Colheita, Pedro Weingärtner
Para alcançar o estágio de desenvolvimento que atingiu no século V da era cristã, a humanidade passou por períodos sucessivos de evolução marcados por eventos significativos. Na sequência cronológica, o primeiro evento foi o surgimento do bípede, há cinco milhões de anos. Há dois milhões de anos, a caixa craniana do Homo erectus alcançou o mesmo volume que a do homem moderno. A primeira ferramenta, uma pedra amarrada em um pau, foi uma conquista que pode ter ocorrido entre um milhão de anos e 500 mil anos. Esse evento marcou uma mudança radical naquele animal, pois foi seu primeiro ato de consciência. Ele associou ideias para criar um instrumento eficaz com objetivo preciso. A partir daí sua relação com a natureza mudou radicalmente. Não se sabe quando ele passou a usar o fogo ou começou a produzir a chama, com o choque de duas pedras ou a fricção de madeira. Há cerca de duzentos mil anos as ferramentas de corte já eram aperfeiçoadas com a manufatura de facas e de pontas triangulares para lanças e estiletes mantendo certo padrão.
O Homo sapiens aparece em Java pela primeira vez há cerca de 120 mil anos. As primeiras pinturas rupestres e entalhes em rocha representando animais aparecem há cerca de 30 mil anos. De 20 mil anos para cá há um aperfeiçoamento marcante na produção de artefatos, utensílios e armas de vários materiais, chifre de rena, osso, madeira e pedra, e o uso de madeira dura ou osso como broca, a primeira ferramenta para fabricação de instrumentos de pedra polida. A agricultura e a pecuária começaram há cerca de dez mil anos. Há nove mil anos o homem já trabalha o cobre, há cinco mil anos produz a roda e forja o bronze, constrói cidades e domina a escrita, e há quatro mil usa o arado na agricultura e fabrica instrumentos em ferro.
Observa-se que há uma aceleração crescente de um evento significativo para o seguinte. Foram três milhões de anos para a caixa craniana dos ancestrais do homem crescer, a partir do momento em que eles começaram a andar sobre dois pés. Mais um milhão de anos para construir o primeiro instrumento, Oitocentos mil anos para diversificar sua fabricação e estabelecer padrão de qualidade. Mais quase duzentos mil anos para gravar figuras nas rochas e polir a pedra. Há dez mil anos ele tornou-se agricultor e criador, constituindo grandes tribos nômades e aldeias diversificadas. Em seguida tornou-se minerador e metalúrgico. Há sete mil anos criou as primeiras aldeias fortificadas com muros de pedras e com casas construídas em tijolo cru. Há cinco mil anos construiu cidades e inventou a escrita, dando início às civilizações. Essas se fizeram impérios, alguns deles efêmeros, produzindo uma dança de poder e o caldeamento das populações e das culturas. Na primeira metade do primeiro milênio a.C. os gregos utilizaram a escrita para contar histórias, fazer poesia e textos de teatro, difundindo a cultura e dando forma definitiva a lendas e mitos. Isso possibilitou a crítica dos textos, o que deu origem à filosofia. No mesmo milênio, em vários locais do mundo, surgiram místicos e filósofos que são objeto de estudo e reverência de bilhões de pessoas na atualidade. Vejamos algumas lições que essa evolução nos deixou.
Os grupos familiares formaram-se naturalmente e se uniram para se defenderem das agressões externas, de animais ou de outros grupos. A ampliação dessa união deu origem às tribos. Estas cresceram, formaram-se castas, e a chefia tornou-se tirânica. Tolheu-se a liberdade dos excluídos das castas. O sedentarismo das cidades ampliou e consolidou as diferenças sociais. Surgiram a escravidão e o poderio militar. As necessidades e a complexidade das relações sociais, cada vez maiores, fizeram crescer ainda mais as diferenças sociais. Os ricos já não se contentam em satisfazer suas necessidades. Eles querem luxo, regalias e mais riquezas do que a cidade lhes pode dar. Isso gerou conflitos e insegurança. As castas já não podiam prescindir do trabalho escravo, então escravizam os inimigos presos. O passo seguinte foi a conquista de outros povos. Inicia-se o período dos impérios, nas suas diversas manifestações. Os teocráticos, como Acádia, Egito, Babilônia, nos grandes vales de agricultura irrigada. Os mercantis escravistas, como Assíria, Grécia, Cartago, Roma. E as chefias pastoris nômades, como hicsos, hititas, cassitas, ários, citas, hunos.
As cidades-Estado helênicas foram um avanço extraordinário na organização social, com a criação da república. Mas com seu desenvolvimento, dirigentes e grandes proprietários formam oligarquias, para exercer o poder e satisfazer suas ambições. Negligenciam os princípios republicanos que sustentaram o progresso da comunidade. Optam pela pilhagem na busca da riqueza. Invadem o território da cidade vizinha para ampliar o seu, gerando a guerra e a insegurança. [...]
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Esse fenômeno da expansão da cidade sobre os domínios de outros, que já preocupava os filósofos gregos, aconteceu também com os reinos que englobavam mais de uma cidade, o que os fez tornarem-se impérios. A propriedade e a concentração de riqueza foram instrumentos de progresso material, mas foram também causas das guerras que abalaram o mundo antigo e nos atingem até hoje. As grandes extensões dos reinos e de impérios resultaram na sua instabilidade e, em muitos casos, na sua destruição. Assim, os reinos, impérios e as civilizações foram se sucedendo no processo histórico, cumprindo seu ciclo de nascimento, florescimento, decadência e morte.
Algumas civilizações não foram vencidas por outras em competição ou guerra. Apenas se tornaram inviáveis, esgotaram-se por seu crescimento ou por seus vícios. Elas deixaram espaço para a formação de reinos menores que se ajustaram às novas circunstâncias. Observando cada período de evolução da humanidade, verificamos que os de maior prosperidade e crescimento ocorreram quando os impérios, por uma ou outra razão, estiveram contidos, como aconteceu depois da grande revolta dos povos dos mares por volta de 1200 a.C. Ausentes os impérios, o Mediterrâneo foi liberado para o comércio sob a hegemonia da Fenícia, um Estado pequeno com pequeno poder militar. Nesse período as cidades-Estado se organizaram, floresceram e se difundiram. O mundo passou por um grande progresso material e cultural.
Não podemos julgar a história, mas devemos analisá-la friamente para que possamos aprender com seus feitos e desfeitos. O processo histórico é uma sucessão de períodos de presença imperial forte, quando prevaleceu a tirania, e de relativa ausência desses impérios, quando floresceu a república e uma democracia incipiente, condicionadas pelas oligarquias nas cidades-Estado, mas com muito mais liberdade que sob o domínio imperial ou na presença dele. Esse processo cíclico de dominação e liberdade facilitou a integração das populações e o caldeamento cultural, ora em benefício dos impérios, ora dos povos.
Nos períodos imperiais desenvolveram-se as tecnologias militares e as forças produtivas, pois era necessário produzir armas e alimentos para as guerras e a sustentação do império. Nos períodos de autonomia das cidades-Estado, desenvolveram-se a cultura, nas suas diversas manifestações, a cidadania, a literatura e a poesia, as artes cênicas, a escultura e a pintura, o artesanato, a filosofia, a religião, a música e os conhecimentos em geral. As relações humanas e as ciências progrediram e o homem tornou-se melhor, mais sociável e mais amoroso.
Na Mesopotâmia, encontramos um período de autonomia das cidades-Estado e dos pequenos reinos, do ano 3000 a.C., no início das civilizações, até o Império Acádio, por volta de 2400 a.C. Depois da queda desse império, em 2150 a.C., houve autonomia e progresso em vários pequenos períodos, nas alternâncias entre os instáveis primeiros impérios, até que o império babilônico de Hamurábi se impõe em 1790 a.C. Muito mais tarde ocorreria no Oriente Médio um período muito importante para a evolução de todos os povos, de 1200 a.C. até cerca de 800 a.C., resultante do retraimento dos impérios que disputavam a região, em face da revolta dos povos dos mares. Já na Ásia Menor e no mar Egeu esse período de autonomia permaneceu até a invasão de Ciro II à costa jônica e às ilhas gregas próximas a ela, em 550 a.C.
As invasões persas ao mundo helênico não foram apenas uma questão geopolítica. Elas traumatizaram as populações invadidas, assim como as ameaçadas. O resultado foi um ódio de tal proporção, que esses povos apoiaram Alexandre nas suas ações de conquistas que destruíram seu inimigo. Esse fato deveria estar presente no pensamento dos líderes mundiais que não encontram limites morais nas suas ações dominadoras, que incluem o genocídio, a destruição de valores morais e de bens materiais.
O processo histórico há pouco referido, que alterna submissão e autonomia, ainda vigora até nossos dias. Hoje, entretanto, enfrentamos uma situação muito mais complexa e perigosa, pelo enorme poder de destruição acumulado e pelo esgotamento da capacidade da natureza em recuperar-se da ação predatória do homem. [...]
Quando Atenas foi invadida e destruída pelos persas, em 480 a.C., já havia sido constituída uma aliança, um ano antes, que criou o mais poderoso exército da Antiguidade. A Liga do Peloponeso, sob a liderança de Esparta, teve papel preponderante nesse acontecimento. Mas, disputas internas, e a visão imperial de Atenas, impediram que ela se consolidasse. Esparta continuou com seus aliados e Atenas formou a Liga de Delos, criando um foco de tensão que só cresceu, e teve seu ápice na Guerra do Peloponeso em 431 a.C. Esta durou 27 anos, destruiu a unidade helênica e permitiu a Filipe da Macedônia assumir o poder na Grécia.
Se houvesse um esforço no sentido da unidade, que suplantasse as disputas entre as aristocracias de Atenas e de Esparta, o mundo helênico poderia oferecer à humanidade um formidável exemplo de cooperação entre Estados independentes formando uma confederação forte, cultural, econômica e militarmente. Poderia tornar-se uma potência formidável, não imperial, a condição mais conveniente para ela estabelecer boas relações com os outros povos da região. Entretanto, o projeto imperial de Atenas era ambicioso demais, enquanto seus governantes eram frágeis discípulos dos sofistas, sem ética e sem compromissos maiores com a população grega. Quando usou o tesouro da Liga de Delos, destinados à defesa comum, Atenas manifestou sua prepotência, enquanto construía seu projeto imperial. Os recursos foram usados para fortificar e reconstruir a cidade e o Parthenon, gerando emprego e prosperidade apenas para ela.
Esse exemplo é notável para a compreensão de como as classes dominantes colocam seus interesses acima dos do país e de seu povo. A desunião dos gregos e a fugaz existência do Império Greco-Macedônio abriram o caminho para Roma tornar-se o grande império que foi. Há muitas outras lições a aprender com a história do mundo antigo, na qual encontramos situações semelhantes àquelas vividas mais tarde pela humanidade, inclusive nos nossos dias. Compreender os fenômenos atuais por seu estudo direto é difícil, porque eles envolvem nosso interesse pessoal e nossas emoções. Nós somos parte deles, como autores, vítimas ou cúmplices. Mesmo descontentes, a mudança pode nos ser incômoda e a luta por ela perigosa. Teremos que enfrentar a opinião pública, formada pelos meios de comunicação para defender o status quo. Precisamos do nosso emprego que, mesmo precário, garante nossa subsistência e de nossa família. Nossos conhecimentos limitados bloqueiam nossa visão de conjunto da sociedade, necessária à compreensão do todo. A rotina e a inércia estão a favor do status quo, mesmo se injusto e doloroso.
A única dificuldade na análise dos fatos históricos são os dogmas de fé, Eles bloqueiam nossa mente. Estamos vivendo um momento em que todos falam em mudança, desfazendo-se de muitos dos dogmas do passado. Mas esses são substituídos por novos dogmas, como aqueles contidos no que os intelectuais apelidaram o pensamento único. Sem dogmas e mitos, e sem cumplicidade, podemos nos centrar nas questões essenciais para termos uma visão mais realista delas. Inclusive compreender que mesmo sem nos empenharmos na solução dos problemas a crise se encarregará de fazê-lo. Mas o preço da omissão poderá ser muito caro para todos.
Uma das consequências da nossa assimilação das lições da história é compreendermos a origem comum dos povos e nos certificar de que nenhum deles é mais importante, ou melhor, que qualquer outro. Todos tiveram seus momentos de dificuldades e souberam superá-las. Conheceram a glória, como senhores de impérios, e a humildade dos derrotados e dos escravizados. Não porque fossem mais fortes ou mais fracos, mais ou menos capazes, mas por circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis. Foram poderosos por ocuparem terras férteis e dominarem tecnologias mais desenvolvidas e adequadas. Por serem, naquele momento, mais numerosos e disporem de tecnologia inovadora ou superioridade militar. Foram fracos quando vítimas de mudanças climáticas catastróficas, ou de lideranças corrompidas ou irresponsáveis, ou quando eram pouco numerosos e detinham pequeno efetivo militar.
A alternância de dominação que ocorreu em todo mundo ocidental conhecido na época, Oriente Médio, Ásia Menor, Egito e Mediterrâneo, demonstra que todos os povos são aptos para o exercício de qualquer atividade econômica, artística ou guerreira. A alternância no poder de comunidades nos países e destes como impérios, provam que o poder provém da produção material, terra, matéria-prima, tecnologia e massa crítica de população, e não das qualidades humanas que são, na média, iguais para todos os povos. O que realmente importa para a realização dos povos são seu nível de conhecimento e suas relações sociais equilibradas e harmoniosas. O reconhecimento do direito dos cidadãos é o principal quesito para a valorização de uma civilização.
A força e a bravura dos guerreiros são virtudes que podem ser determinantes na decisão de um conflito, mas os registros mais importantes da história não são os feitos bélicos, mesmo quando gravados em pedra pelos vencedores. São as obras de arte, a filosofia, a literatura, a poesia, as construções, sejam elas magníficas ou simplesmente úteis, e as ações e atitudes humanitárias, como o amor latente na pregação dos grandes líderes religiosos.
As diferenças genéticas ou culturais devem ser vistas como vantagem universal. A primeira favorece a sobrevivência de parte da humanidade em situações climáticas rigorosas. A segunda aumenta a probabilidade de um grupo possuir as qualidades adquiridas de adaptação às diferenças do meio, através dos seus hábitos, métodos de trabalho, estilo de vida, conhecimentos e crenças. E também de terem uma cultura mais adequada à adaptação a novas condições sociais e institucionais, em momentos de crise civilizacional. Assim, a humanidade pode seguir sua senda de experiências, dificuldades, sofrimentos, êxitos e realizações. A questão racial por conta da cor da pele é ridícula sob todos os aspectos, e já foi desmascarada pela ciência, sobretudo depois da descoberta do DNA. A migração para o norte no período glacial, por exemplo, favoreceu os albinos proliferarem e se mesclarem com os outros reduzindo a melanina do grupo. Como não existe uma raça albina, seus descendentes não podem alegar serem de raça distinta apenas pela menor quantidade de melanina na pele.
O conhecimento da história do mundo antigo é suficiente para ensinar à humanidade como proceder para uma vida melhor e uma maior realização humana. Ela nos mostra que o respeito ao próximo evita conflito e cria a cooperação, e a sinergia colabora para um maior desenvolvimento de todos. Já o conhecimento científico nos dá condições de saber mais sobre a natureza e o cosmos, e nos ajuda a comportarmos em consonância com as leis naturais que não podemos mudar. Mas a história sempre foi mal conhecida ou deturpada, no interesse daqueles que ocupam o poder. Estes criaram as castas e as tiranias, e construíram barreiras contra a difusão do conhecimento, que eles monopolizaram. O domínio da informação por uns poucos, obrigou aos que não se submeteram a criar o ocultismo e as seitas. A dominação também aprofundou a desigualdade, imobilizou um grande potencial de desenvolvimento humano, perpetuou a ignorância, o maior dos males.
As castas produziram as ideologias, corpos de ideias que buscam justificar seus interesses e as ações para defendê-los. Elas geraram a discriminação e toda sorte de desumanidade, a violência, a injustiça. Estigmatizaram adversários e concorrentes para que fossem desprezados. Incentivaram os conflitos para evitar a unidade das populações. Estabeleceram instituições manipuláveis e apropriadas à defesa de seus privilégios. Assim, o poder, seja qual for sua forma ou expressão, representa sempre esse corpo de ideias, a ideologia da classe dominante, que coloca os povos em camisa de força.
Esses ensinamentos estão todos lá no mundo antigo. Quando Jesus de Nazaré disse, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, ele talvez quisesse nos dizer que o maior inimigo do homem é a ignorância. O mesmo disse Buda. É da ignorância e da avidez que surge o mundo do erro, e suas causas e condições existem apenas dentro da mente, em nenhum lugar mais. Mas essas mensagens foram deturpadas e a verdade negligenciada. [...]
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Há uma questão renitente na atualidade, que parece não ter solução, o propalado "ódio" entre árabes e judeus, Uma forma viciada de apresentar um conflito como se houvesse uma razão histórica consistente para isso. Não há nada que possa justificar esse conflito. Os dois são povos semitas, da mesma raiz linguística e que viveram lado a lado durante séculos. Muito menos no que concerne às relações entre judeus e libaneses. Estes são descendentes dos fenícios que conviveram com os hebreus e deram apoio ao seu Estado por séculos. Somente a partir da presença inglesa na região, depois da descoberta do petróleo, esse conflito foi alimentado e manipulado. Nem na história antiga, nem na religião, podemos encontrar explicações para esse impasse. O fundamento alegado é a diáspora dos judeus, no tempo de Roma, mas, hoje, sua causa é o interesse das potências modernas no petróleo.
MOURTHÉ, Arnaldo. História e colapso da civilização: é melhor o incômodo da advertência que a tragédia da ignorância. Rio de Janeiro: Editora Mourthé, 2012. p. 219-227.