Homem mucubai, Angola
O ser humano é um animal histórico. Os africanos não fogem a essa definição. A consciência histórica que os africanos possuem de sua própria história e da história em geral está marcada por seu singular desenvolvimento. O tempo africano é, às vezes, mítico e social, mas os africanos também têm consciência de serem os agentes de sua própria história. O tempo africano é um tempo realmente histórico. Por um lado, o mito, em geral, domina o pensamento dos africanos na sua concepção do desenrolar da vida dos povos. Sob a forma de “costumes” vindos de tempos imemoriais, o mito governava a História, encarregando-se, também, de justificá-la. Nesse contexto, aparecem duas características do pensamento histórico: sua intemporalidade e sua dimensão essencialmente social. O tempo é o ritmo respiratório da coletividade que engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes quanto o eram durante a época em que viviam. Assim sendo, a causalidade atua em todas as direções: o passado sobre o presente e o presente sobre o futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e o peso dos acontecimentos passados, mas por uma irrupção direta que pode se exercer em todos os sentidos. Nesse tempo “suspenso”, a ação do presente é possível mesmo sobre o que é considerado passado, mas que permanece, de fato, contemporâneo.
Esse enfoque mítico está na
origem da história de todos os povos. Toda história é originalmente uma
história sagrada. Do mesmo modo, esse enfoque acompanha o desenvolvimento
histórico, reaparecendo de tempos em tempos sob formas maravilhosas ou
monstruosas.
Pode-se pensar que essa visão do
processo histórico seria estática e estéril, já que, ao colocar a perfeição do
arquétipo na origem dos tempos, parece indicar como ideal para o conjunto das
gerações a repetição estereotipada dos gestos do ancestral. Porém, não podemos
nos ater unicamente a esse enfoque do pensamento histórico entre os africanos.
No período pré-colonial,
numerosas sociedades africanas elementares, quase fechadas, dão a impressão de
que seus membros só tinham consciência de estar fazendo história numa escala e
numa medida bastante limitadas. Em compensação, nas sociedades fortemente
estruturadas, a concepção africana de chefe dá a este último um espaço
exorbitante na história dos povos dos quais ele literalmente encarna o projeto
coletivo. Assim, não é de se admirar que a tradição relembre toda a história
original dos Malinke no “Elogio a Sundiata”. O mesmo acontece com Sonni Ali
entre os Songhai da curva do Níger. Isso não significa um condicionamento
“ideológico” que destrói o espírito crítico. Por outro lado, a história mais
recente da África pré-colonial demonstra que a posição dedicada aos líderes
africanos nas representações mentais das pessoas provavelmente não é
superestimada. A ideia de um líder que atua como motor da história quase nunca
se reduz a um esquema simplista, creditando a um só homem todo o
desenvolvimento humano. Geralmente trata-se de um grupo dinâmico, celebrado
como tal, onde os companheiros dos chefes frequentemente entram para a história
como heróis.
A mesma observação vale para as
mulheres, que ocupam na consciência histórica africana uma posição sem dúvida
mais importante que em qualquer outro lugar. Nas sociedades de regime
matrilinear isto é facilmente compreensível. As mulheres são vistas como
protagonistas na evolução histórica dos povos. Filhas, irmãs, esposas e mães de
reis ocupavam posições que lhes permitiam influir nos acontecimentos. Essa
ideia permanece viva até hoje na África. Pela sua participação no trabalho da
terra, no artesanato e no comércio, pela sua ascendência sobre os filhos, por
sua vitalidade cultural, as mulheres africanas sempre foram consideradas
personagens eminentes da história dos povos. A mulher é a vida e a promessa de
expansão da vida. É através dela que os diferentes clãs consagram suas
alianças.
Por outro lado, tudo se passa
como se na África a frágil envergadura das sociedades tivesse tornado a
história uma questão que diz respeito a todos. Este sentimento de fazer a
história mesmo na escala microcósmica da aldeia, assim como a sensação de ser
somente uma molécula na corrente histórica criada pelo rei, visto como
demiurgo, são muito importantes porque constituem em si mesmos fatos históricos
e contribuem para criar a história.
O próprio caráter social da
concepção africana da história lhe dá uma dimensão histórica incontestável,
porque a história é a vida crescente do grupo. Desse ponto de vista, para o
africano o tempo é dinâmico. Nem na concepção tradicional, nem na visão
islâmica que influenciará a África, o homem é prisioneiro de um processo
estático ou de um retorno cíclico. O tempo permanece um elemento vívido e
social, porém, não se trata de um elemento neutro e indiferente, já que é o
lugar onde o homem pode lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital. Tal é
a dimensão principal do “animismo” africano em que o tempo é o campo fechado no
qual se confrontam ou negociam as forças que habitam o mundo. Existe assim no
africano uma vontade constante de invocar o passado que não significa o
imobilismo e não contradiz a lei geral da cumulação das forças e do progresso.
O poder na África negra se
expressa em geral por uma palavra que significa “a força”. Essa sinonímia
assinala a importância que os povos africanos outorgam à força e mesmo à
violência no desenrolar da história. Trata-se da energia vital que reúne uma
polivalência de forças, que vão da integridade física à sorte e à integridade
moral. O valor ético é considerado como uma condição sine qua non do exercício benéfico do poder. Esta visão do mundo em
que os valores e exigências éticas são parte integrante da própria organização
do mundo pode parecer mítica, mas ela exercia uma influência objetiva sobre o
comportamento dos homens. Nesse sentido, se a história é justificação do
passado, ela é também exortação do futuro.
A consciência do tempo passado
era muito viva entre os africanos. No entanto, esse tempo, que tem um grande
peso sobre o presente, não anula o seu dinamismo. A concepção do tempo tal como
a detectamos nas sociedades africanas é a marca de um estágio no
desenvolvimento econômico e social. O essencial é que a ideia de
desenvolvimento a partir das origens esteja presente. Mesmo sob a forma de
contos e de lendas, trata-se de um esforço para racionalizar o desenvolvimento
social. Às vezes, têm-se verificado esforços ainda mais positivos no sentido de
iniciar o cálculo do tempo histórico relacionado com o espaço ou a vida
biológica e, mais frequentemente, relacionado aos fenômenos cósmicos,
climáticos e sociais. Mas o passo decisivo nesse campo só será dado pela
utilização da escrita, que ao menos permitiu estabelecer pontos de referência
que organizam o curso do fluxo histórico. A introdução das religiões
monoteístas baseadas num determinado processo histórico contribuiu para
fornecer uma outra representação do passado coletivo.
Mas a grande reviravolta na concepção
africana do tempo se opera sobretudo pela entrada desse continente no universo
do lucro e da acumulação monetária. Só agora o sentido do tempo individual e
coletivo se transforma pela assimilação dos esquemas mentais em vigor nos
países que influenciam os africanos econômica e culturalmente. Descobrem então
que, em geral, é o dinheiro que faz a história. O homem africano, tão próximo
de sua história que tinha a impressão de forjá-la ele próprio em suas
microssociedades, enfrenta agora, ao mesmo tempo, o risco de uma gigantesca
alienação e a oportunidade de ser coautor do progresso global.
SILVÉRIO, Valter Roberto. Síntese da coleção História Geral da África:
Pré-história ao século XVI. Brasília: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013. p. 29-32.
Nenhum comentário:
Postar um comentário