"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 20 de junho de 2015

As epopeias homéricas como fonte histórica

O amor de Helena e Páris, Jacques-Louis David

A Ilíada e a Odisseia eram uma evocação de acontecimentos ocorridos na Idade do Bronze, no mundo micênico. A questão de saber a que época histórica se poderá ligar o testemunho de Homero e em que medida serve como fonte histórica continua sendo um debate. [...] De acordo com Vidal-Naquer e Michel Austin, para além das coincidências entre as fontes, há leis que regulam oposições e classificações que serão encontradas ao longo de toda a civilização grega, sobretudo as que definem o lugar dos homens com relação aos não humanos e aos deuses. Se há tais distinções, não podemos presumir, a partir de Homero, a existência de um rei divinizado como o ánax micênico. Agamenon, nas epopeias, estaria, assim, mais próximo de um basileus.

Assim, a Ítaca de Homero - com seus basileus, sua assembleia, seus nobres turbulentos e seu demos silencioso em segundo plano - prolonga e esclarece certos aspectos da realeza micênica. Neste confronto entre a narrativa histórica e as descobertas arqueológicas, os estudiosos puderam perceber um novo sentido para o conceito de basileus ou temenos. Certamente os reinos e os reis da Ilíada e da Odisseia não se referem a uma sociedade palaciana centralizada. Os heróis, que na Ilíada - um canto de guerra - vivem com autonomia, aparecem na Odisseia - um canto de paz - referidos ao oikós, e não a um palácio dirigido por um poder supremo centralizado. O oikós seria a unidade econômica e humana sobre a qual reinariam o basileus homérico, ou seja, chefes guerreiros e nobres.

Estabelecidas as diferenças entre o rei micênico e o homérico, podemos seguir com a questão da época das trevas ou "Idade do Ferro", que se inicia com a queda do poder micênico e a expansão dos dórios no Peloponeso, Creta e Rodes. Aqui, diferentemente do período micênico, que confundia o mundo humano com o divino na pessoa do rei, encontramos uma delimitação mais rigorosa dos diferentes planos do real, ou seja, os homens identificam um passado separado, diferente e distante do tempo presente; começam a incinerar os mortos ao invés de embalsamá-los, o que significa uma separação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Sem a presença do rei divino micênico novas distâncias são colocadas entre o mundo dos homens e o dos deuses.

A percepção da diferença entre passado e presente, a separação entre o mundo dos vivos e o dos mortos e as distâncias entre homens e deuses são novidades que se inscrevem em realidades sociais também novas. Tais novidades só terão sentido se pudermos referi-las ao tipo de organização do mundo micênico redefinido após as descobertas arqueológicas.

EYLER, Flávia Maria Schlee. História antiga: Grécia e Roma. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 35-36. (Série História Geral).

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