuções. Anteriores à guerra mas multiplicados por ela, gerados na sua maioria pela SS, os campos de concentração proliferam nos territórios conquistados, organizando-se segundo um sistema complexo com a sua hierarquia e as suas especializações. Aos antinazis da primeira hora vêm juntar-se comunistas, resistentes e perseguidos de todos os países. Subalimentados e mal-tratados, explorados em proveito dos interesses da indústria de guerra alemã, sabem no entanto demonstrar um grau notável de resistência e entreajuda. Bernard Droz e Anthony Rowley. História do século XX. Lisboa: Dom Quixote, 1988. v. 2. p. 116.

Texto 3. 
* O episódio mais marcante da resistência judaica na Europa foi o levante do gueto de Varsóvia, que começou em 19 de abril de 1943. Na época, viviam no gueto apenas sessenta mil judeus. Quase 350 mil haviam sido levados aos campos de extermínio. Participaram da rebelião cerca de mil pessoas, jovens militantes de partidos de esquerda ou de movimentos sionistas, que tinham algumas poucas armas. A primeira ação dos rebeldes foi matar o chefe da polícia judaica, que colaborava com os alemães e feriram noventa. Mas os alemães dominaram a revolta, massacrando centenas de habitantes do gueto. Em seu relatório final, de 18 de maio, o comandante alemão Juergen Stroop escreveu: "O bairro judeu de Varsóvia não existe mais! Hoje, 180 bandidos judeus e sub-humanos foram destruídos". O líder da revolta, o socialista Mordechai Anielewicz, jogou-se do prédio do quartel-general, na rua Mila, 18, enrolado na bandeira azul e branca que depois seria adotada pelo Estado de Israel. BRENER, Jayme. A Segunda Guerra Mundial. O Planeta em chamas. São Paulo: Ática, 2005. p. 46. Retrospectiva do Século XX.

Os bastidores da 1ª Guerra Mundial (1914-1918)

Prisioneiros alemães, Frederick Varley

Texto 1.  No momento em que a guerra começou, poucos ousaram se opor a ela. Entre as vozes solitárias estavam o filósofo britânico Bertrand Russell (que pagou uma multa de cem libras por fazer propaganda antiguerra) e o físico alemão Albert Einstein. Surpreso com o apoio popular à guerra, Einstein escreveria ao autor francês Romain Rolland: "Nosso governo é mais moderado que o povo".

A guerra também dividiu o movimento sindical e socialista, tradicionalmente contrário a conflitos internacionais. A maioria dos socialistas na Alemanha, Áustria, França ou Bélgica apoiou seus governos. Os pacifistas, sob a liderança dos bolcheviques russos, organizaram uma conferência em 1915, na Suíça, e adotaram o nome de comunistas. O texto final da conferência dizia: "Hoje, mais do que nunca, devemos nos opor às pretensões imperialistas dos governos e lutar pelo fim desta guerra [...] que provocou misérias tão intensas entre os trabalhadores de todos os países". BRENER, Jaime. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Ática, 2004. p. 16. (Retrospectiva do Século XX)

Texto 2. Muitas pessoas devem se perguntar quem eram os trabalhadores da indústria, uma vez que grande parte da população estava envolvida na guerra, inclusive civis. Os operários convocados para a guerra eram substituídos por estrangeiros vindos das colônias e, sobretudo, por mulheres, que passaram a compor grande parte da massa trabalhadora. Na França, elas trabalhavam para atender às necessidades da população urbana, por exemplo, trabalhando como motoristas de trens e ambulâncias, além de trabalharem como operárias na indústria bélica, atividades que lhes proporcionaram autonomia e contribuíram para transformar a forma como a sociedade estava organizada.


Casa de Ypres, A. Y. Jackson

* O cotidiano da população civil - A economia de guerra também envolvia uma política de racionamento de alimentos que atingia seriamente a população civil. A dificuldade de produzir e distribuir alimentos, aliada à política de priorizar as atividades voltadas para a guerra, trouxe como consequência imediata a escassez de alimentos e o aumento dos preços. A insuficiência alimentar provocava a carência de vitaminas e nutrientes, atingindo principalmente as crianças e os idosos. Diante desse quadro, doenças como tifo, escorbuto e tuberculose disseminavam-se com facilidade. Nas cidades se tornou comum as pessoas cultivarem hortas caseiras na tentativa de suprir as carências alimentares. Nas famílias, às dificuldades do cotidiano se somavam a angústia e o medo de receber telegramas que noticiassem a morte de entes queridos que estavam na guerra. Havia ainda o pavor dos bombardeios noturnos dos zepelins ou dos aviões que atacavam as cidades atingindo a população civil.


Uma mulher olhando para um cemitério à beira da estrada, George Edmund Butler

* O cotidiano nas trincheiras - Nas trincheiras da guerra, a nova tecnologia de artilharia - canhões, morteiros e lançadores de projéteis - era largamente utilizada, resultando em uma quantidade de mortos e feridos sem precedentes nas guerras, daí o número espantoso de amputações entre os combatentes. As terríveis condições de vida nas trincheiras, onde os soldados confinados enfrentavam diariamente suplícios como dor, fome, sede, doenças, frio, privação do sono, além de conviverem com o odor insuportável dos excrementos e dos cadáveres em putrefação, provocaram um incontável número de combatentes abalados por doenças psicológicas, como as neuroses de guerra. Depoimentos de soldados revelando o cotidiano nas trincheiras ajudaram a destruir a visão construída pela ideologia belicista de uma guerra gloriosa e patriótica.¹ ² ³ ALVES, Alexandre; OLIVEIRA, Letícia Fagundes de. Conexões com a História. São Paulo: Moderna, 2010. p. 51-52.

Documento 1 a. "Estamos tão exaustos que dormimos, mesmo sob intenso barulho. A melhor coisa que poderia acontecer seria os ingleses avançarem e nos fazerem prisioneiros. Ninguém se importa conosco. Não somos revezados. Os aviões lançam projéteis sobre nós. Ninguém mais consegue pensar. As rações estão esgotadas - pão, conservas, biscoitos, tudo terminou! Não há uma única gota de água. É o próprio inferno! De uma carta encontrada no bolso de um praça alemão na batalha de Somme. In: MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História Contemporânea através de textos. São Paulo: Contexto, 2011. p. 120. (Textos e documentos, v. 5). 

Documento 1 b. ""O campo de batalha é terrível. Há um cheiro azedo, pesado e penetrante de cadáveres. Homens que foram mortos no último outubro estão meio afundados no pântano e nos campos de nabos em crescimento. As pernas de um soldado inglês, ainda envoltas em polainas, irrompem de uma trincheira, o corpo está empilhado com outros; um soldado apóia seu rifle sobre eles. Um pequeno veio de água corre através da trincheira, e todo mundo usa a água para beber e se lavar; é a única água disponível. Ninguém se importa com o inglês pálido que apodrece alguns passos adiante. No cemitério de Langemark, os restos de uma matança foram empilhados e os mortos ficaram acima do nível do chão. As bombas alemãs, caindo sobre o cemitério, provocaram uma horrível ressurreição. Num determinado momento, eu vi 22 cavalos mortos, ainda com os arreios. Gado e porcos jaziam em cima, meio apodrecidos. Avenidas rasgadas no solo, inúmeras crateras nas estradas e nos campos." Relato do soldado alemão Rudolf Binding. In: MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História Contemporânea através de textos. São Paulo: Contexto, 2011. p. 119. (Textos e documentos, v. 5).

Documento 2. A revolução permanente é uma utopia; a guerra permanente é uma realidade. 1914-1985: Primeira Guerra Mundial, Guerra do Rif, Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial, guerras da Indochina, da Coréia, do Vietnã, da Argélia, a chamada "Guerra Fria"... citando as principais. A guerra, sempre presente no pensamento humano. Recordações heróicas, vergonhas, lembranças reconstruídas; momentos abominados ou privilegiados, onde era permitido, ordenado matar. Os livros de história falam de horrores, dos sofrimentos, das vítimas da guerra. Jamais de seus prazeres, de suas alegrias. Alegria de matar, de saquear, de violar, de humilhar. A guerra pertence à vida privada [...]. VINCENT, Gérard. Uma história do segredo? In: Philippe Ariès e Georges Duby, dirs. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.  v. 5. p. 201.

Documento 3. Os tanques, antes objetos de troça, transformaram-se em armas terríveis. Desenvolvem-se em longas filas blindadas, e, aos nossos olhos, personificam, mais do qualquer coisa, o horror da guerra.

[...] estes tanques são máquinas; suas esteiras giram sem parar, como a guerra; são portadores da destruição, quando descem insensivelmente para as crateras e sobem novamente sem parar, como uma frota de encouraçados, rugindo, soltando fumaça, indestrutíveis bestas de aço, esmagando mortos e feridos [...].

Granadas, gases venenosos, esquadrões de tanques, coisas que esmagam, devoram e matam. HENRIQUE, Erich M. Nada de novo no front. São Paulo: Abril Cultural, 1981. p. 222-223.

Texto 3.  Mas como foi que o cidadão comum, fosse ele alemão, francês ou sérvio, reagiu à perspectiva da guerra? O fato é que as tensões pré-guerra haviam sido exploradas, em toda a Europa, por forças políticas nacionalistas. [...] Grande parte da opinião pública europeia achava a guerra natural, essencial, ou simplesmente resignava-se à vista dos combates. A seguir, três descrições de reações populares à guerra, compiladas pelo médico e sociólogo francês Gustave Le Bon (1841-1931):

Este país tornou-se louco de alegria diante da perspectiva de uma guerra com a Sérvia e terá uma grande decepção se, por qualquer razão, não houver um conflito. Quando o povo soube do rompimento das relações diplomáticas com Belgrado, houve um delírio de alegria em Viena. Até a uma hora da madrugada, multidões circulavam nas ruas cantando músicas patrióticas [...]. (Do embaixador britânico na Áustria-Hungria)

Os camponeses partem para o front com incrível entusiasmo; e as classes superiores da sociedade, quer sejam liberais ou conservadoras, os aclamam, desejando-lhes boa sorte. Habitualmente, os camponeses sentiam que não tinham nada a fazer a não ser beber; mas agora não é mais assim. É como se a guerra lhes desse uma razão para viver. (De um observador russo)

Produziu-se uma verdadeira explosão de chauvinismo em Berlim [...]. Presume-se que a Alemanha responderá imediatamente às primeiras medidas militares da Rússia e não esperará qualquer pretexto para atacar. (Do embaixador francês na Alemanha) BRENER, Jaime. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Ática, 2004. p. 19. (Retrospectiva do Século XX)