Cabeça de índio, Henrique Bernardelli
O português que veio ao Brasil
era um lavrador desvinculado de suas raízes. Deixara na aldeia europeia seus
campos de cultura e seus rebanhos, a família e a comunidade, cujo consenso lhe
pautava a vida. Nenhuma lealdade o ligava
à nova terra. Vivia como um estranho junto a um povo com que não se
identificava e diante do qual não se sentia moralmente obrigado, senão quando
compelido por uma força externa, como a Igreja ou o Estado. A distância
cultural que separava o colonizador do habitante nativo era imensa. No Brasil não
encontrou nenhum dos frutos que conhecia, nenhum animal doméstico a que estava
habituado. As técnicas de cultivo da terra a que estava afeito não se aplicavam
à floresta tropical.
A superioridade numérica do índio
em relação aos minguados contingentes que vinham nas caravelas era
avassaladora. Assim, apesar de toda a sua potência guerreira e técnica, os
colonialistas tiveram de aprender com eles a viver nos trópicos, a cultivar
seus frutos, a comer suas raízes e paulatinamente a criar nichos que começaram
a atuar sobre os índios em torno. A esse processo de chamou a tupinização do
português no Brasil, por ser a etnia Tupi a prevalecente no litoral, à época da
descoberta.
Meio século depois, já se tinham
formado na costa alguns núcleos de população que representavam uma primeira
combinação, ainda que desordenada, de uma cultura europeia com uma cultura
tribal. Na concepção de Darcy Ribeiro, seriam a “protocélula da etnia
brasileira”, que conformariam o que se chama hoje “a cultura rústica brasileira”.
As aldeias da costa, que serviam
de feitorias para dirigir o comércio do pau-brasil, tiravam sua subsistência
por métodos antes desconhecidos ao europeu, falavam uma língua indígena, o
Tupi, e viam o mundo com olhos diversos. Estes núcleos que se uniram primeiro
pelo mar, como se fossem ilhas, depois por terra, é que viriam a constituir o
Brasil. Já continham os traços essenciais que caracterizariam o perfil do povo
brasileiro: não eram europeus e não eram índios. Aquelas protocélulas tinham a
solução de sobrevivência do europeu no trópico: produziam um produto de
exportação, o pau-brasil, que lhes garantiria as mercadorias europeias de que
necessitavam e da própria terra retiravam as fontes de subsistência.
Já nessa fase, o índio era
compelido, cada vez mais, a servir como mão de obra escrava à sociedade de
cujos ideais não participava. Até que se tornou obstáculo, porque reteve terras
que eram cobiçadas, porque sua hostilidade punha em perigo a vida do invasor e
porque a necessidade crescente do escravo e do guerreiro levava o colono a um
depoimento cada vez mais exacerbado. A inadaptação do índio ao regime de vida e
de trabalho do engenho canavieiro obrigou ao afluxo do escravo negro, dando
nova dimensão às “protocélulas” iniciais. Segundo Darcy Ribeiro:
“Os conformadores fundamentais destes núcleos foram a escravidão, como
forma de contingenciamento da mão de obra e o sistema de fazendas, em que cada
novo núcleo foi estruturado.”
A história do Brasil será daí por
diante a aventura desses núcleos pioneiros da Bahia, de Pernambuco, do Rio de
Janeiro e de São Paulo em sua luta para não indianizar-se ao mesmo tempo em que
se armavam de preconceitos contra os índios.
Dentre os muitos legados indígenas
à sociedade que foi constituída em seu território, o mais importante foi, sem dúvida,
o do seu sangue e genes. Desde a primeira hora, a mulher indígena foi o ventre
em que se gerou a população que ocuparia o imenso território conquistado. Diogo
Álvares, ou Caramuru, na Bahia, João Ramalho, em São Vicente, mais tarde, Jerônimo
de Albuquerque, ele próprio um “meio-sangue”, em Pernambuco, passaram à história
como alguns dos muitos exemplos de uniões poligâmicas de que resultaram os
primeiros mamelucos, filhos de pais portugueses e índias. Mamelucos esses que,
embora falando a língua materna, alimentando-se da mesma forma que seus
antepassados aborígenes, identificavam-se ideologicamente com o pai.
Sinal de batalha de índios Botocudos (Bororos), Jean-Baptiste Debret
As expedições de caça ao índio e
de procura do ouro, empreendidos pelos paulistas, eram compostas, em sua
maioria, por mamelucos e índios recrutados nas aldeias missionárias. Durante
muito tempo, paulista foi sinônimo de mameluco. Mamelucos foram os mais notáveis
bandeirantes, como Domingos Jorge Velho, destruidor de Palmares que, para
parlamentar com o bispo de Pernambuco, em 1697, precisou levar intérprete. Sérgio
Buarque de Holanda, a quem devemos essa informação, menciona alcunhas de
paulistas ilustres de origem Tupi, sustentando que
“Sinal, talvez, de que ainda em
pleno Setecentos persistia, ao menos em determinadas camadas do povo, o uso da
chamada língua da terra.”
Até o século XVIII, segundo o
mesmo autor, nas capitanias onde atuaram os jesuítas (São Paulo, Rio Grande do
Sul, Pará, Amazonas), a língua da terra predominava sobre o português,
principalmente no âmbito familiar, na proporção de três falantes para um. Em São
Paulo, os velhos ainda se expressavam em língua geral no começo do século XIX,
como notou Hércules Florence, e no rio Negro isso ocorre até hoje.
Mais tarde, a composição da
população se modificou. Chegaram mulheres brancas, acirrando-se o preconceito
contra a nativa. As uniões regulares, antes incentivadas pela legislação
colonial, foram sendo desmerecidas, estancando a entrada de genes indígenas. Já
então o português podia prescindir do índio porque tirara dele o fundamental: a
fórmula de sobreviver nos trópicos, a aprendizagem de seu método de plantio e
as próprias plantas que cultivava, bem como a forma de prepará-las e
consumi-las. Também obtivera dele a força de trabalho como escravo, substituído
pelo negro nos empreendimentos mais lucrativos; sua combatividade de guerreiro
para defendê-lo contra grupos hostis e o invasor estrangeiro; os seus
conhecimentos da terra, como guia e como geógrafo. E da mulher indígena, a
sensualidade, a servilidade e a fecundidade.
Em razão da ampla extensão
territorial em que se implantou a tradição cultural Tupi-guarani – que aproximadamente
corresponde ao traçado do mapa do Brasil – foi possível imprimir um perfil
uniforme à sociedade brasileira.
Sinal de retirada de índios Botocudos (Bororos), Jean-Baptiste Debret
De então até nossos dias, esse,
lastro aborígene da cultura brasileira, sobretudo de base Tupi-guarani,
conserva-se em grande parte do Brasil interiorano. Isso pode ser observado pela
facilidade com que o sertanejo nordestino, o caiçara paulista, ou, mais
propriamente, o caboclo amazônico encontram elementos culturais que lhes são
familiares num contexto tribal. Para todos, a base da alimentação é a farinha
de mandioca, cultivada e preparada pelos mesmos processos. Na casa indígena
encontram vários utensílios domésticos que lhes são familiares, chamados pelos
mesmos nomes: o tipiti para espremer o sumo da mandioca brava, o pilão, o
ralador, a peneira, os balaios, os abanos, as esteiras trançadas de palha; os
jacás, samburás, jamaxis, aturas, para trazer peixe, castanha ou produtos da
roça. Reconhecem inúmeros implementos de pesca: o pari, que é a barragem para
fechar o igarapé e atrapar o peixe; o juquiá ou covo, que é a armadilha crônica;
cacuri, curral para peixe, tracajá ou tartaruga; o puçá, a tarrafa e o jererê,
espécies de redes; a pesca com linha e anzol (hoje de aço, antes de fisga de
osso) e pelo envenenamento dos peixes com certas folhas saporáceas, como o timbó.
Do mesmo modo, são familiares ao caboclo e ao sertanejo certos tipos de
embarcação como a ubá escavada em tronco de árvore a fogo; instrumentos de música,
como o berimbau; armadilhas de caça, como o mundéu ou o alçapão para quadrúpedes
e a arapuca para a caça de passarinhos; utensílios de mesa e de cozinha, como o
porongo, a cuia, a gamela, o pote e a panela de barro. E, ainda, inúmeros
pratos e quitutes como o mingau, o beiju, o chibé (farinha de mandioca misturada
com água e às vezes temperada com fruta), a papa, a tapioca, a paçoca de peixe
ou de carne com farinha, carne ou peixe assados no moquém, a muqueca, a
quinhapira (molho de carne ou peixe com pimenta-da-terra), a mujeca (pirão de
caldo de peixe, com farinha), a saúva ou içá moqueada, o tucupi (molho do sumo
da mandioca-brava cozido), a bebida de guaraná, no Norte, a de erva-mate no
Sul, o caxixi, “vinho” de mandioca fermentada e de frutas e tantos outros.
Uns e outros utilizam os mesmos
produtos da indústria extrativa, como o breu, a almecega, a imburana e outras
gomas; plantas tintoriais, como o pau-brasil, o jenipapo, o urucum; diversas
fibras têxteis, entre as quais o caroá, o caraguatá, o tucum, o algodão;
materiais de construção, como o sapé, o cipó, as folhas e os troncos de
palmeiras; e um sem-número de ervas medicinais para pajelança e “mezinhas”.
Além desses elementos, o caboclo
identificará vários outros, como a rede de dormir, os bancos, o fumo. Verificará
que são comuns a índios e caboclos certos hábitos, como o de tomar banho diário
de rio, andar descalço, descansar de cócoras. Chamará pelos mesmos nomes várias
plantas, animais, acidentes geográficos e topônimos; temerá os mesmos duendes,
utilizando fórmulas comuns para controlar aqueles seres sobrenaturais. Desse
modo, índios e interioranos encontram formas de entendimento que vêm do início
de nossa formação.
O peso da herança indígena pode
ser aquilatado no retrato que faz José Veríssimo dos modos de vida e do sistema
adaptativo do caboclo amazônico:
“A casa em que vive aquela gente é pouco mais que a palhoça do antigo bárbaro.
Fincam no solo alguns esteios brutos (sem falquejo); os dois da frente ou do
meio mais altos de modo a que o teto fique inclinado; apóiam sobre esses
esteios algumas varas e sobre estas vão estendendo folhas de palmeiras atadas
com cipós. Em regra, tais cabanas só têm duas portas, a da frente e a do fundo.
Cercam o exíguo recinto com tapumes de jissaras partidas, cobertas às vezes de
barro. Quase sempre há uma única divisão: a que serve de dormitório para o
chefe da família. O mais é aberto, tendo no centro a lareira, onde nunca se
deixa apagar o fogo. Por cima, chegado ao teto, está o jirau, como nas tendas
do índio é a despensa da família. No interior destas cabanas, um ou outro móvel
se encontrará mais que aqueles mesmo de que usava o antigo selvagem: balaios,
esteira de piri, cuias, vasos de argila, redes ou macas de cipó etc. – tudo refletindo
muito mal disfarçada a vida do aborígene. Nessas palhoças, o modo de viver, as
relações de família, a economia, o regime doméstico – tudo pouco difere do que
se observava na taba do selvagem. O homem come de cócoras como o índio ainda
comia; cura-se dos males que o assaltam pelos mesmos primitivos processos; anda
sempre descalço; quando viaja com a família, vai sempre adiante; caça, pesca
como pescava e caçava o silvícola há quatrocentos anos, tendo demais apenas os
petrechos e artifícios que a conquista introduziu; as embarcações de que se
serve, nos rios e nas baías; o modo de preparar o roçado e de fazer o plantio;
o fabrico de farinha, a moqueação de peixe, etc. – tudo acusa de modo flagrante
que no homem simples do sítio, mais ou menos isolado da civilização, subsiste
mais ou menos fielmente o que havia de mais ponderoso nas raças nativas.”
Do indígena aproveitou a
colonização europeia a técnica de coivara (clarear os campos a fogo), que até
hoje não foi substituída por processos mais modernos, constituindo-se numa prática
sumamente nociva à economia agrícola. Enquanto o indígena utilizava essa
técnica para limpar um pequeno trato de terra, extinguindo, pelo fogo, as
pragas, os insetos daninhos e a vegetação rasteira, que à falta de enxada e
outros instrumentos de ferro não poderia extirpar, o latifundiário aplica a
mesma técnica para fazer extensas plantações agrícolas ou pecuárias. As grandes
queimadas inutilizam madeiras preciosas e a terra desprotegida de vegetação é
lavada por chuvas e enxurradas, carreando todo o húmus vegetal para o fundo dos
rios e lagos. Na Amazônia, as consequências desse desmatamento são muito mais
graves. O solo fica exposto à forte insolação e ao peso das chuvas. A superfície
endurece, anulando sua permeabilidade. Destrói-se toda matéria orgânica,
deslizando os minerais solúveis para as camadas mais profundas da terra, onde não
penetram as raízes.
A queima em pequena escala
praticada pelo indígena e o apodrecimento de galhos e troncos, deixados sem
queimar, devolvem ao solo nutrientes necessários para alimentar os brotos. O
revolvimento da terra com arado e trator a danifica irremediavelmente, ao contrário
do que ocorre quando o índio usa simplesmente uma estaca de cavar para a
semeadura. O cultivo de espécies diversas favorece a recaptura parcial dos
nutrientes e evita a propagação de pragas, como acontece nas plantações
monoculturas.
Examinados todos os fatores que
presidem a adaptação do índio ao ecossistema da Amazônia, a arqueóloga Betty
Meggers, numa passagem de seu livro Amazônia,
a ilusão de um paraíso, afirma:
“O ponto a ser acentuado aqui é que a agricultura itinerante não
constitui um método de cultivo primitivo e incipiente, tratando-se, ao contrário,
de uma técnica especializada que se desenvolveu em resposta às condições específicas
de clima e solo tropicais”.
Como se vê, desconhecendo embora
o uso de instrumentos de ferro, as técnicas agrícolas indígenas eram bastante
eficientes e perfeitamente ajustadas às condições de seu meio ambiente. Baseavam-se,
como ainda hoje, num saber milenar – o conhecimento objetivo da natureza e suas
leis – advindo da observação e da experimentação.
RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São
Paulo: Global, 2011. p. 101-5.