"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 31 de janeiro de 2015

O espírito do Santo Ofício da Inquisição continua?

[...]


Durante três séculos, o Estado e a Igreja privaram o colono luso-brasileiro da livre crença e da liberdade de consciência, mantendo a colônia sem imprensa, sem universidade, sem ciência, sem novelas, sem arte e sem livros, a não ser aprovados pela Igreja. Foi a Inquisição responsável pela estagnação intelectual da vida colonial, centrando em torno da Igreja, da missa, do sermão, das procissões, todas as diretrizes da vida, e incutindo uma obsessão pelo sentimento de pecado, que marcou todos os homens com o estigma da culpa. [...]

Condenados pela Inquisição, Velázquez

Apesar de todas as promessas de punição, a Inquisição não conseguiu fazer calar as inquietações, a solidariedade e a busca de novas mensagens, e as heresias se propagaram por toda a América. As mais autênticas expressões de fé, não oficiais, permearam toda a história colonial, desaguando algumas fortes, outras apagadas, no próprio século XX.

A América colonial foi vítima da repressão, de perseguições, de extermínios. As políticas totalitárias da Espanha e de Portugal, que anteciparam cinco séculos os totalitarismos do século XX, não podiam reconhecer e tolerar diferenças de pensamento e de fé, uma vez que havia interesses econômicos envolvidos.

Mesmo sem sucesso, milhares de portugueses e espanhóis lutaram, silenciosos, num campo de batalha, espremidos entre um poder absoluto e um universo impregnado de fanatismos, superstições e crendices. A resistência dos colonos conversos, dos índios, dos negros, dos hereges e dissidentes à imposição forçada da religião, dos valores, dos costumes, foi calada e clandestina. Os hereges Garcia da Orca, Antonio José da Silva, Padre Antonio Vieira, Juan de Vives, Frei Luís de Leon, Fernando Rojas e tantos outros foram a verdadeira glória de Portugal e da Espanha, e não seus religiosos, guerreiros e governantes.

O recrudescimento em nossos dias dos nacionalismos, do antissemitismo, dos ódios raciais, dos antagonismos religiosos, da xenofobia, mostra que, apesar de todo o progresso técnico, os homens ainda carregam consigo, viva, a herança destrutiva do passado.

[...]

O Tribunal da Inquisição, Goya

O Santo Ofício da Inquisição, que queimou Giordano Bruno ¹ e perseguiu Galileu ², passou a denominar-se Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Esta Congregação advertiu e puniu numerosos teólogos contemporâneos, que têm questionado diferentes aspectos da doutrina católica e a infalibilidade da Igreja.. Todas as medidas restritivas receberam a aprovação do papa João Paulo II.

¹ O que era semente faz-se erva, e do que era erva faz-se a espiga; do que era espiga faz-se o pão, do pão quilo, do quilo sangue, deste semente e desta embrião, deste homem, deste cadáver, desta terra, desta pedra. (Giordano Bruno, Diálogos)

² A filosofia está escrita neste imenso livro que se nos abre continuamente diante dos olhos (quero dizer o universo), mas não podemos entendê-lo, se antes não aprendermos a compreender a língua e a conhecer os caracteres nos quais está escrito. Está escrito em língua matemática, e os caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas, sem os quais meios é impossível entender humanamente qualquer palavra sua; sem eles é um inútil vagar por escuro labirinto. (Galileu)

Os principais teólogos acusados de heresia foram Edward Schillebeeckx,  professor de Teologia da Universidade Católica de Nijmaegen, Holanda, e Hans Küng, professor de Dogma e Teologia Ecumênica da Universidade do Estado, Tubingen, Alemanha. No Brasil foi acusado e punido o teólogo Frei Leonardo Boff.

Desde 1957 Hans Küng entrou em choque com o Vaticano, por ter posto em dúvida a infalibilidade da Igreja e criticado a debilidade da doutrina papal sobre o controle da natalidade. Küng acredita que a Igreja "devia aprender por seus próprios erros". Chamado a Roma em 1971, para justificar as suas ideias, respondeu que só iria se pudesse ver todo o seu processo e escolher seus próprios advogados. A Congregação recusou. Nessa atitude vemos a repetição do procedimento da Inquisição ibérica, na qual os réus não tinham conhecimento do seu processo e os únicos advogados admitidos eram homens internos da Inquisição. O próprio Küng acusou os membros da Congregação de agirem de acordo com o espírito da Inquisição. Küng também foi punido por dizer que a ressurreição não podia ser um acontecimento histórico, a virgindade de Maria era uma lenda, que não se devia identificar Jesus com Deus e que Jesus nunca se intitulou Messias. O próprio papa João Paulo II, em 18 de dezembro de 1979, declarou que Hans Küng, nos seus escritos, afastou-se da verdade integral da fé católica e portanto não podia mais ser considerado um teólogo católico, nem atuar como tal num papel de professor.

Os crimes contra a moral, que foram sempre preocupação central da Igreja, e deram motivo à constante pela Inquisição espanhola e portuguesa, também recebem atualmente, da Congregação para a Doutrina da Fé, um especial interesse. Autores como o reverendo Charles Curran, professor de Teologia Moral da Universidade Católica de Washington, D.C., autor de Sexual and Medial Ethics e Tradition in Moral Theology (Notre Dame University Press, 1978 e 1979, respectivamente), o jesuíta John J. Mc Neill, autor da obra The Church and the Homossexual (Sheed, Andrews and McMeel, 1976) e o reverendo Anthony Rosnik, coautor de Human Sexuality: New Directions in American Though (Paulist Press, 1977), foram seriamente advertidos e criticados pela Congregação.

Os pensadores religiosos estão divididos hoje, como estiveram divididos durante a Inquisição ibérica.

NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 7-9, 103-5. (Coleção Tudo é História, 49).

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Iconografia: Mosaico da Igreja de São Vital, Ravena


A imagem é a reprodução de um mosaico da igreja de São Vital, Ravena, na Itália, cidade que fez parte do Império Bizantino. Nela vemos uma procissão, com o imperador Justiniano (ao centro) acompanhado de altas autoridades. Ao lado do imperador, à direita, um arcebispo segura uma cruz incrustada de jóias, seguido de um rico banqueiro.

A imagem apresenta uma série de objetos e cores simbólicas. Justiniano traz nas mãos uma escudela que simboliza a fartura, a segurança material e espiritual. Ele é o guardião da fé e do povo. A cor púrpura de sua roupa simboliza o poder imperial. O dourado é a cor do poder espiritual, que caracteriza a Igreja e legitima o poder imperial.

Justiniano traz na cabeça uma auréola, símbolo do caráter sagrado do seu poder.

O desenho no escudo à esquerda simboliza a forma como será estabelecido o Reino de Deus na terra: em nome do Pai, através do Filho, com a graça do Espírito Santo e a ação do imperador e da Igreja.

A imagem consegue sintetizar as bases de sustentação do Estado bizantino.

PEDRO, Antonio [et al.]. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 133-4.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Popol Vuh, o livro sagrado dos maias

Uma página do Popol Vuh, Escribas maias desconhecidos

Na antiga língua maia, "Popol" significa reunião, comunidade, casa, junta; e "Vuh", árvore de cujo corte se fazia papel, por extensão, livro. Popol Vuh é o mais precioso relato - e legado - da antiguidade americana; é o livro sagrado dos índios que habitavam uma região onde hoje é a Guatemala. É em essência um conjunto mítico e teogônico, dividido em três partes: a primeira é uma descrição da origem do mundo e da criação do homem; a segunda trata das aventuras dos jovens semideuses Hunahpu e Ixbalanqué no reino sombrio de Xibalbay; e, finalmente, a terceira parte refere-se à origem dos povos indígenas da Guatemala, suas guerras e emigrações, com o predomínio dos quíchua-maias até pouco antes da conquista espanhola. O livro teria sido escrito no começo do século XVI, possivelmente em pele de veado, e foi transcrito para o latim em 1542, por frei Alonso Del Portillo de Noreña. A versão espanhola apareceu em 1701, feita pelo frei Francisco Ximenex.

COSTA, Flávio Moreira da. Uma flor misteriosa, solitária, na imensidão da América adormecida. In: _________ (Org.). Os melhores contos da América Latina. Rio de Janeiro, Agir, 2008. p. 15.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Entre a cruz (religião) e a espada (guerra): a conquista da América pelos europeus

Funeral de Atahualpa, Luis Montero

DOCUMENTO 1
A cruz realizou um trabalho complementar à espada. Um conjunto de circunstâncias de ordem religiosa entre algumas nações indígenas facilitou a tarefa dos dominadores, já que tanto no México como no Peru uma série de profecias e sinais asseguravam a chegada iminente de novos deuses. E os europeus, manipulando o imaginário destes povos, não tiveram dúvidas em se apresentar como tais. O domínio do sagrado sobre o profano se materializou até nas construções das igrejas católicas, ao se aproveitar algumas pirâmides e templos como alicerces para a edificação de suas catedrais. [...]

Juan de Zumáraga, primeiro arcebispo do México, se orgulhava, em uma carta de 1547, de que seus sacerdotes haviam destruído até então mais de 500 templos indígenas e queimado cerca de 2 mil ídolos. Ele próprio ajudou a incinerar os arquivos existentes em Texcoco. O mesmo fez o bispo de Yacatán, Diego de Landa, ao atirar ao fogo purificador os manuscritos maias - único povo da América pré-colombiana que havia criado uma escrita -, fazendo com que se destruíssem os principais documentos históricos e literários. [RAMPINELLI, Waldir José. A falácia do V Centenário. In: ________. OURIQUES, Nildo Domingos (Org.). Os 500 anos: a conquista interminável. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 30-31.]

A tortura de Cuauhtémoc, Leandro Izaguirre

DOCUMENTO 2
O Almirante Colombo encontrou, quando descobriu esta ilha Hispaniola, um milhão de índios e índias [...] dos quais, e dos quais nasceram desde então, não creio que estejam vivos, no presente ano de 1535, 500, incluindo tanto crianças como adultos, que sejam naturais, legítimos e da raça dos primeiros índios [...]. Alguns fizeram esses índios trabalhar excessivamente. Outros não lhes deram nada para comer como bem lhes convinha. Além disso, as pessoas desta região são naturalmente inúteis, corruptas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, sem constância e firmeza [...]. Vários índios, por prazer e passatempo, deixaram-se morrer com veneno para não trabalhar. Outros se enforcaram pelas próprias mãos. E quanto aos outros, tais doenças os atingiram que em pouco tempo morreram [...]. Quanto a mim, eu acreditaria que Nosso Senhor permitiu, devido aos grandes, enormes e abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e animalescas, que fossem eliminadas e banidas da superfície terrestre [...]. [OVIEDO, Gonzalo Fernandes de. In: ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 76.]

Cortez e seus soldados lutando contra os astecas em Tenochtitlán, Emanuel Leutze

DOCUMENTO 3
O relato desse primeiro encontro com Atahualpa foi feito por diversas testemunhas oculares [...]. Por meio de seu testemunho, a cena aparece para nós, hoje, como um confronto entre duas visões incompatíveis do mundo: de um lado, a de um soberano para quem a própria natureza do poder que encarna proíbe a comunicação direta com seus súditos e o recurso a mediadores; do outro, a de dois hidalgos espanhóis, Soto e Hernando Pizarro, para os quais os reis são interlocutores diretos a despeito de sua majestade. Quebrando sistematicamente as barreiras rituais que os separam do Inca, apagando os códigos de polidez e de hierarquia, os conquistadores vão marcar uma primeira vitória sobre um homem fechado em sua dignidade solar. Pois, mais do que as armas, são os gestos e as palavras que vão solapar a solenidade do Filho do Deus Sol, anunciando o fim de império do qual o Inca era a chave-mestra. [...] [BERNAND, Carmem; GRUZINSKY, Serge. História do Novo Mundo: da descoberta à conquista, uma experiência europeia (1492-1550). São Paulo: Edusp, 1997. p. 499-500.]

Entrada dos espanhóis em Guadalajara, Jalisco. Forças tlalcaxtecas acompanham os espanhóis liderados por Cristóbal de Olid, 1522. Escriba asteca desconhecido.

DOCUMENTO 4
A atitude de Colombo para com os índios decorre da percepção que tem deles. Podemos distinguir, nesta última, duas componentes, que continuarão presentes até o século seguinte e, praticamente, até os nossos dias, em todo o colonizador diante do colonizado. Estas duas atitudes já tinham sido observadas na relação de Colombo com a língua do outro. Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres completamente humanos com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idênticos e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros ou então parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os índios inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu como o universo; na convicção de que o mundo é um. [TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 51.]

A batalha de Otumba, Artista desconhecido

DOCUMENTO 5
Essa trilogia - doenças, desunião dos indígenas e o aço espanhol - responde por boa parte do resultado da Conquista. Basta remover um de seus elementos para que a probabilidade de fracasso das expedições lideradas por Cortés, Pizarro e outros fique muito alta [...].

Um quarto fator também desempenhou um papel importante: a cultura bélica. Por exemplo, os astecas foram prejudicados por certas convenções de batalha ignoradas pelos hispânicos. Os métodos de guerra astecas salientavam a observação de cerimônias que antecediam as batalhas - que eliminavam a possibilidade de ataques de surpresa - e a captura de inimigos para posterior execução ritual, em vez de matá-los no ato [...]. Por fim, a Conquista espanhola só pode ser plenamente compreendida se situada no contexto histórico mais amplo da expansão ultramarina. Essa história mais ampla não fala de uma superioridade espanhola, ou mesmo da Europa Ocidental, mas aborda, ao contrário, um complexo fenômeno da história mundial que transcende as peculiaridades da Conquista espanhola das Américas [...]. [RESTALL, Mattew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 240-242.]

A captura de Atahualpa, Juan Lepiani


DOCUMENTO 6
[...] Vieram os Dzules* que transformaram tudo. Eles ensinaram o terror, eles secaram as flores, sugando até ferir a flor dos outros para poderem fazer sobreviver a própria... Não havia entre eles nem grande sabedoria, nem palavras, nem ensinamentos. Os Dzules não vieram senão para mutilar o sol! E os filhos de seus filhos permaneceram entre nós, que deles não recebemos senão amargura. [ANÔNIMO. Chilam Balam de Chumayel. In: GENOROP, Paul. A civilização maia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 103.]

* Conquistadores espanhóis.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O sagrado e o profano nas origens de Roma

[...]

Os tabus e práticas de inspiração mágica surgem repetidamente na vida romana, conferindo muita importância ao campo do sagrado. Em toda a parte a religião pressupõe uma oposição entre a vida natural, ordinária e um campo dominado pelo temor e pela esperança. O sagrado é a ideia-mãe da religião, os mitos, e os dogmas analisam-lhe o conteúdo de vários modos. Os ritos utilizam-lhe as propriedades e a moralidade religiosa deriva dela. Os sacerdócios incorporam-na e os santuários, os lugares sagrados e os monumentos religiosos. fixam-na ao solo, enraízam-na. Neste sentido, a religião seria a administração do sagrado e o direito, a administração do profano. [...]

O sagrado pertence, como uma propriedade estável ou efêmera, a certas coisas como aos instrumentos de culto; pertence também a certos seres como o rei e os sacerdotes; pertence a certos espaços como templos, igrejas, bosques, lugares régios e a certos tempos como o das festas religiosas, a certos dias etc. Porém, tudo aquilo que pode ser consagrado pode também ser dessacralizado.

O objeto consagrado suscita sentimentos de pavor e veneração; apresenta-se como interdito, ou seja, aquilo de que não nos aproximamos sem morrer. O sagrado também impõe a noção de contágio, daí o cuidado de afastar de um lugar consagrado tudo o que pertence ao mundo profano. A presença de um ser profano é suficiente, nestes casos, para afastar toda uma possível bênção divina. Inúmeros exemplos poderiam ser citados neste sentido tanto entre os gregos quanto entre os romanos. Por ora basta-nos pensar no lugar dos criminosos, nas vinganças de sangue e no poder do contágio que a luta pela construção de direito dos homens tenta minimizar.

Sagrado e profano não podem se aproximar e ao mesmo tempo preservar a sua natureza própria. Por outro lado, ambos são necessários ao desenvolvimento da vida: o profano como o meio em que ela se desdobra e o sagrado, como a fonte inesgotável que a cria, que a mantém e que a renova. Estes dois mundos se definem rigorosamente um pelo outro e, ao mesmo tempo, excluem-se, supõem-se e complementam-se.

O sagrado é fonte de socorro, de todo êxito, mas também inspira terror e confiança. As calamidades e as vitórias e prosperidade são relacionadas com determinado princípio que pode ser vergado ou coagido. Desta maneira, podemos entender a história de Roma não com nosso individualismo calculista e utilitarista, mas inserida em profundas crenças que não podem ser separadas da concepção do sagrado e do profano.

Rômulo e Remo, Peter Paul Rubens

Somente Rômulo foi celebrado como o pai que trouxe os romanos à luz do dia, foi pater et genitor. Sua primazia fundou-se unicamente no auspício favorável e, por isso, de acordo com Meslin, ela pôde servir de protótipo justificativo da autoridade dos chefes políticos. Bem mais tarde, quando Otávio veria 12 abutres passarem no céu do Palatino, onde se apressaria em estabelecer-se quando enfim a paz na terra retornasse, poderia reconciliar-se o "Quirite com seu irmão Remo". O resultado mais curioso, ainda segundo Meslin, seria a piedosa iniciativa, na época agostiniana, destinada a desculpar Rômulo pela morte do irmão. Essa verdade era tão forte que o herói fundador de Roma jamais deixaria de funcionar como um arquétipo que a lenda das origens de Roma legou à meditação dos candidatos ao poder pessoal. Para além do exemplo romano, a guerra dos gêmeos como protótipo da violência está presente desde Caim e Abel, como apontou James Frazer.

Rômulo e Remo abrigados por Fáustulo, Pietro de Cortona

É também importante o que os latinos chamavam de Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. Segundo Agamben o dia do nascimento era sagrado. Os presentes e os banquetes com que festejamos o aniversário são uma lembrança da festa e dos sacrifícios que as famílias romanas ofereciam ao Genius. Originalmente só havia incenso, vinho e cucas de mel, porque Genius, o deus que preside ao nascimento, não gostava de sacrifícios sangrentos. Hoje ainda há o termo ingenium, que designa a soma de qualidades físicas e morais inatas de quem está para nascer. Genius era, de algum modo, a divinização da pessoa, o princípio que rege e exprime a sua existência inteira. Por esse motivo, nos momentos de desânimo, quando parece que quase nos esquecemos de nós mesmos, levamos a mão à cabeça. Dado que esse deus é o mais íntimo e próprio de cada um de nós, é necessário aplacá-lo e tê-lo bem favorável sob todos os aspectos e em todos os momentos da vida, Fraudar o próprio gênio é tornar triste a própria vida, ludibriar a si mesmo. Para compreendermos a diferença daquilo que nós apontamos como "eu", é significativo pensar que a concepção de homem implícita em Genius equivale a compreender que o homem não é apenas o EU com sua consciência individual, mas que, desde o nascimento, ainda segundo Agamben, até à morte, ele convive com um elemento impessoal e pré-individual. O homem é, assim, um único ser com duas faces. A vida viria da dialética entre uma parte (ainda) não identificada ou vivida e uma parte já marcada pela sorte e pela experiência individual.

Seria neste caso aquilo que os gregos e posteriormente Santo Agostinho marcariam como nossa consciência temporal, ou seja, vivemos sempre entre aquilo que já foi e aquilo que ainda não é. Há neste intervalo aquilo que podemos chamar de angústia, alegria, segurança ou temor. Enfim, é a condição humana que os antigos jamais deixaram de lado, ou seja, o ser e também o não ser sempre possível. [...]

Os romanos atribuíram a seus ancestrais a criação de sua cidade, bem, como de suas instituições sociais, jurídicas e religiosas. Quando debruçamos sobre seu passado, vemos que Roma inventou uma epopeia "nacional", criou-a incorporando nela valores cujo papel eram precisamente o de justificar ritos, costume e leis. São relatos muito humanos, pois, assim que interrogou seu próprio passado, o homem romano interessou-se mais por sua cidade, pelo êxito dos empreendimentos coletivos e por sua organização do que por uma cosmologia atemporal.

EYLER, Flávia Maria Schlee. História antiga: Grécia e Roma: a formação do Ocidente. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 163-7. (Série História Geral)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Realismo e crítica social

O realismo, movimento dominante na arte e na literatura em meados do século XIX, opunha-se ao sentimentalismo e à veneração da vida interior que caracterizavam o romantismo. Os românticos exaltavam a paixão e a intuição, deixavam-se conduzir por sua imaginação a um passado medieval pretensamente idílico e buscavam a solidão interna em meio às maravilhas da natureza. Os realistas, por sua vez, concentravam-se no mundo real: nas condições sociais, no modo de vida contemporâneo e nos detalhes conhecidos da vida cotidiana. Com um distanciamento clínico e um zelo meticuloso, analisavam a visão, o trabalho e o comportamento das pessoas.

Mulher pobre da aldeia, Gustave Courbert

Tal como os cientistas, os escritores e artistas realistas investigavam minuciosamente o mundo empírico. Gustave Courbert (1819-1877), por exemplo, representante do realismo na pintura, buscou pôr em prática o que ele denominava "arte viva". Assim, dedicou-se a pintar pessoas comuns e cenas corriqueiras: trabalhadores quebrando pedras, camponeses lavrando o solo ou voltando de uma feira, um funeral no campo, lutadores, banhistas, grupos familiares. Em estilo prosaico, sem nenhuma tentativa de glorificação, os artistas do realismo também representaram limpadores de chão, trapeiros, prostitutas e mendigos.

Procurando retratar a vida tal como ela é, os escritores realistas frequentemente abordam os ultrajes sociais e os aspectos sórdidos do comportamento humano e da sociedade. Em seus romances, Honoré de Balzac (1799-1850) descreveu de que maneira os fatores econômicos e sociais afetavam o comportamento das pessoas. Esboços (1852), de Ivan Turguéniev, retratou as condições rurais na Rússia e expressou compaixão pela vida brutalmente difícil dos servos. Em Guerra e paz (1863-1869), Leon Tolstói descreveu com detalhes os costumes e a visão de mundo da nobreza russa, bem como as tragédias que se seguiram à invasão da Rússia por Napoleão. Em Anna Karenina (1873-1877), abordou a realidade das divisões de classe e a complexidade das relações conjugais. Os romances de Charles Dickens - Bleak House (1853), Hard Times (1854) e vários outros - descreviam a vileza da vida, a hipocrisia da sociedade e a massacrante rotina de trabalho nas cidades industriais inglesas.

Muitos consideram Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, o romance realista por excelência; narra a história de uma esposa egocêntrica que, mostrando sua aversão ao marido - um homem devotado e diligente, mas fraco -, comete adultério. Ao comentar o realismo da obra, um crítico observou que ela "reflete uma obsessão com a descrição. Os detalhes são relatados um a um, dando-se a todos a mesma importância, cada rua, cada casa, cada livro, cada folha de grama, tudo é descrito em pormenor".

O realismo literário evoluiu para o naturalismo quando os escritores tentaram demonstrar a existência de uma relação causal entre o caráter humano e o ambiente social: de que certas condições de vida produziam traços de caráter previsíveis nos seres humanos. A crença de que a lei de causa e efeito regia o comportamento humano refletia o enorme prestígio atribuído à ciência nas últimas décadas do século XIX. Émile Zola (1840-1902), o principal romancista do naturalismo, sondou cortiços, bordéis, vilas de mineradores e cabarés da França, examinando de que maneira as pessoas eram condicionadas pela sordidez do ambiente em que viviam. O norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), o mais destacado dramaturgo naturalista, estudou com precisão clínica as classes comerciais e profissionais, suas ambições pessoais e relações familiares. Em Pilares da sociedade (1877), vasculhou as pretensões sociais e a hipocrisia burguesas. O tema de sua Casa de bonecas (1879) chocou a platéia burguesa do final do século XIX: a mulher que deixa seu marido em busca de uma vida mais gratificante.

No esforço de oferecer um retrato real do comportamento humano e do ambiente social, o realismo e o naturalismo reproduziram as atitudes moldadas pela ciência, pelo industrialismo e pelo secularismo, que enfatizavam a importância do mundo externo. A mesma perspectiva também deu origem, na filosofia, ao positivismo.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 421-423.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Conflitos no Prata

Combate de cavalaria na época de Rosas, Carlos Morel

Desde o início, em 1810, das lutas pela independência das colônias espanholas, Portugal (posteriormente também o Brasil) e Argentina disputaram o domínio sobre a Banda Oriental. Quando José Artigas iniciou, em 1811, as lutas pela independência do futuro Uruguai, o Império Português entendeu que era o momento apropriado para atingir seus antigos objetivos, mobilizando suas forças para intervir na região. A movimentação e as propostas de Artigas eram consideradas perigosas aos olhos da Coroa portuguesa, porque estavam voltadas para as aspirações populares. Isso levou à primeira (e frustrada) intervenção portuguesa, na Banda Oriental, em 1811. Mas, do outro lado do estuário, Buenos Aires comandava as lutas para se tornar independente da Espanha. Conquistando rapidamente seguidas vitórias, projetava manter sua hegemonia sobre os mesmos territórios que haviam composto o antigo Vice-reinado do Rio da Prata. Deste modo, tanto a Banda Oriental, quanto o Paraguai "deveriam" fazer parte das nascentes Províncias Unidas do Rio da Prata. Assim, as ambições portuguesas e portenhas se enfrentaram em torno do território do futuro Uruguai. Em 1816, quando Artigas lutava contra os Unitários portenhos e desagradava, com suas propostas radicais de confisco de terras, à elite mercantil e proprietária da Banda Oriental, os portugueses novamente mandaram tropas por terra e por mar para a região, culminando suas ações com o cerco a Montevidéu. Receberam apoio dos proprietários rurais e de comerciantes, descontentes com Artigas. Este acabou derrotado em 1820, deixando o território da Banda Oriental para sempre. Aproveitando-se da debilidade dos portenhos - provocada pelas lutas políticas locais que os dividiam -, os portugueses, temporariamente vitoriosos, incorporaram, em 1821, a Banda Oriental a seu Império, com o nome de Província Cisplatina. Com a independência brasileira, em 1822, o imperador D. Pedro I seguiu a política externa já estabelecida. A província Cisplatina "pertencia" ao novo país.

Passagem de Tonelero durante a Guerra do Prata (1851-52), Eduardo de Martino

No entanto, as ambições brasileiras sobre o território da Banda Oriental começaram a ser soterradas em 1825. A luta dos uruguaios pela reconquista anulou os compromissos políticos com o Brasil e a reintegrou a Banda Oriental ao território das Províncias Unidas do Rio da Prata. A guerra desencadeada entre Brasil e Argentina terminou sem vitoriosos. Com a arbitragem da Grã-Bretanha, o Estado Oriental do Uruguai, como país soberano, nascia em 1828.

Quadro de Manuel Oribe, presidente do Uruguai, Manuel Rose

Com a abdicação de D. Pedro I, em 1831, abriu-se com a menoridade do sucessor ao trono brasileiro, o período conhecido como o das Regências. Nesses anos, o Brasil foi sacudido por uma série de rebeliões de forte cunho regionalista, muitas delas propondo a separação do resto do país, constituindo-se em ameaçador perigo da dissolução "da ordem e da unidade" do Império. A mais longa dessas rebeliões foi a Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul, que pôs em risco a manutenção das "fronteiras naturais" do sul do país. A tentativa de separação se alicerçava em propostas republicanas de governo, concretizada na criação da República do Piratini. O fantasma da perda da Província Cisplatina rondava a corte imperial, e o envolvimento de grupos uruguaios nas lutas indicava a permanência de interesses econômicos e políticos comuns, assim como de fronteiras bastante flexíveis.

Soldados de Juan Manuel de Rosas, Artista desconhecido

No final da década de 1840, o Brasil trabalhava pela derrubada de Oribe, líder dos Blancos uruguaios, e do poderoso governador federalista de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas. Para tanto, aliou-se a seus inimigos internos, como o governador de Entre Rios, Justo José de Urquiza, e aos Colorados uruguaios e buscou (em vão) também aliados no Paraguai. Os resultados dessas intervenções foram muito positivas para o Brasil. Em 1851, Oribe era derrubado no Uruguai, refugiando-se temporariamente em Buenos Aires. Em 1852, na impressionante Batalha de Caseros, em que que confrontaram 50 mil homens, Rosas caiu derrotado pelo conjunto de forças nacionais e estrangeiras. Finalmente foi assinada uma série de tratados com a república uruguaia, de interesse para o Brasil.

PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. p. 48-49.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O legado da China

A dama Guoguo passeando a cavalo, Li Boshi

Tendo como berço a vasta planície sulcada pelas águas do Rio Amarelo, a civilização chinesa desenvolveu-se e expandiu-se numa imensa área da Ásia Oriental e Central não só recebendo contribuições culturais de outros povos, mas também transmitindo a muitas regiões o legado de uma brilhante civilização.

A obra conquistadora e colonizadora dos Han lembra a realização das legiões romanas. Da Coréia ao Vietnam, os legionários dos Han difundiram as ideias do confucionismo sobre a organização estatal: centralização do poder e regularização da administração. E com as concepções políticas seguiram todas as conquistas intelectuais e materiais: as obras de Confúcio e o arado de metal elevavam harmoniosamente o nível cultural dos povos submetidos. “Pela espada e pelo pincel, a China dos Han criou no Extremo Oriente e em todos os países de sua periferia, destinados a transformar-se em estados satélites, o direito administrativo, o direito público, o direito privado”.

O grande veículo da civilização chinesa foi a língua escrita, “língua de cultura e de administração do Anam, até a conquista francesa, da Coréia até a anexação japonesa, do próprio Japão nos primeiros séculos da introdução da civilização chinesa”. O chinês escrito influiu fortemente o vocabulário do idioma de todos esses países “que lhe pediram e frequentemente ainda pedem emprestados termos de cultura, forjando novas expressões com a ajuda de palavras chinesas da língua escrita, como nós o fazemos com o auxílio das palavras do grego antigo”.

Como sucedeu por ocasião da queda do Império Romano do Ocidente, a quebra dos laços políticos entre o Império Chinês e as regiões distantes outrora conquistadas não impediu o desenvolvimento das sementes de civilização lançadas: cresceram, tornaram-se árvores frondosas que ainda hoje frutificam.

Anotemos agora algumas realizações do gênio inventivo chinês que teriam enriquecido o patrimônio cultural do Ocidente.

A porcelana, a seda, a bússola, a imprensa, a pólvora e o papel, eis alguns progressos de nossa civilização que nos fazem pensar na China. O uso da agulha magnética entre os chineses parece remontar a muitos séculos antes de nossa era; mas somente foi introduzido no Ocidente por volta do século XII pelos árabes que o ensinaram aos normandos da Sicília, os quais, por sua vez, o transmitiram a genoveses e venezianos.

Os eruditos chineses discutem a época em que nasceu na China a arte de imprimir. Já nos primeiros séculos da nossa era, moldes de pedra eram utilizados para a impressão das firmas do imperador e dos príncipes. O ministro Feng-Tao, no século X da Era Cristã, conseguiu que fossem gravados em matrizes de madeira os clássicos chineses. No século seguinte, o ferreiro Pisching ou Pi-Sheng teria inventado os tipos móveis.

É difícil, entretanto, estabelecer uma relação entre a invenção chinesa e o aparecimento da imprensa no Ocidente ao findar a Idade Média.

Quanto ao papel, não há dúvida sobre a contribuição chinesa. O segredo da fabricação foi relevado em Samarcanda no século VIII por prisioneiros chineses, espalhando-se daí para o Ocidente por intermédio dos árabes.

A pólvora também nos foi transmitida pelos árabes, que vieram a conhecer o salitre “no curso de seu tráfico com a China e deram-lhe o nome de “neve chinesa”; trouxeram para o Ocidente o segredo da pólvora, que os sarracenos puseram em uso militar; Roger Bacon, o primeiro europeu que a mencionou, deve ter adquirido esse conhecimento no seu estudo dos árabes ou por meio dum viajante da Ásia Central, De Rubruquis”.

Mencionemos ainda, a título e curiosidade, outra contribuição da velha China: o método de resolução de equação do primeiro grau com uma incógnita, supondo o problema resolvido com uma solução por excesso e outra por falta, consta numa obra de matemática da época dos Han e passou à Europa com o nome árabe de “Al Khataayn”, isto é, “a chinesa”.

A história da China, desde milênios, não conhece solução de continuidade. Eis um fato importante a ser considerado quando se procura definir o legado da China antiga à civilização. As velhas tradições, as grandes sínteses doutrinárias filosófico-religiosas que no passado deitaram raízes na alma chinesa, continuaram durante toda a história a influir na mentalidade das gerações que se sucederam no velho país do Extremo Oriente. Tal asserção pode ser ilustrada com o exemplo do confucionismo que, durante milênios, tem sido o “código ortodoxo de toda a vida moral e espiritual e, apesar dos sistemas concorrentes, continua a ser o princípio diretivo da vida social. Desde a dinastia dos Han, a instrução pública baseia-se inteiramente sobre os ensinamentos de Confúcio, cujo alcance espiritual, malgrado os desvios que a fraqueza humana lhe imprimiu, continua integral. [...]


GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 435-437.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O legado da Índia

Carregadoras de água no Ganges, Edwin Lord Weeks

A Índia foi, na Antiguidade e em épocas posteriores, uma fecunda encruzilhada de civilizações, um centro de intensa irradiação de ideias filosóficas e religiosas. [...] A Índia, pois, não só recebeu como também transmitiu influências culturais. [...]

O intercâmbio cultural entre o Vale do Indo e as velhas civilizações da Mesopotâmia já foi mencionado. Intercâmbio semelhante existiu com o império dos aquemênidas; essas relações com o Ocidente se intensificaram na época helenística. Escavações recentes efetuadas nas proximidades de Pondichéry atestam, de modo eloqüente, as ligações entre a Índia e o Império Romano. Ptolomeu fala-nos desses portos que se escalonavam do Mediterrâneo à China e os historiadores chineses informam-nos das visitas de embaixadores romanos à corte imperial, na época do Antonino Pio e de Marco Aurélio. Moedas romanas do tempo dos Antoninos, encomendadas no Oriente, confirmam esse intercâmbio que não terá sido exclusivamente comercial.

Os contatos da Índia com o Oriente foram igualmente intensos: a Ásia Central, a China, a Indochina, a Indonésia e o longínquo Japão sofreram a influência da cultura indiana. A expansão do budismo ilustra essa influência sobre a Ásia Oriental: a religião de Buda difundiu-se na China, na Coréia e no Japão. Ruínas grandiosas de santuários bramânicos e budistas falam eloquentemente do prestígio cultural da Índia em Java.

No terreno artístico, a Índia também irradiou sua influência no Oriente. Assim, por exemplo, “a arte greco-budista se propaga, de uma parte através da Ásia Central para a China e o Japão, de outra parte, na Índia e além, através da rota marítima, pela Insulíndia e a Indochina”.

No que tange a influência científica, registremos que da literatura científica da Índia dependem em sua maior parte as obras congêneres da Alta Ásia Antiga, do Tibet, da Mongólia, da Birmânia, Tailândia, Laos, Cambodge e Indonésia. “Estudada em si mesma e traduzida ou continuada em outras línguas, a literatura científica sânscrita desempenhou na Ásia Oriental o mesmo papel que na Europa e na Ásia Ocidental a literatura científica grega traduzida, imitada ou prolongada em siríaco ou em árabe”. Se, agora, voltarmo-nos para o Ocidente, surge uma interrogação: até que ponto teria a Índia influído na cultura da nossa Antiguidade Clássica? No terreno científico, parece inegável essa influência: “A comunicação de ideias indianas a certos meios médicos gregos da época da Coleção hipocrática e de Platão é atestada pela menção, no tratado “Das doenças das mulheres”, de um medicamento indiano, a pimenta, e de receitas médicas indianas”. Admitia-se desde a época de Aristóteles que, mesmo antes da expedição de Alexandre, intelectuais indianos teriam vindo à Grécia. Aristóxenes de Tarento, discípulo de Aristóteles, cita uma anedota em que aparece um sábio indiano visitando Sócrates.

Quanto às elucubrações filosóficas, é possível delinear-se um paralelo entre certos pontos do pensamento indiano e do pensamento grego. Mas, entre as especulações helênicas e as meditações indianas, existem abismos intransponíveis, o que torna temerárias quaisquer afirmações sobre uma influência direta destas sobre aquelas.

E quanto ao nosso patrimônio cultural, existirá alguma contribuição direta de civilização indiana? “Não podemos atribuir à civilização indiana dádivas diretas como as que recebemos do Egito e do Oriente Próximo; porque estas civilizações foram as imediatamente ancestrais da nossa, ao passo que as histórias da Índia, China e Japão correm em outro rumo e só agora estão começando a tocar e influenciar a corrente da vida ocidental. É verdade que, mesmo através da barreira do Himalaia, a Índia nos mandou grandes presentes, como a gramática e a lógica, a filosofia e as fábulas, o hipnotismo e o xadrez, e acima de tudo o nosso sistema decimal. [...] Entre as coisas mais vitais da nossa herança oriental estão os algarismos “arábicos” e o sistema decimal, ambos vindos da Índia através da Arábia. Os algarismos erradamente chamados arábicos aparecem nos “Editos de Pedra de Ashoka (256 a.C.), precedendo de um milênio à sua aparição na literatura árabe. Disse o grande e magnânimo Laplace: Foi a Índia que nos deu o engenhoso método de representar todos os números por meio de dez símbolos, cada um deles recebendo um certo valor de posição, assim como um certo valor absoluto; profunda e importante ideia essa, e de tão simples que nos parece hoje, ignoramos-lhe o verdadeiro mérito. A sua simplicidade, a grande facilidade que imprimiu a todos os cálculos, pôs a nossa aritmética no primeiro plano das invenções úteis; e apreciaremos duplamente a grandeza de tal descoberta se refletirmos que ela escapou ao gênio de Arquimedes e Apolônio, dois dos maiores homens produzidos pela Antiguidade”.

O que há de importante no legado da Índia antiga é que, no Oriente, ele é tão vivo hoje como no passado. Porque a civilização da Índia, ao contrário do que sucedeu às velhas civilizações do Oriente Próximo, não conheceu a morte. Resistiu durante milênios e apresenta-se hoje bem viva, com todos os seus defeitos e virtudes. Assim, por exemplo, a velha literatura transmitida durante séculos pela tradição oral revela-se hoje com o mesmo vigor e pujança com que influiu outrora as massas sedentas de solução para os magnos problemas da vida. A história da Índia não terminou na Antiguidade. Não existe, na península, solução de continuidade entre os tempos de Gandhi e de Nehru e a época de Buda, Jina ou de Açoka.


GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 397-399.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Saberes milenares: o peso da herança indígena na sociedade brasileira

Cabeça de índio, Henrique Bernardelli

O português que veio ao Brasil era um lavrador desvinculado de suas raízes. Deixara na aldeia europeia seus campos de cultura e seus rebanhos, a família e a comunidade, cujo consenso lhe pautava a vida. Nenhuma lealdade o ligava  à nova terra. Vivia como um estranho junto a um povo com que não se identificava e diante do qual não se sentia moralmente obrigado, senão quando compelido por uma força externa, como a Igreja ou o Estado. A distância cultural que separava o colonizador do habitante nativo era imensa. No Brasil não encontrou nenhum dos frutos que conhecia, nenhum animal doméstico a que estava habituado. As técnicas de cultivo da terra a que estava afeito não se aplicavam à floresta tropical.

A superioridade numérica do índio em relação aos minguados contingentes que vinham nas caravelas era avassaladora. Assim, apesar de toda a sua potência guerreira e técnica, os colonialistas tiveram de aprender com eles a viver nos trópicos, a cultivar seus frutos, a comer suas raízes e paulatinamente a criar nichos que começaram a atuar sobre os índios em torno. A esse processo de chamou a tupinização do português no Brasil, por ser a etnia Tupi a prevalecente no litoral, à época da descoberta.

Meio século depois, já se tinham formado na costa alguns núcleos de população que representavam uma primeira combinação, ainda que desordenada, de uma cultura europeia com uma cultura tribal. Na concepção de Darcy Ribeiro, seriam a “protocélula da etnia brasileira”, que conformariam o que se chama hoje “a cultura rústica brasileira”.

As aldeias da costa, que serviam de feitorias para dirigir o comércio do pau-brasil, tiravam sua subsistência por métodos antes desconhecidos ao europeu, falavam uma língua indígena, o Tupi, e viam o mundo com olhos diversos. Estes núcleos que se uniram primeiro pelo mar, como se fossem ilhas, depois por terra, é que viriam a constituir o Brasil. Já continham os traços essenciais que caracterizariam o perfil do povo brasileiro: não eram europeus e não eram índios. Aquelas protocélulas tinham a solução de sobrevivência do europeu no trópico: produziam um produto de exportação, o pau-brasil, que lhes garantiria as mercadorias europeias de que necessitavam e da própria terra retiravam as fontes de subsistência.

Já nessa fase, o índio era compelido, cada vez mais, a servir como mão de obra escrava à sociedade de cujos ideais não participava. Até que se tornou obstáculo, porque reteve terras que eram cobiçadas, porque sua hostilidade punha em perigo a vida do invasor e porque a necessidade crescente do escravo e do guerreiro levava o colono a um depoimento cada vez mais exacerbado. A inadaptação do índio ao regime de vida e de trabalho do engenho canavieiro obrigou ao afluxo do escravo negro, dando nova dimensão às “protocélulas” iniciais. Segundo Darcy Ribeiro:

“Os conformadores fundamentais destes núcleos foram a escravidão, como forma de contingenciamento da mão de obra e o sistema de fazendas, em que cada novo núcleo foi estruturado.”

A história do Brasil será daí por diante a aventura desses núcleos pioneiros da Bahia, de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de São Paulo em sua luta para não indianizar-se ao mesmo tempo em que se armavam de preconceitos contra os índios.

Dentre os muitos legados indígenas à sociedade que foi constituída em seu território, o mais importante foi, sem dúvida, o do seu sangue e genes. Desde a primeira hora, a mulher indígena foi o ventre em que se gerou a população que ocuparia o imenso território conquistado. Diogo Álvares, ou Caramuru, na Bahia, João Ramalho, em São Vicente, mais tarde, Jerônimo de Albuquerque, ele próprio um “meio-sangue”, em Pernambuco, passaram à história como alguns dos muitos exemplos de uniões poligâmicas de que resultaram os primeiros mamelucos, filhos de pais portugueses e índias. Mamelucos esses que, embora falando a língua materna, alimentando-se da mesma forma que seus antepassados aborígenes, identificavam-se ideologicamente com o pai.

Sinal de batalha de índios Botocudos (Bororos), Jean-Baptiste Debret

As expedições de caça ao índio e de procura do ouro, empreendidos pelos paulistas, eram compostas, em sua maioria, por mamelucos e índios recrutados nas aldeias missionárias. Durante muito tempo, paulista foi sinônimo de mameluco. Mamelucos foram os mais notáveis bandeirantes, como Domingos Jorge Velho, destruidor de Palmares que, para parlamentar com o bispo de Pernambuco, em 1697, precisou levar intérprete. Sérgio Buarque de Holanda, a quem devemos essa informação, menciona alcunhas de paulistas ilustres de origem Tupi, sustentando que

“Sinal, talvez, de que ainda em pleno Setecentos persistia, ao menos em determinadas camadas do povo, o uso da chamada língua da terra.”

Até o século XVIII, segundo o mesmo autor, nas capitanias onde atuaram os jesuítas (São Paulo, Rio Grande do Sul, Pará, Amazonas), a língua da terra predominava sobre o português, principalmente no âmbito familiar, na proporção de três falantes para um. Em São Paulo, os velhos ainda se expressavam em língua geral no começo do século XIX, como notou Hércules Florence, e no rio Negro isso ocorre até hoje.

Mais tarde, a composição da população se modificou. Chegaram mulheres brancas, acirrando-se o preconceito contra a nativa. As uniões regulares, antes incentivadas pela legislação colonial, foram sendo desmerecidas, estancando a entrada de genes indígenas. Já então o português podia prescindir do índio porque tirara dele o fundamental: a fórmula de sobreviver nos trópicos, a aprendizagem de seu método de plantio e as próprias plantas que cultivava, bem como a forma de prepará-las e consumi-las. Também obtivera dele a força de trabalho como escravo, substituído pelo negro nos empreendimentos mais lucrativos; sua combatividade de guerreiro para defendê-lo contra grupos hostis e o invasor estrangeiro; os seus conhecimentos da terra, como guia e como geógrafo. E da mulher indígena, a sensualidade, a servilidade e a fecundidade.

Em razão da ampla extensão territorial em que se implantou a tradição cultural Tupi-guarani – que aproximadamente corresponde ao traçado do mapa do Brasil – foi possível imprimir um perfil uniforme à sociedade brasileira.

Sinal de retirada de índios Botocudos (Bororos), Jean-Baptiste Debret

De então até nossos dias, esse, lastro aborígene da cultura brasileira, sobretudo de base Tupi-guarani, conserva-se em grande parte do Brasil interiorano. Isso pode ser observado pela facilidade com que o sertanejo nordestino, o caiçara paulista, ou, mais propriamente, o caboclo amazônico encontram elementos culturais que lhes são familiares num contexto tribal. Para todos, a base da alimentação é a farinha de mandioca, cultivada e preparada pelos mesmos processos. Na casa indígena encontram vários utensílios domésticos que lhes são familiares, chamados pelos mesmos nomes: o tipiti para espremer o sumo da mandioca brava, o pilão, o ralador, a peneira, os balaios, os abanos, as esteiras trançadas de palha; os jacás, samburás, jamaxis, aturas, para trazer peixe, castanha ou produtos da roça. Reconhecem inúmeros implementos de pesca: o pari, que é a barragem para fechar o igarapé e atrapar o peixe; o juquiá ou covo, que é a armadilha crônica; cacuri, curral para peixe, tracajá ou tartaruga; o puçá, a tarrafa e o jererê, espécies de redes; a pesca com linha e anzol (hoje de aço, antes de fisga de osso) e pelo envenenamento dos peixes com certas folhas saporáceas, como o timbó. Do mesmo modo, são familiares ao caboclo e ao sertanejo certos tipos de embarcação como a ubá escavada em tronco de árvore a fogo; instrumentos de música, como o berimbau; armadilhas de caça, como o mundéu ou o alçapão para quadrúpedes e a arapuca para a caça de passarinhos; utensílios de mesa e de cozinha, como o porongo, a cuia, a gamela, o pote e a panela de barro. E, ainda, inúmeros pratos e quitutes como o mingau, o beiju, o chibé (farinha de mandioca misturada com água e às vezes temperada com fruta), a papa, a tapioca, a paçoca de peixe ou de carne com farinha, carne ou peixe assados no moquém, a muqueca, a quinhapira (molho de carne ou peixe com pimenta-da-terra), a mujeca (pirão de caldo de peixe, com farinha), a saúva ou içá moqueada, o tucupi (molho do sumo da mandioca-brava cozido), a bebida de guaraná, no Norte, a de erva-mate no Sul, o caxixi, “vinho” de mandioca fermentada e de frutas e tantos outros.

Uns e outros utilizam os mesmos produtos da indústria extrativa, como o breu, a almecega, a imburana e outras gomas; plantas tintoriais, como o pau-brasil, o jenipapo, o urucum; diversas fibras têxteis, entre as quais o caroá, o caraguatá, o tucum, o algodão; materiais de construção, como o sapé, o cipó, as folhas e os troncos de palmeiras; e um sem-número de ervas medicinais para pajelança e “mezinhas”.

Além desses elementos, o caboclo identificará vários outros, como a rede de dormir, os bancos, o fumo. Verificará que são comuns a índios e caboclos certos hábitos, como o de tomar banho diário de rio, andar descalço, descansar de cócoras. Chamará pelos mesmos nomes várias plantas, animais, acidentes geográficos e topônimos; temerá os mesmos duendes, utilizando fórmulas comuns para controlar aqueles seres sobrenaturais. Desse modo, índios e interioranos encontram formas de entendimento que vêm do início de nossa formação.

O peso da herança indígena pode ser aquilatado no retrato que faz José Veríssimo dos modos de vida e do sistema adaptativo do caboclo amazônico:

“A casa em que vive aquela gente é pouco mais que a palhoça do antigo bárbaro. Fincam no solo alguns esteios brutos (sem falquejo); os dois da frente ou do meio mais altos de modo a que o teto fique inclinado; apóiam sobre esses esteios algumas varas e sobre estas vão estendendo folhas de palmeiras atadas com cipós. Em regra, tais cabanas só têm duas portas, a da frente e a do fundo. Cercam o exíguo recinto com tapumes de jissaras partidas, cobertas às vezes de barro. Quase sempre há uma única divisão: a que serve de dormitório para o chefe da família. O mais é aberto, tendo no centro a lareira, onde nunca se deixa apagar o fogo. Por cima, chegado ao teto, está o jirau, como nas tendas do índio é a despensa da família. No interior destas cabanas, um ou outro móvel se encontrará mais que aqueles mesmo de que usava o antigo selvagem: balaios, esteira de piri, cuias, vasos de argila, redes ou macas de cipó etc. – tudo refletindo muito mal disfarçada a vida do aborígene. Nessas palhoças, o modo de viver, as relações de família, a economia, o regime doméstico – tudo pouco difere do que se observava na taba do selvagem. O homem come de cócoras como o índio ainda comia; cura-se dos males que o assaltam pelos mesmos primitivos processos; anda sempre descalço; quando viaja com a família, vai sempre adiante; caça, pesca como pescava e caçava o silvícola há quatrocentos anos, tendo demais apenas os petrechos e artifícios que a conquista introduziu; as embarcações de que se serve, nos rios e nas baías; o modo de preparar o roçado e de fazer o plantio; o fabrico de farinha, a moqueação de peixe, etc. – tudo acusa de modo flagrante que no homem simples do sítio, mais ou menos isolado da civilização, subsiste mais ou menos fielmente o que havia de mais ponderoso nas raças nativas.”

Do indígena aproveitou a colonização europeia a técnica de coivara (clarear os campos a fogo), que até hoje não foi substituída por processos mais modernos, constituindo-se numa prática sumamente nociva à economia agrícola. Enquanto o indígena utilizava essa técnica para limpar um pequeno trato de terra, extinguindo, pelo fogo, as pragas, os insetos daninhos e a vegetação rasteira, que à falta de enxada e outros instrumentos de ferro não poderia extirpar, o latifundiário aplica a mesma técnica para fazer extensas plantações agrícolas ou pecuárias. As grandes queimadas inutilizam madeiras preciosas e a terra desprotegida de vegetação é lavada por chuvas e enxurradas, carreando todo o húmus vegetal para o fundo dos rios e lagos. Na Amazônia, as consequências desse desmatamento são muito mais graves. O solo fica exposto à forte insolação e ao peso das chuvas. A superfície endurece, anulando sua permeabilidade. Destrói-se toda matéria orgânica, deslizando os minerais solúveis para as camadas mais profundas da terra, onde não penetram as raízes.

A queima em pequena escala praticada pelo indígena e o apodrecimento de galhos e troncos, deixados sem queimar, devolvem ao solo nutrientes necessários para alimentar os brotos. O revolvimento da terra com arado e trator a danifica irremediavelmente, ao contrário do que ocorre quando o índio usa simplesmente uma estaca de cavar para a semeadura. O cultivo de espécies diversas favorece a recaptura parcial dos nutrientes e evita a propagação de pragas, como acontece nas plantações monoculturas.

Examinados todos os fatores que presidem a adaptação do índio ao ecossistema da Amazônia, a arqueóloga Betty Meggers, numa passagem de seu livro Amazônia, a ilusão de um paraíso, afirma:

“O ponto a ser acentuado aqui é que a agricultura itinerante não constitui um método de cultivo primitivo e incipiente, tratando-se, ao contrário, de uma técnica especializada que se desenvolveu em resposta às condições específicas de clima e solo tropicais”.

Como se vê, desconhecendo embora o uso de instrumentos de ferro, as técnicas agrícolas indígenas eram bastante eficientes e perfeitamente ajustadas às condições de seu meio ambiente. Baseavam-se, como ainda hoje, num saber milenar – o conhecimento objetivo da natureza e suas leis – advindo da observação e da experimentação.

RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 2011. p. 101-5.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Piratas, corsários e bucaneiros nos mundos do Mediterrâneo, do Oceano Índico e do Atlântico

Piratas, Max Slevogt

[...] Todos os grandes corpos d’água – o Mediterrâneo, os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico – foram palco de pirataria, que algumas vezes apoiou e em outras desafiou os interesses políticos e econômicos dos Estados, impérios e nações. A pirataria ao redor do mundo revelou a permeabilidade das fronteiras e também o desafio das autoridades.

Abandonado, Howard Pyle

A pirataria pode ser vista como uma forma de comércio, na qual os indivíduos retiram o lucro agindo como intermediários entre os mercadores ou pelo confisco forçado das mercadorias para venda ou troca. A pirataria, em vários lugares, assinalou a existência das fronteiras – zonas de interação – que surgiram quando o controle político enfraqueceu. Fronteiras vulneráveis estavam, frequentemente, nas extremidades ou nos pontos de encontro de grandes políticas. A pirataria fazia parte de um sistema econômico maior; refletia a instabilidade, a desordem e o caos das fronteiras tanto quanto os criava. Às vezes, a pirataria também podia ser patrocinada pelos governantes ou rebeldes que buscavam utilizar os piratas como mercenários, para a obtenção de fins políticos. A pirataria dependia dos olhos de quem a viam e, se algo era pirataria ou comércio, dependia inteiramente da perspectiva do observador. Encontrada no Mediterrâneo, no Oceano Índico, no Atlântico e no Pacífico, a pirataria era uma extensão das experiências dos limites, dos encontros e das fronteiras terrestres.

Ilha dos Piratas, David Cox

[...] a pirataria [...] floresceu nas zonas limítrofes e de fronteira entre culturas. Durante os séculos XVI e XVII, a pirataria atingiu seu auge no Mediterrâneo, onde nem todos os piratas se opuseram ao controle estatal. Os corsários eram piratas licenciados pelo Estado. Sob o pretexto do corso, dois grupos igualmente apoiados, os Corsários Bárbaros e os Cavaleiros da Ordem de São João, agiram como guerreiros em uma extensão da guerra santa entre os turcos otomanos e a Espanha católica. Na verdade, essas duas forças corsárias realizaram um intercâmbio de mercadorias entre muçulmanos e cristãos que, de outra forma, teria sido impossível. Esses piratas estavam tão integrados na economia do Mediterrâneo que o sultão otomano de Constantinopla concordou com seu comércio ao apontar, pela primeira vez, um líder bárbaro ao posto de governador-geral de Argel, em 1518, e mais tarde ao o tornar almirante das frotas otomanas, em 1535.

O retorno dos corsários, Maurice Orange

Da mesma forma que, a colaboração íntima entre piratas e governos no Mediterrâneo, as elites que viviam ao longo da linha costeira do Canal da Mancha deram suporte em longa escala à pirataria durante a Era Elisabetana (nomeada em homenagem à Elisabeth I, aproximadamente 1588-1603). Por todo o século XVI, a gentry britânico ao longo da costa sul obteve lucros rápidos ao comercializar os espólios dos saqueadores locais. Essas condições se adequaram bem às aspirações das monarquias da época: a guerra com a Espanha era a maior preocupação internacional da soberana Tudor, mas travar a guerra era um problema, pois a monarquia ainda era dependente de forças voluntárias. Ao sancionar os piratas e os transformar em corsários – navios cujos capitães, durante o período de guerra, recebiam a autorização governamental para atacar portos e navios inimigos – Elisabeth obteve uma marinha sem custos em uma época em que a monarquia inglesa era incapaz de sustentar-se.

Captura do pirata Barba Negra, 1718. Jean Leon Gerome Ferris

A ambigüidade das identidades piratas e a constante transformação da natureza do ambiente em que a pirataria floresceu ocorreram igualmente no Oceano Índico. No começo do século XVIII, um marinheiro independente, chamado Kanhoji Angre, aliou-se à confederação de Marayha, que havia se formado na resistência ao Império Mughal. Ele também se aliou aos portugueses em Goa, que estavam interessados em desafiar os britânicos e holandeses, aliados dos Mughal. Contudo, Kanhoji atuou como um agente independente, apesar de sua aliança com os portugueses, de quem ele capturou um dos navios. Ele também capturou um navio inglês levando um agente da Companhia das Índias Orientais Britânica, cuja esposa foi mantida em troca de um resgate (Patrícia Risso). Kanhoji e suas contrapartes, no Oceano Índico, agiram de forma muito semelhante aos piratas de outros lugares. Eles eram como agentes com extrema independência, que eram utilizados por forças políticas terrestres quando necessário. Por sua vez, os piratas mudavam de aliados quando lhes convinha e buscavam enriquecer quando e onde fosse possível.

Espanhóis e corsários bárbaros, Cornelis Hendriksz

A hegemonia europeia e a feroz competição durante o século XVIII cruzaram o Atlântico até o Caribe, onde tudo ocorria em um pano de fundo de constante pirataria e corso. Nem toda pirataria é lucrativa. Um dos primeiros piratas a atravessar o Atlântico foi Paulmier de Gonneville, que tomou, de forma bem sucedida, mercadorias dos espanhóis, mas não foi capaz de recuperar os custos de sua expedição. Mercadores e navios tinham de se defender contra os piratas e corsários. O status de corsário também significava que, se eles fossem pegos por um inimigo, teriam os mesmos direitos dos soldados. Se capturados, eles seriam feitos prisioneiros em vez de serem enforcados como criminosos.

Bucaneiro, Howard Pyle

Os criminosos e os bucaneiros, ou servos fugidos escapando de seus contratos de servidão, encontraram segurança da exploração de seus senhores, lucrando ao se tornarem piratas no Caribe. Os bucaneiros começaram como caçadores de gado fugido em Santo Domingo (onde receberam o nome de boucan, um grill de madeira para carne defumada), e logo começaram a combinar a caça com a pirataria. Os bucaneiros atravessaram o Caribe e o Atlântico e atingiram lugares tão distantes quando Madagascar, no Oceano Índico, onde estabeleceram a República Pirata de Libertalia.

Uma ação entre um navio inglês e vassalos dos corsários bárbaros, Willem van de Velde the Younger

Como suas contrapartes das águas da Ásia e do Mediterrâneo, os piratas do Caribe se juntaram ao patrocínio político. Na verdade, foi difícil distinguir o contrabando do comércio legítimo, de tão pouco ortodoxas e inescrupulosas que eram, igualmente, as negociações dos mercadores e dos piratas. O famoso bucaneiro do final do século XVII, Henry Morgan, velejou sob as ordens do governador da Jamaica, uma colônia britânica. Sua última expedição foi uma tentativa de capturar e pilhar a Cidade do Panamá, apesar dos acordos entre a Espanha e a Inglaterra de cessar essas ilegalidades. Mais devastador para a pirataria do que as leis Britânicas de Navegação, que limitaram o comércio aos navios britânicos, foi o terremoto de Port Royal, em 1692, na Jamaica. O terremoto e as ondas altas subseqüentes açoitaram esse centro costeiro de pirataria, conhecido como “a cidade mais perversa da terra”, até ser coberta pelo mar.

Anne Bonny e Mary Read, Benjamin Cole

Como no mundo das águas cantonês, mulheres piratas não foram alto tão incomum nas fronteiras do Caribe. Duas dessas mulheres foram Mary Read e Anne Bonny, trazidas perante o governador da Jamaica, em 1720, e sentenciadas ao enforcamento. As mulheres foram ao mar como passageiras, serventes, esposas, prostitutas, lavadeiras, cozinheiras e, como menos freqüência, como marinheiras. Para evitar controvérsias e usurpar aquilo que era considerado como uma liberdade masculina, as piratas femininas frequentemente se vestiam como homens, utilizando calças e jaquetas masculinas e carregando pistolas ou machados, se não ambos. Read e Bonny também xingavam e diziam palavrões como qualquer homem. Ambas foram criadas em ambientes familiares não convencionais e se sobressaíram em suas presas escolhidas, sendo reconhecidas como líderes em seus navios piratas. Essas “mulheres guerreiras” foram celebradas ao redor do mundo atlântico em cantigas populares, sugerindo que seu impacto foi tanto econômico quanto cultural.


Piratas dividindo seus despojos, Howard Pyle

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 324, 326-328.